Eutanásia: Direito à "boa" morte e despenalização da piedade médico-homicida consentida
O debate jurídico acerca do direito à "boa" morte, a ajuda para morrer, a morte assistida, ou, ainda, a morte sem dor, tem sido alvo de opiniões conflitantes para os estudiosos da matéria penal.
“A morte pertence aos que estão morrendo e aos que os amam. Há, muitas vezes, uma serenidade no ato da morte(…), mas raramente no processo de morrer.” [1]
Resumo: Cuida-se este breve ensaio de tratar questão polêmica e controvertida, englobante e suscitante de questões psicológicas, filosófico-religiosas, sociológicas e técnico-jurídicas que circundam o espaço acadêmico atual, proporcionando acalorados embates em que pese a BIOÉTICA ser a bola da vez.
O debate jurídico acerca do direito à “boa” morte, a ajuda para morrer, a morte assistida, ou, ainda, a morte sem dor, tem sido alvo de opiniões conflitantes para os estudiosos da matéria penal, principalmente, pelos reflexos que resvalam no ambiance jurídico-penal, não tendo a comunidade jurídica, até o momento, sequer, chegado a um denominador comum.
1. Intróito
Por eutanásia [2], entende-se o vocábulo – diz De Plácido e Silva: “derivado do grego eu (bom) e thanatos (morte) quer significar vulgarmente, a boa morte, a morte calma, a morte doce e tranqüila.” Isto é, a ajuda que é prestada às pessoas portadoras de doenças gravíssimas incuráveis e/ou em estágios terminais, no intuito de pôr fim aos atrozes sofrimentos, possibilitando uma morte condizente com a concepção de dignidade humana [3].
A terminologia de tal instituto como fora concebido – diga-se, eutanásia (Sterbehilfe) [4], nunca foi vista com bom olhos, até porque, seu nascedouro está umbilicalmente associado ao Programa de Eutanásia (Euthanasieprogramm) do nacional socialismo, eliminador de doentes mentais, bem como, da eugenia praticada nos campos de concentração, pelos nazistas na Segunda Grande Guerra Mundial, sob a “forma da chamada eliminação das vidas indignas de viver” visando a concepção de uma “raça pura”, a raça ariana. Daí porque, a adoção de outras terminologias: ajuda para morrer (Hilfe beim Sterben), morte assistida, ou, ainda, morte sem dor.
2. Classificação
Outrossim, no estudo da eutanásia, distinguem-na os estudiosos da matéria, subdividindo-a em: a) eutanásia em sentido estrito, e, b) eutanásia em sentido amplo; c) eutanásia pura, e, d) eutanásia indireta; e) eutanásia ativa, e, f) eutanásia passiva, objeto deste estudo.
Nesse diapasão tomando como paradigma o StGB – Strafgesetzbuch (Código Penal Alemão) leciona o mestre CLAUS ROXIN:
“Fala-se em eutanásia passiva quando uma pessoa de confiança – em regra o médico e seus ajudantes, mas também, por ex. um parente – se omite em prolongar a vida que se aproxima de seu fim. É o caso de se renunciar a uma operação ou a um tratamento intensivo, capaz de possibilitar ao paciente uma vida mais longa.” [5]
3. Deslinde de um caso
Atualmente, chamou-nos atenção e de todo o mundo o caso da estadunidense Theresa Marie Schindler-Schiavo – “Terri Schiavo”, indiferente do caso de antanho, supra-citado por JOSÉ INGENIEROS .
Terri Schiavo, de 41 anos de idade, teve uma parada cardíaca, em 1990, devendo-se a perda significativa de potássio associada a Bulimia, que é um distúrbio alimentar. Ela permaneceu, pelo menos, cinco minutos sem fluxo sanguíneo cerebral. Desde então, devido a grande lesão cerebral, ficou em estado vegetativo, de acordo com as diferentes equipes médicas que a trataram à época.
O caso Terri Schiavo gerou à época grande repercussão. O esposo, Michael Schiavo, desejava que a sonda de alimentação fosse retirada, pois, segundo ele sua esposa havia manifestado verbalmente, quando ainda estava consciente, que não desejaria permanecer em um estado como o que se encontrava, enquanto que os pais e irmãos da paciente, lutavam para que a alimentação e hidratação fossem mantidas. Por três vezes o marido ganhou na justiça o direito de retirar a sonda. Nas duas primeiras vezes a autorização foi revertida. Em 19 de marco de 2005 a sonda foi retirada pela terceira vez, permanecendo assim até a sua morte. Após longa disputa familiar, judicial e política, além de grande polêmica mundial Terri Schiavo teve retirada a sonda que a alimentava e hidratava, vindo a falecer em 31 de marco de 2005.
O trabalho midiático alçado pelas redes televisivas americanas, no caso da estadunidense Terri Schiavo, nos deu pleno conhecimento de um embate caloroso e emblemático do esposo de Terri e de sua família, bem como, fez brotar no seio dos mais diversos “groups” [6] da sociedade mundial, indagações e reflexões, no que diz respeito à possível prática da eutanásia nos dias atuais.
Resta a nós, neófitos estudiosos do direito e da matéria em tela, analisarmos com imparcialidade, sem esquecermos do arcabouço ideológico do chamado group a que pertencemos – neutralidade – refletir, sopesar e indagar, trazendo o caso “Terri Schiavo”, ao enquadrameto da legislação pátria, sobretudo ao paradigma da Constituição Federal do Brasil de 1988, pois, não será longínqua a ocorrência de assemelhado caso, nem tampouco, distante a apreciação de caso assemelhado por nossos pretórios.
Diante de questão polêmica, brota no âmago dos bancos acadêmicos, compostos por futuros operadores do direito, verdadeira inquietação na busca de responder as perguntas que não querem calar: Em nossa legislação penal é impunível a eutanásia passiva praticada por médicos, como meio, escape, para abreviar o sofrimento físico insuportável de pacientes terminais irreversíveis, proporcionando-lhes um “fim” “digno”? Seria uma hipótese de estado de necessidade justificante?
4. A ótica do CPB
Como bem sabemos, nossa legislação penal infraconstitucional, Código Penal Brasileiro, foi concebido na década de 40, em um outro panorama social, não tendo o legislador à época cogitado da previsão de tal matéria de tão relevante cunho nos tempos globalizados.
A apreciação jurídico-penal da eutanásia, sem dúvida alguma, é uma das tarefas mais complicadas alçadas aos estudiosos do direito penal. Primeiro, pela falta de dispositivos legais positivados que versem objetivamente sobre a matéria. Segundo, porque a matéria guerreada invoca problemas de natureza existenciais sobre a vida e a morte que não podem ser, simplesmente, banalizados, nem tampouco regulados através de normas abstratas, ou ainda, específicas que sejam, criadas no calor de um caso. Restando para tanto a profícua lição do jurista alemão Claus Roxin, para quem “...o direito vive de situações cotidianas tipificáveis, nem sempre conseguindo, em sua necessária conceituação generalizante, dar tratamento adequado ao processo individual e irrepetível da morte.” [7] Em terceiro, há uma dificuldade imensa em se identificar e se chegar a um consenso sobre o que é permitido e o que é proibido na eutanásia, porque não se trata de matéria exclusivamente da seara penal, envolvendo neste enredo não só a opinio iures doctorum, mas toda uma gama de opiniões de cunho médico [8], filosófica, teológica e literária [9].
No Brasil a prática da eutanásia não está elencada, pelo menos de maneira expressa e objetiva, no Código Penal, mas, aplica-se a ela a figura típica prevista no art. 121, parágrafos e incisos, denominada pelo legislador de homicídio, em suas formas simples e/ou qualificada. Portanto, a prima face, é crime a sua prática, em qualquer hipótese. Eis a resposta à primeira indagação!
Entretanto, tramita no Senado Federal, um projeto de lei 125/96, elaborado desde 1995, que estabelece critérios para a legalização da "morte sem dor". O projeto prevê a possibilidade de que pacientes terminais irreversíveis e com sofrimentos físicos insuportáveis, possam solicitar que sejam realizados procedimentos que visem a sua própria morte. E dispõe, ainda, que a autorização para este procedimento será dada por uma junta médica, composta por 5 membros, sendo, que, dois especialistas no problema do solicitante. Caso o paciente esteja impossibilitado de expressar a sua vontade, um familiar poderá solicitar à Justiça tal autorização.
Também está tramitando um Anteprojeto de Lei que alteraria os dispositivos do Código Penal e daria outras providências, legislando sobre a questão da eutanásia em dois itens do artigo 121:
“Homicídio
Art. 121. Matar alguém:
Pena - Reclusão, de seis a vinte anos.
...
Eutanásia
Parágrafo 3o. Se o autor do crime agiu por compaixão, a pedido da vítima, imputável e maior, para abreviar-lhe o sofrimento físico insuportável, em razão de doença grave:
Pena - Reclusão, de três a seis anos.”
E, por fim, dispositivo excludente de ilicitude para caso assemelhado ao da estadunidense Terri Schiavo, que dispõe:
“Exclusão de Ilicitude
Parágrafo 4o. Não constitui crime deixar de manter a vida de alguém por meio artificial, se previamente atestada por dois médicos, a morte como iminente e inevitável, e desde que haja consentimento do paciente, ou na sua impossibilidade, de ascendente, descendente, cônjuge, companheiro ou irmão.”
Vale lembrar, como paradigma, a legislação penal uruguaia baseada na doutrina estabelecida pelo ilustre penalista espanhol JIMENES DE ASÚA.
O Uruguai, como noticia o Prof. Goldim [10], pode ter sido um dos primeiro países do mundo a legislar sobre a possibilidade de ser realizada eutanásia. Sendo caracterizado o "homicídio piedoso", por aquela legislação penal, constante de seu art. 37 do capítulo III, que aborda a questão das causas de impunidade. [11]
Dessa forma, é facultado ao Juiz daquela nação a exoneração do castigo a quem realizou este tipo de procedimento, desde que preencha três condições básicas: ter antecedentes honráveis; ser realizado por motivo piedoso, e, que a vítima tenha feito reiteradas súplicas.
Esta proposta uruguaia, elaborada em 1933, é muito semelhante à utilizada na Holanda, a partir de 1993. Em ambos os casos, não há uma autorização para a realização da eutanásia, mas sim uma possibilidade de o agente do procedimento, cumpridas as condições básicas estabelecidas, ficar isento de punição.
Vale destacar, ainda, que de acordo com o artigo 315 deste mesmo Código, isto não se aplica ao suicídio assistido, quando uma pessoa auxilia outra a se suicidar. Nesta situação há a caracterização de um delito, sem a possibilidade de perdão judicial.
5. Estado de necessidade justificante?
Claus Roxin [12], um dos maiores intelectos da matéria, sob a ótica penal alemã, em seu estudo “Die strafrechtliche Beurteiling der Sterbehilfe” [13], levando em consideração o limite da responsabilidade médica nas diversas hipóteses de eutanásia, especialmente a passiva, objeto deste estudo, tendo como substrato o caso Terri Schiavo, tocou em pontos fundamentais para o esclarecimento de tais questões: a) A omissão ou suspensão de medidas prolongadoras da vida realizadas por médicos e não médicos por desejo do paciente; b) A omissão ou suspensão de medidas prolongadoras da vida realizadas por médicos contra o desejo do paciente versus o dever de prolongar a vida.
Perscrutando o âmago das teses laboradas pelo eminente mestre penalista alemão, fazendo um paralelo entre o Código Penal Alemão e o nosso CPB, chega-se a seguinte conclusão para os supracitados tópicos:
a) Na omissão ou suspensão de medidas prolongadoras da vida, por desejo do paciente: a hipótese clara é a do aparelho respiratório que é desligado por médico ou não médico a pedido do paciente – enfatiza, há que se observar o “princípio: quem decide é só o paciente”, pois em tais casos o StGB, não pune a conduta médica resultante de consentimento, visto que não é permitido tratar um paciente contra a sua vontade. Ao contrario do alemão, o CPB nesta hipótese, arrimado no art.146, § 3º,I e II, prevê o constrangimento medico impunível quando praticado em “...intervenção médica ou cirúrgica, sem consentimento do paciente ou de representante legal, se justificada por iminente perigo de vida”, e ainda, se praticada “...para impedir o suicídio”;
Vale aqui frisar o que declarou o BGHSt [14], em matéria penal: “inexiste um dever jurídico de manter a qualquer preço a vida que se esvai. Medidas de prolongamento da vida não são obrigatórias pelo simples fato de que sejam tecnicamente possíveis.”
Eis a resposta à segunda indagação! por outro lado:
b) Na omissão ou suspensão de medidas prolongadoras da vida, contra o desejo do paciente versus o dever de prolongar a vida: neste caso, há uma inversão da primeira hipótese, sendo, tanto pelo Código alemão, como pelo Código Brasileiro considerado homicídio ou omissão de socorro, pelos médicos ou parentes, em função da posição garantidora de ambos.
6. Conclusão
É forte o entendimento mundano ou empírico de que “tudo tem seus limites”, igualmente, no prolongamento artificial da vida deve haver uma fronteira. Se por um lado, a medicina aliada à tecnologia avançou e continua avançando, ao ponto, de conseguir através de modernos aparelhos prolongar a vida de pessoas. Doutro lado, não se pode olvidar os limites toleráveis da procrastinação de modo a indefinir o inevitável processo da morte, prolongando o sofrimento alheio e familiar, através de aparelhos de ponta, colidindo com a concepção de morte condizente com a dignidade humana.
No Brasil, analogamente, é emblemático o que ocorreu no Habeas Corpus nº 84.025-6/RJ, impetrado em nossa Suprema Corte – STF, sob a relatoria do ministro Joaquim Barbosa. A situação pode ser assim resumida: em Juízo, gestante não logrou a autorização para abreviar o parto. A via-crúcis prosseguiu e, então, no Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, a relatora, desembargadora Giselda Leitão Teixeira, concedeu liminar, viabilizando a interrupção da gestação, sendo o caso levado até ultima instância. Na oportunidade, salientou a Desembargadora: “A vida é um bem a ser preservado a qualquer custo, mas, quando a vida se torna inviável, não é justo condenar a mãe a meses de sofrimento, de angústia, de desespero.” [15] E, nesse ínterim, em sede de liminar, concedida por conduto de sua Excelência o relator Marco Aurélio, assim fez consignar: “os valores em discussão revestem-se de importância única. A um só tempo, cuida-se do direito à saúde, do direito à liberdade em seu sentido maior, do direito à preservação da autonomia da vontade, da legalidade e, acima de tudo, da dignidade da pessoa humana.”
Nesse diapasão, vale tomar como modelo o entendimento sedimentado do Eg. Superior Tribunal de Justiça, proferido em sede de RECURSO ESPECIAL, relatado pelo Ministro José Delgado, que assim fez consignar: “Estando em conflito a lei e a justiça, o Julgador deve estar atento ao atendimento desta última.” [16]
Por tudo que foi expendido nesse panorama movediço, excepcionalmente prolixo da eutanásia, deixo aqui minha humilde contribuição-reflexiva-jurídico-penal, que não é nem será, estando longe de querer ser a pedra jurídica-filosofal que porá fim a tal polemica, mas, com certeza, arrimado no que preconizava o provecto e sempre atual Ruy Barbosa, para quem “o trabalho fecundo não é o que realiza hoje, mas o que conserva seiva e vigor para ainda produzir e frutificar amanhã” [17], e, “lutar no presente pressentindo o futuro” [18], que me debrucei ao tema, para refletir, como acadêmico que sou, e futuro operador do direito, buscando, pelo menos, clarear tão obscuro tema.
[1] In “Como morremos: reflexões sobre o último capítulo da vida”. Rio de Janeiro: Rocco, 1995. pp. 283 e 286.
[2] SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico, Rio de Janeiro: Editora Forense, p. 328 , 1998.
[3] CF/88 – Art. 5º, III: “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante.”
[4] Termo do alemão que traduz literalmente “ajuda para morrer”.
[5] Idem, p.18 (Sublinhei)
[6] Terminologia aqui adotada para denominar as diversas camadas ideológicas da sociedade, aglutinadoras de dogmas: convicções, conceitos e/ou pré-conceitos filosóficos, religiosos,jurídicos, sociais e políticos.
[7] ROXIN, Claus. A apreciação jurídico-penal da eutanásia, in “Revista Brasileira de Ciências Criminais”, São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 8, n. 32, out./dez. de 2000, p.11.
[8] O paradigmático “Grundsatze der Bundesarztekammer zur arztlichem Sterbebegleitung” :Princípios da Câmara Federal dos Médicos alemães para o acompanhamento à morte (uma atenuação da dor que não resulte no encurtamento da vida).
[9] Nesse sentido ver INGENIEROS, José. La vaidad criminal y piedad homicida. (Homicídio por piedade, tiro de graça).
[10] In “http://www.bioetica.ufrgs.br/eutanuru.htm”
[11] leia-se, excludente de ilicitude.
[12] É jurista alemão.
[13] “A apreciação jurídico-penal da eutanásia”
[14] Bundesgerichtshof (Tribunal Federal da Alemanha)
[15] ADPF 54 MC / DF - DJ Data-02/08/2004 P – 00064, Relator Min. Marco Aurélio.
[16] REsp 194782/ES; 1998/0083915-1
[17] BARBOSA, Ruy. Lições de Ruy. Bahia: Imprensa Oficial da Bahia, p.II, 1949.
[18] Idem, p.II