O direito dos nubentes espíritas de se casarem perante dirigentes de centro espírita

O direito dos nubentes espíritas de se casarem perante dirigentes de centro espírita

Vivemos em um Estado Democrático de Direito onde não há espaço para discriminações ou interpretações desvirtuadas da lei, onde a liberdade de crença deve ser respeitada para que o direito atinja seu propósito maior.

Resumo

Vivemos em um Estado Demoicrático de Direito, onde não há espaço para discriminações ou interpretações desvirtuadas da lei, onde a liberdade de crença deve ser respeitada para que o direito atinja o seu propósito maior de reger com segurança as relações sociais.


1. Introdução

O objetivo deste trabalho é esclarecer aos estudiosos e interpretes do Direito a necessidade de se reconhecer aos adeptos da religião espírita o direito a se casarem perante o dirigente da sua casa espiritual, por estar tal direito embasado no princípio da isonomia, inserto no art. 5º da CRFB. Sendo para tanto, indispensável, compreender o que seja o espiritismo, o significado que a lei atribui ao vocábulo autoridade e o que a própria normatização entende por ministro religioso.


2. Disposição legal

LEI N. 6.015, DE 31 DE DEZEMBRO DE 1973

Dispõe sobre os registros públicos, e dá outras providências.

CAPÍTULO VII
Do Registro do Casamento Religioso para efeitos Civis


Art. 71. Os nubentes habilitados para o casamento poderão pedir ao oficial que lhe forneça a respectiva certidão, para se casarem perante autoridade ou ministro religioso, nela mencionando o prazo legal de validade da habilitação.

Art. 72. O termo ou assento do casamento religioso, subscrito pela autoridade ou ministro que o celebrar, pelos nubentes e por duas testemunhas, conterá os requisitos do artigo 71, exceto o 5°.

Art. 73. No prazo de trinta dias a contar da realização, o celebrante ou qualquer interessado poderá, apresentando o assento ou termo do casamento religioso, requerer-lhe o registro ao oficial do cartório que expediu a certidão.

§ 1° O assento ou termo conterá a data da celebração, o lugar, o culto religioso, o nome do celebrante, sua qualidade, o cartório que expediu a habilitação, sua data, os nomes, profissões, residências, nacionalidades das testemunhas que o assinarem e os nomes dos contraentes.

§ 2º  Anotada a entrada do requerimento, o oficial fará o registro no prazo de 24 (vinte e quatro) horas.

§ 3º A autoridade ou ministro celebrante arquivará a certidão de habilitação que lhe foi apresentada, devendo, nela, anotar a data da celebração do casamento.


3. Análise do dispositivo legal que faculta o casamento religioso com efeito civil

Pelo quanto estabelecido no citado dispositivo legal, que faculta, qualquer nubente, independente, portanto de credo, a ser casado perante autoridade ou ministro religioso, observamos que ao editar tal dispositivo, o legislador, o fez com a intenção inequívoca de propiciar àquele que quiser contrair casamento, tido este, “como contrato solene entre um homem e uma mulher visando colocar sob a sanção da lei a sua união sexual e a prole dela resultante”, a opção de celebrá-lo dentro da sua comunidade religiosa, participando-o àqueles com os quais se identifica em preceitos morais e aos quais está ligado por laços de afinidade, o compromisso assumido e que será disciplinado por preceitos legais ditados pelo Estado.

Desta forma, o legislador, condicionou implicitamente para a legalização da realização do ato, que o celebrante seja uma autoridade ou um ministro religioso.


4. O que se entende por autoridade

Autoridade significa o direito e a capacidade de comandar, fazer leis, exigir obediência e julgar. Em outras palavras, autoridade é o fundamento ou o padrão que temos para distinguir o certo do errado. Em todas as áreas tem que haver um padrão de autoridade. Para as distâncias, a autoridade é o metro, para o peso a balança; para o tempo, o relógio; para a escola, o diretor; para a aplicação da lei, o Juiz ; para a edição da lei, o legislador; para a polícia, o delegado, para a religião o ministro religioso, dependemos da autoridade para tudo que realizamos porque sem autoridade somente haverá confusão e anarquia. O psicanalista Jurandir Freire Costa, do Instituto de Medicina Social da UERJ em palestra na qual se discutiu o tema “Mudanças do Brasil Contemporâneo” afirmou a existência de três tipos de autoridade: a autoridade tradicional, da tradição em geral, que se ancora na extensão temporal, em seu próprio passado e duração, para afirmar a sua legitimidade, encontrando-se, segundo ele, dentre esta, as autoridades das crenças religiosas, aquelas que se afirma de uma idéia cristalizada em instituições e que forma gerações e gerações pelo peso de sua duração, pelo fato de terem atravessado o teste do tempo. A autoridade legal, racional, ou seja a autoridade que se ancora numa lei explicitamente aceita, consentida, pelos membros que formam aquela comunidade, está é a autoridade tipicamente do Direito, da Polícia, da Justiça e por fim, a autoridade de vidas exemplares, chamada por Welber de autoridade carismática, sendo ela a autoridade de uma pessoa. Aquela pessoa que encarnam para nós, não exatamente aquilo que a lei obriga, que a lei manda, mas indivíduos que podendo fazer o pior, fazem o melhor, que podendo se contentar com o “feijão e o arroz” de suas obrigações religiosas ou como cidadãos, ultrapassam esse limite pelo bem e possuem força de nos inspirar, embora não tenham nenhum poder de dissuasão física ou legal para nos coibir, preparando os sujeitos para aceitarem a autoridade da tradição ou a autoridade da lei.

O legislador brasileiro não estabeleceu no artigo da lei que tipo de autoridade se encontra apta a celebrar o casamento religioso com efeito civil, menciona apenas no texto legal o vocábulo “ autoridade” dando a entender que esta poderá ser a tradicional, a legal ou até mesmo a carismática. Quisesse o legislador designar o tipo de autoridade a legitimar o ato, o teria feito como fez no art. 1.514 do Código Civil, ao atribuir ao Juiz a legitimidade para a celebração do casamento civil – autoridade legal.


5. O que se entende por ministro religioso

O Ministério do Trabalho e Emprego – MTE, elaborou e atualizou a classificação brasileira de ocupações –CBO em conjunto com o IBGE.

A classificação brasileira de ocupações – CBO é o documento normalizador do reconhecimento, da nomeação e da codificação dos títulos e conteúdos das ocupações do mercado de trabalho brasileiro, sendo uma classificação enumerativa e descritiva.

A função enumerativa da CBO é utilizada em registros administrativos como Relação Anual de Informações Sociais – RAIS, Cadastro Geral de Empregados e Desempregados – Cged, Seguro Desemprego, Declaração de Imposto de Imposto de Renda de Pessoa Física- Dirpf, dentre outros.

A função descritiva é utilizada nos serviços de recolocação de currículos e na avaliação de formação profissional, nas atividades educativas das empresas e dos sindicatos, nas escolas, nos serviços de imigração, enfim em atividades em que informações do conteúdo do trabalho sejam requeridas.

Pois bem, dentro da classificação brasileira de ocupações, encontramos a 2631-5 – Ministros de culto religioso e nela, encontramos como tal definidos: Abade, Abadessa, Administrador apostólico, Administrador paroquial, Agaipi, Agbagigan, Agente de pastoral, Agonjaí, Alabê, Alapini, Alayan, Ancião, Apóstolo, Arcebispo, Arcipreste, Axogum, Babá de umbanda, Babakekerê, Babalawô, Babalorixá, Babalossain, Babaojé, Bikkhu, Bikkuni, Bispo, Bispo auxiliar, Bispo coadjutor, Bispo emérito, Cambono, Capelão, Cardeal, Catequista, Clérigo, Cônega, Cônego, Confessor, Cura, Curimbeiro, Dabôce, Dada voduno, Dáia, Daiosho, Deré, Diácono, Diácono permanente, Dirigente espiritual de umbanda, Dom, Doné, Doté, Egbonmi, Ekêdi, Episcopiza, Evangelista, Frade, Frei, Freira, Gaiaku, Gãtó, Gheshe, Humbono, Hunjaí, Huntó, Instrutor de curimba, Instrutor leigo de meditação budista, Irmã, Irmão, Iyakekerê, Iyalorixá, Iyamorô, Iyawo, Izadioncoé, Kambondo pokó, Kantoku (diretor de missão), Kunhã-karaí, Kyôshi (mestre), Lama budista tibetano, Madre superiora, Madrinha de umbanda, Mameto ndenge, Mameto nkisi, Mejitó, Meôncia, Metropolita, Ministro da eucaristia, Ministro das ezéquias, Monge, Monge budista, Monge oficial responsável por templo budista (Jushoku), Monsenhor, Mosoyoyó, Muézin, Muzenza, Nhanderú arandú, Nisosan, Nochê, Noviço , Oboosan, Olorixá, Osho, Padre, Padrinho de umbanda, Pagé, Pároco, Pastor evangélico, Pegigan, Pontífice, Pope, Prelado, Presbítero, Primaz, Prior, Prioressa, Rabino, Reitor, Religiosa, Religioso leigo, Reverendo, Rimban (reitor de templo provincial), Roshi, Sacerdote, Sacerdotisa,Seminarista, Sheikh, Sóchó (superior de missão), Sokan, Superintendente de culto religioso, Superior de culto religioso, Superior geral, Superiora de culto religioso, Swami, Tata kisaba, Tata nkisi, Tateto ndenge, Testemunha qualificada do matrimônio, Toy hunji, Toy vodunnon, Upasaka, Upasika, Vigário, Voduno (ministro de culto religioso), Vodunsi (ministro de culto religioso), Vodunsi poncilê (ministro de culto religioso), Xeramõe (ministro de culto religioso), Xondaria (ministro de culto religioso), Xondáro (ministro de culto religioso), Ywyrájá (ministro de culto religioso)

Tais ministros realizam liturgias, celebrações, cultos e ritos, dirigem e administram comunidades; formam pessoas segundo preceitos religiosos das diferentes tradições; orientam pessoas; realizam ação social junto a comunidade; pesquisam a doutrina religiosa; transmitem ensinamentos religiosos, praticam vida contemplativa; preservam a tradição e , para isso é essencial o exercício de competências pessoais específicas. Podem desenvolver as suas atividades como consagrados ou leigos, de forma profissional ou voluntária, em templos, igrejas, sinagogas, mosteiros, casas de santo e terreiros, aldeias indígenas, casas de culto etc. Estando também presentes em universidades e escolas, centros de pesquisa, sociedades beneficentes e associações religiosas, organizações não governamentais, instituições públicas e podem dentre outras atribuições, celebrar casamentos.

Encontramos destarte, dentro desta classificação, o catequista. Diz-se catequista a pessoa que catequiza, que explica o catecismo e o vocábulo Catecismo, segundo o dicionário Aurélio, significa livro elementar de instrução religiosa, doutrinação elementar sobre qualquer ciência.


6. O espiritismo e sua instrução religiosa

A palavra Religião, vem do latim religio, cognato de religiare, “ligar” “apertar”, “atar”, com referência a laços que unam o homem a divindade, é como um conjunto de relações teóricas e práticas estabelecidas entre os homens e uma potência superior, à qual se rende culto, individual ou coletivo, por seu caráter divino e sagrado. Assim a religião constitui um corpo organizado de crenças que ultrapassam a realidade da ordem natural e que tem por objeto o sagrado ou sobrenatural, sobre o qual elabora sentimentos, pensamentos e ações.

As religiões têm como característica comum o reconhecimento do sagrado (definição do filósofo e teólogo alemão Ruldof Otto) e a dependência do homem de poderes supramundanos (definição do teólogo alemão Frederich Schleiermacher), nas religiões estão implícitas a idéia da existência de ser ou seres superiores que criaram e controlam o cosmo e a vida humana.

A crença na sobrevivência do espírito após a morte do corpo físico e o princípio da reencarnação são as bases da doutrina conhecida como espiritismo, movimento religioso que surgiu na França e se expandiu pelo mundo, notadamente no Brasil.

O espiritismo como doutrina surgiu a partir da publicação na França, de Le Livre des esprits (1857; O livro dos espíritos), de Allan Kardec, pseudônimo do professor Hippilyte Léon Denizard Rivail. Considerada a obra básica do espiritismo, que codifica a doutrina espírita a qual se resume em cinco pontos:

1 – existência de Deus como inteligência cósmica responsável pela criação e manutenção do universo

2 – existência da alma ou espírito, envolvido pelo presispírito, que conserva a memória mesmo após a morte e assegura a identidade individual de cada pessoa.

3 - lei da reencarnação pela qual todas as criaturas retornam a vida terrena e vão, sucessivamente evoluindo no plano intelectual e moral, enquanto expiam erros do passado.

4 – lei da pluralidade dos mundos, isto é, da existência de vários planos habitados, que oferecem um âmbito universal para a evolução do espírito.

5 – lei do carma ou da causalidade moral, pela qual se interligam as vidas sucessivas do espírito dando-lhe destino condizente com os atos praticados.

A doutrina espírita não tem altares, cultos, sacerdotes ou rituais e não combate outras religiões. Afirma que todos são salvos, embora uns o sejam antes dos outros, de acordo com a evolução dos espíritos nas sucessivas encarnações. Seus preceitos morais pregam o amor ao próximo e a Deus, a caridade e o progresso contínuo do espírito humano.

O Brasil é considerado o maior país espírita do mundo. Denominado Kardecismo em homenagem ao seu codificador, o espiritismo no Brasil começou em Salvador – Bahia em 1865 e a partir de 1877 foram fundadas as primeiras comunidades espíritas, como a Congregação Anjo Ismael, Grupo Espírita Caridade, Grupo Espírita Fraternidade. Em 1883, Elias da Silva fundou a Federação Espírita Brasileira, que adquiriu grande projeção na gestão de Adolfo Bezerra de Menezes Cavalcante. Ao lado da difusão da doutrina espírita, as organizações espíritas brasileiras realizam um amplo trabalho assistencial social e fraternidade humana com manutenção de asilos e outras instituições.


7. Da legitimidade do dirigente de centro espírita para celebrar casamento

Diante de tudo que foi abordado, não existe a menor dúvida de que, o espiritismo é uma religião, que tem como livro elementar de instrução religiosa o Livro dos Espíritos de Alan Kardec, o qual codifica a doutrina, o que torna o dirigente de Centro Espírita um catequista e como tal ministro religioso dentro da classificação brasileira de ocupações dada pelo Ministério do Trabalho e Emprego – CBO, apto legalmente, em face do quanto dispõe o art. 71 da Lei. 6.015/73 a celebrar casamentos.


8. Conclusão

Não se pode desta forma, vedar ao nubente espírita, o direito de celebrar contrato matrimonial perante o seu catequista, isto porque, além de estar este, investido no título de autoridade tradicional, como chefe de crença religiosa é também considerado ministro religioso por força de normatização ministerial fulcrada no art. 87 inciso II da CRFB. Observe-se ainda, que a norma constitucional consagra o princípio da igualdade, pedra angular do Estado Democrático de Direito, ao estabelecer no seu art. 5º “ Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza” indo mais além no inciso VIII quando assevera: “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei.”

O nubente espírita tem o direito de se casar dentro da sua comunidade religiosa, como o tem os católicos, os umbandistas, os evangélicos etc , tem também o direito de ter o seu casamento celebrado pelo seu catequista. Na mesma linha de raciocínio, o dirigente de Casa ou Centro Espírita, tem o direito , que por lei lhe é conferido, além do dever moral imposto pela própria doutrina que prega, de celebrar os casamentos de membros da sua comunidade, quando lhe for solicitado. A vedação de tal direito ao nubente espírita, ou ao catequista, cai na discriminação de credo, e soa como imposição de uma sanção, em razão da condição de acreditar em Deus como o infinito, imponderável, inefável, e inimaginável.


Referências

Classificação Brasileira de Ocupações – CBO 2002

www.alerj.rj.gov.br/top ciclo_conf_palestra

Holanda, Aurélio Buarque de – Dicionário da língua portuguesa

Lei 6.515 de 1.12.197

Gomes, Orlando. Direito de Família.Forense.Rio de Janeiro. 1978. p.58

Código Civil Brasileiro – Lei 10.406 de 10.01.2002

CRFB – Constituição da República Federativa do Brasil de 05.10.1988

Sobre o(a) autor(a)
Soraya Moradillo Pinto
Juiz
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