Sigilo Bancário, Direitos Fundamentais e o Crime Organizado

Sigilo Bancário, Direitos Fundamentais e o Crime Organizado

O instituto do sigilo bancário somado aos direitos fundamentais garantidos pela Constituição Federal e o combate ao crime organizado.

E mbora a Constituição Federal do Brasil não cuide diretamente do sigilo bancário, esta demonstra extremo cuidado com o direito à intimidade, à privacidade e à transmissão de dados. São nesses direitos, garantidos pela Lei Maior, em que, inicialmente, insere-se o direito ao sigilo bancário, diante da discricionariedade com que podem ser tratadas a privacidade e a intimidade no texto constitucional.

Portanto, é evidente que o debate maior se centraliza na inserção ou não do sigilo bancário como garantia constitucional, pois, se em vários países é assunto de direito infraconstitucional, no direito pátrio a doutrina e jurisprudência majoritária insistem em colocar este assunto como atrelado à Constituição Federal.

O sigilo bancário, de forma alguma, deve ser encarado como direito absoluto, pois comporta certas limitações. A divergência reside no aspecto do procedimento que deve ser tomado e de quem ele deve partir para ser quebrado. O Poder Legislativo vem constantemente legiferando no sentido de conferir ao Ministério Público a prerrogativa de quebrar o sigilo bancário por livre-iniciativa, isso em razão do ponto de vista em que se alicerçam, do qual enxergam que a atividade comercial estaria elencada no direito privado, porém, afirmam que nem clientes nem comerciantes podem comercializar tendo por objeto atividade ilícita, de forma que passará da esfera privada para a pública em razão da ofensa da legalidade e em especial, do bem comum da sociedade.

Com a existência da Lei Complementar n.º 75/93 e o surgimento da Lei Complementar n.º 105, de 10 de janeiro de 2001, demonstraram-se avanços significativos em relação à quebra do sigilo bancário, eis que se autoriza tal medida quando o interesse público se sobressai ante o privado. Há efetiva convicção de que esta nova roupagem normativa é direcionada à repressão do crime organizado, visando desta forma garantir a transparência das transações monetárias e evitar que afrontem a legalidade do Estado.

Sob este prisma é que se insere a importância deste procedimento para o Ministério Público. Como tal instituição, preza pela colheita de provas contundentes, a nova modelagem que transparece ao sigilo bancário traz inúmeros benefícios à produção probatória e evidentemente uma melhor e profunda investigação, que em primeiro plano traria resultados rápidos e satisfatórios. Porém, isto se opera, em contrapartida, com o enfraquecimento dos direitos individuais constitucionais.

Por estas razões, cumpre indagar, se interessa manter o sigilo bancário no campo constitucional, pois posta-se frente ao Ministério Público como grande empecilho à obtenção de provas de atividades ilícitas, dado que a subsunção do pedido de quebra do sigilo bancário ao Judiciário, oferta tempo necessário aos abusadores dessa premissa para que movimentem os lucros obtidos ilicitamente rapidamente, apagando os vestígios necessários para a comprovação da ilicitude.

Por outro lado, põe-se sob o fio da navalha a manutenção do Estado Democrático de Direito, tendo em vista que é matéria quase que pacífica que ao Poder Judiciário é dada permissão constitucional para excepcionar o sigilo bancário, em situações concretas de conflito entre interesse privado e público.

Ao Poder Judiciário cabe, em síntese, a função de dizer o direito, ou seja, dirimir conflitos de interesses. Denomina-se tal função como jurisdição. A função precípua de dizer o direito, ou seja, de exercer jurisdição decorre do instituto jurídico da "coisa julgada", que proporciona a força e a solidez necessária à decisão judicial, em última instância, porquanto garante a imutabilidade dos efeitos da sentença, nos termos do artigo 5.º, inciso XXXVI, da Constituição Federal.

Além disso, a função jurisdicional encontra respaldo no princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional (art. 5º, inciso XXXV, CF), segundo o qual o Poder Judiciário tem o dever de prestar a tutela jurisprudencial postulada, seja negativa ou positiva.

Nesse contexto, ensinam Paulo QUEZADO e Rogério LIMA que:

Infere-se, portanto, da própria natureza da função do Poder Judiciário, que a este cabe, mesmo sem autorização expressa constitucional, excepcionar o direito fundamental à privacidade de quem quer que seja, diante de situações especiais em que haja verdadeiro comprometimento do interesse público. Isto porque o Judiciário foi criado, justamente, com a finalidade primordial de solucionar os conflitos em sociedade, resguardando a harmonia do ordenamento jurídico. [1]

Em uma primeira análise da quebra do sigilo bancário, parece um absurdo o ataque a esses direitos já consagrados. Isso comprova o que aduz o eminente autor Nelson ABRÃO, ao frisar em sua obra que É instintivo à natureza humana o desejo de manter certa discrição no que concerne à posse e disponibilidade dos bens materiais” [2].

Pertinente então, questionar sobre qual é a verdadeira natureza do sigilo bancário e até onde ele é englobado pelas emanações provenientes dos direitos constitucionais.

Como ponto de partida, cita-se que a preservação do Estado Democrático do Direito como fundamento à validade da atividade incriminadora têm caráter prioritário. A busca de meios para reprimir a criminalidade com condutas que exponham ao dano o sigilo bancário devem ser analisadas em um contexto de índole social e ordem econômica, dando ênfase máxima a estas duas figuras presentes no diploma normativo, pois são pressupostos lógicos de uma vida social organizada.

De todo o exposto, constata-se a existência de dois posicionamentos distintos em relação à natureza do sigilo bancário. A primeira insere o sigilo bancário no direito à intimidade e privacidade, ambos previstos na Constituição Federal, delimitando que o patrimônio é uma projeção de sua personalidade, porquanto, trata-se de cláusula pétrea, imune às modificações propostas por emendas constitucionais ou edição de leis que versem sobre este assunto e que vão de embate à sua natureza. A segunda corrente entende que o sigilo bancário é uma faceta da atividade comercial, e embora mais afeta à vida privada, produz efeitos na ordem pública, o que, mesmo com a inclusão do sigilo bancário no artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal, pode ceder frente à necessidade da apuração de crimes financeiros pelo Ministério Público Federal em razão de ser interesse da coletividade.

Vale frisar que o controle sobre o produto ou proveito da infração penal, sem dúvida alguma, é um meio efetivo de combate à criminalidade. Por exemplo, uma grande variedade de delitos como o tráfico de armas, tráfico de drogas, contrabando, extorsão mediante seqüestro, corrupção, são comumente associados e identificados com as organizações criminosas, cuja única finalidade é a obtenção de lucro à margem da legalidade. Neste aspecto, o controle rígido sobre a lavagem de dinheiro é uma medida eficaz de repressão ao crime, ainda mais numa época em que se vive um incremento da criminalidade, que vem gerando uma exigência enorme da população por políticas criminais severas que representem respostas estatais eficazes garantindo a segurança pública e a manutenção do Estado de Direito.

No entanto, a busca dessa maior eficácia da repressão penal não pode ser realizada com a restrição dos direitos individuais conquistados ao longo dos séculos de afirmação dos direitos humanos e à custa de imensos sacrifícios. A criação de subterfúgios para restringir os direitos constitucionais pode ser muito mais perigoso do que rasgar escancaradamente a Constituição Federal, pois dessa maneira está se desconstituindo um Estado Democrático de Direito por aquilo que o faz ser o que é, ou seja, através das leis.

Destarte, uma proposta como a que está sendo publicamente ventilada, segue a direção contrária preconizada pelos modernos Estados Democráticos de Direito porque visa retirar do Poder Judiciário precisamente o que constitui sua mais importante função: a função de coibir abusos, de prevenir excessos e de atuar como legítimo guardião dos direitos e das liberdades fundamentais, sem o que não há democracia.

E é dessa forma que os menos desavisados, os quais proclamam que o direito ao sigilo bancário não passa de um direito burguês, estão dando início a uma desestruturação democrática, pois a Lei 4.595/64 (Lei do Sistema Financeira Nacional revogada pela Lei Complementar n.º 105/01) permitia a quebra do sigilo bancário, não obstante preconizar a legalidade e ser moralmente aceita.

Diga-se, no entanto, que existe uma única possibilidade razoável de o Ministério Público quebrar diretamente o sigilo bancário quando o caso envolver verbas públicas, em razão de que ato de órgão ligado ao governo, direta ou indiretamente, como a origem já indica, é público. Por isso a obediência ao princípio da publicidade. Sendo o assunto dinheiro público, maior razão há de transparência em sua administração, pois, do contrário, estará comprometido o próprio Estado Democrático de Direito.

Explica-se, se o sigilo bancário está entre os direitos individuais, e, por isso, só podendo ser quebrado excepcionalmente, com a "coisa pública dá-se o inverso" - afirma o Prof. Hugo de Brito MACHADO. "O princípio é o da publicidade, e só excepcionalmente prevalece o sigilo" [3]. Em suma para o campo do direito privado a exceção é a publicidade; para o campo do direito público, a privacidade.

Por fim, frisa-se que vivemos sob a sombra de um sistema positivo, estando à mercê de uma constituição, que é instrumento de proteção das pessoas, e não de sua submissão, afirmando seu compromisso com a cidadania, e não com o poder opressor. Não se deve sacrificar a segurança jurídica do cidadão comum perante um Estado onipotente e onipresente, que mostra mais interesse em atingir seus fins sem se preocupar com os meios utilizados, freqüentemente desrespeitando preceitos constitucionais consagradores dos direitos e garantias individuais e coletivos, além de utilizar-se do fantasma da criminalidade para tentar impor ou justificar violências que ele mesmo comete contra os direitos dos cidadãos.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


ABRÃO, Nelson. Direito bancário. 7.ª ed. revista, atualizada e ampliada por Carlos Henrique Abrão. São Paulo: Saraiva, 2001. 

MACHADO, Hugo de Brito Machado. Uma Introdução ao Estudo do Direito. 4.ª ed. São Paulo:Saraiva, 1990.

QUEZADO, Paulo; LIMA, Rogério. Sigilo Bancário. 5.ª ed. São Paulo: RT, 2001.



[1] QUEZADO, P.; LIMA, R. Sigilo Bancário, pág. 54.

[2] ABRÃO, N. Direito Bancário, p. 65.

[3] MACHADO, H. de B. M. Uma Introdução ao Estudo do Direito, p. 250.

Sobre o(a) autor(a)
Rafael Pereira Gabardo Guimarães
Bacharel em Direito
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