Provas ilícitas e a jurisprudência do STF
Há uma certa celeuma a respeito do sistema de adoção de provas no sistema brasileiro, notadamente no que concerne à interpretação do disposto no art. 5°, inc. LVI, da CF que especifica a inadmissibilidade das provas ilícitas.
1. Introdução
Há uma certa celeuma a respeito
do sistema de adoção de provas no sistema brasileiro,
notadamente no que concerne à interpretação do
disposto no art. 5°, inc. LVI, da CF que especifica a
inadmissibilidade das provas ilícitas. O que se procurará
apresentar neste artigo são considerações que
buscam trazer um balizamento seguro para o tema levando em
consideração a doutrina e a jurisprudência
dominante além, é claro, do posicionamento de seu autor
que, pode não ser adotado pelo leitor mas certamente levará
a discussão ao seu adequado campo da prática
processual.
2. Da limitação aos
direitos fundamentais
Como regra geral os direitos
fundamentais podem ser objeto de restrição mesmo quando
expressamente não previsto no texto constitucional. Há
aquelas hipóteses em que o legislador constituinte já
promoveu o adequado balizamento impondo limites ao direito
fundamental, como é o caso, v.g., do sigilo das comunicações
telefônicas que, pelo disposto no art. 5°, inc. XII, da CF,
somente por ordem judicial e desde que para investigação
criminal ou instrução processual penal é que se
poderá promover a quebra do sigilo das comunicações
telefônicas e tudo nos termos do que vier a ser definido em
lei.
Ao se investigar o texto
constitucional há de se perquirir se é possível
a limitação dos direitos fundamentais quando não
houver explícita previsão constitucional. A resposta se
impõe afirmativa eis que os direitos fundamentais são,
como regra geral, relativos. Afirmar o absolutismo dos direitos
fundamentais como regra geral é promover uma negação
geral dos próprios direitos fundamentais na medida em que o
exercício absoluto de um direito fundamental conduziria à
completa anulação dos direitos fundamentais de
terceiros. Exemplificando: se o direito fundamental de livre
manifestação do pensamento não pudesse sofrer
restrições, a ninguém seria dado o direito de
invocar a tranqüilidade de seu lar para impedir, por exemplo,
que alguém, usando amplificador de som, expusesse seu
pensamento a qualquer ora do dia ou da noite. É claro que os
direitos fundamentais exigem, para sua interpretação,
uma compatibilização para se evitar colidência
insuperável, pois os direitos fundamentais terão,
necessariamente momentos de colisão mas que devem ser
resolvidos sem sua anulação. Aí reside o
relativismo dos direitos fundamentais.
Quando a relativização
dos direitos fundamentais vem expressamente prevista no texto
constitucional, isso não gera qualquer dificuldade para o
intérprete uma vez que a taxatividade constitucional supera
qualquer dúvida quanto ao problema. A dúvida surge, no
entanto, naquelas hipóteses em que o constituinte não
contemplou a possibilidade de limitação ao direito
fundamental de forma expressa, cabendo ao intérprete, nesses
casos, buscar a solução à luz da hermenêutica
constitucional, que nem sempre é de fácil compreensão.
Uma coisa é certa, porém:
a ausência de previsão constitucional expressa não
pode ser interpretada como impossibilidade de limitação.
A limitação pode ocorrer nesses casos, desde que
pautada em balizas seguras que darão ao intérprete
constitucional elementos delimitadores para justificar a limitação
de um direito fundamental.
Inicialmente deve ser identificada a
motivação hábil a justificar a limitação
de um direito fundamental. Aqui solução é
facilmente estabelecida pelo intérprete na medida em que o
direito fundamental poderá ser limitado com vista à
preservação de outro direito fundamental ou de um
interesse coletivo.
Outro elemento, este sim mais
complexo, que deve ser atendido pelo intérprete reside no
seguinte questionamento: até que ponto um direito fundamental
pode sofrer restrições?
Aqui temos que investigar o princípio
da proporcionalidade em seu critério de razoabilidade. Toda
norma constitucional, quando sofre limitações deve
preservar seu núcleo central. Quando o texto magno informa, em
seu art. 9°, § 2°, que o trabalhador em greve será
punido quando incorrer em abuso, é evidente que o legislador
infraconstitucional, ao editar a lei referida não pode punir o
grevista por todo e qualquer ato que repute, a seu juízo,
abusivo. O juízo de avaliação do que é
abusivo deve ser feito preservando o núcleo essencial da
constituição sobre o tema, que é o direito de
fazer greve. E como isso será alcançado? Promovendo um
juízo de razoabilidade com o objetivo de que a norma
regulamentadora proporcione os meios hábeis a se alcançar
os fins constitucionais (princípio da proporcionalidade pelo
critério da razoabilidade).
Com essas rápidas considerações
conclui-se que: os direitos fundamentais, como regra geral, podem
sofrer limitações e tais ao serem exercitadas dever
respeitar o princípio da proporcionalidade. Em apertada
síntese: os limites impostos aos direitos fundamentais são
limitados pelo princípio da proporcionalidade a fim de
preservação do conteúdo nuclear da norma
constitucional.
Em razão disso, se discute a
possibilidade de relativização da garantia
constitucional de inadmissibilidade das provas ilícitas.
3. Da proteção
constitucional das provas ilícitas
Reza o art. 5°, inc. LXVI, da CF que: “São inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meio ilícito;”.
Discute-se da possibilidade ou não desse preceito constitucional ter caráter absoluto.
Inicialmente façamos aqui
algumas considerações sobre a terminologia
constitucional.
O texto constitucional é claro
e taxativo ao vedar, por completo, a utilização de
provas obtidas por meio ilícito assim, não há
que se falar em mitigação, abrandamento, do preceito
constitucional que veda o uso de provas ilícitas. E não
se argumente, como querem alguns, que as provas ilícitas
podem, em alguns casos (quando a única e quando para
beneficiar o réu) possam ser utilizadas. Não! Sou da
compreensão da absoluta e irrestrita inadmissibilidade das
provas obtidas ilicitamente. Esse posicionamento não é
isolado, ao contrário, encontra respaldo irrestrito da
jurisprudência do Excelso Supremo Tribunal Federal.
O que muitos não compreendem
talvez é a afirmação de que: a prova quando
produzida para defesa própria pode ser utilizada. Sim, pode, e
quando tal ocorre não se está utilizando prova ilícita
mas sim prova lícita. Ora, se se produz uma prova em legitima
defesa (como é comum se ouvir) não se está
admitindo uma prova ilícita em caráter excepcional, mas
sim está-se a admitir uma prova lícita pela forma como
foi produzida.
Explica-se!
O que é a legítima
defesa que não a extração da ilicitude da
conduta? Pois bem! Quando alguém produz uma prova em legítima
defesa exclui-se a ilicitude para torná-la lícita.
Nesta situação não há que se falar em
prova ilícita admitida, mas sim em prova produzida de forma
lícita e, portanto, admitida.
Outro, aliás, não é
o posicionamento do Supremo Tribunal Federal, que reiteradamente
rechaça o uso de provas ilícitas e, como não
poderia ser de outro modo confirma o uso de provas lícitas
decorrentes de condutas que, em regra seriam ilícitas mas que
ganham status de lícitas quando produzidas para uso em
defesa de interesse próprio, verbis:
"EMENTA:
CONSTITUCIONAL. PENAL. GRAVAÇÃO DE CONVERSA FEITA POR
UM DOS INTERLOCUTORES: LICITUDE. PREQUESTIONAMENTO. Súmula
282-STF. PROVA: REEXAME EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO:
IMPOSSIBILIDADE. Súmula 279-STF. I. - gravação
de conversa entre dois interlocutores, feita por um deles, sem
conhecimento do outro, com a finalidade de documentá-la,
futuramente, em caso de negativa, nada tem de ilícita,
principalmente quando constitui exercício de defesa. II. -
Existência, nos autos, de provas outras não obtidas
mediante gravação de conversa ou quebra de sigilo
bancário. III. - A questão relativa às provas
ilícitas por derivação "the fruits of the
poisonous tree" não foi objeto de debate e decisão,
assim não prequestionada. Incidência da Súmula
282-STF. IV. - A apreciação do RE, no caso, não
prescindiria do reexame do conjunto fático-probatório,
o que não é possível em recurso extraordinário.
Súmula 279-STF. V. - Agravo não provido" (AI
50.367-PR, 2ª. Turma. Rel. Min. Carlos Velloso. J. 01/02/05. DJ
04/03/05.). (sem grifo no original).
Assim, é incorreto afirmar que,
em alguns casos, a provas ilícitas são admitidas. Não!
As provas ilícitas nunca são admitidas, e nesse
contexto a norma constitucional não admite temperamentos.
E porque tal posicionamento?
Admitir que o Estado, na sua função
jurisdicional, admita prova ilícitas é jogar na vala da
ilegalidade e da lei da selva todos os investigados e/ou processados
e, o que é mais grave, os simples suspeitos, fazendo com que a
segurança jurídica dos cidadãos de bem seja
colocada em plano secundário gerando inquestionável
descrédito no próprio Estado que passaria a utilizar-se
de provas ilicitamente produzidas colocando-se no mesmo patamar
daqueles que descumprem a lei.
Em lapidar decisão proferida nos autos do RE n° 251.445 o Ministro Celso de Mello bem abordou o tema da absoluta proscrição da provas ilícitas que, pela lucidez da manifestação, trago à colação:
“Assentadas tais premissas, devo reiterar, na linha de diversas decisões por mim proferidas no âmbito desta Corte Suprema, que ninguém pode ser denunciado, processado ou condenado com fundamento em provas ilícitas, eis que a atividade persecutória do Poder Público, também nesse domínio, está necessariamente subordinada à estrita observância de parâmetros de caráter ético-jurídico cuja transgressão só pode importar, no contexto emergente de nosso sistema normativo, na absoluta ineficácia dos meios probatórios produzidos pelo Estado. Impõe-se registrar, até mesmo como fator de expressiva conquista dos direitos instituídos em favor daqueles que sofrem a ação persecutória do Estado, a inquestionável hostilidade do ordenamento constitucional brasileiro às provas ilegítimas e às provas ilícitas. A Constituição da República, por isso mesmo, tornou inadmissíveis, no processo, as provas inquinadas de ilegitimidade ou de ilicitude.”
Assim, e ancorado na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, não há como defender a admissão de provas com violação da garantia constitucional que proporciona segurança jurídica ao jurisdicionado de que não poderão ser utilizadas provas produzidas de forma ilícita.
Outra coisa, porém, é utilizar-se de provas que, em princípio seriam ilícitas mas que, conforme o modo de sua produção, tornam-se provas lícitas.
É o caso da ementa acima transcrita onde se verifica que a gravação de diálogo por um dos interlocutores, quando ou outro não tem ciência, constitui-se em prova ilícita. Perderá, no entanto, o caráter de ilicitude se essa prova for produzida para defesa própria. Veja que não estamos aqui diante de mitigação do uso de provas ilícitas, pois tal possibilidade, como visto, não existe. Trata-se aqui do uso de uma prova lícita eis que produzida em legítima defesa.
Assim, se a pessoa, na busca de preservar direito próprio promove gravação de uma conversa (telefônica ou ambiental) como meio de defesa não estará praticando nenhuma ilicitude, mas sim agindo em legítima defesa. Não seria crível que, v.g., alguém submetido a uma situação de extorsão, não possa gravar a prática delituosa para usar como prova. Ora se se pode até mesmo tirar a vida de alguém no exercício da legítima defesa, com mais razão deve ser admitida a produção da referida gravação a fim de prevenir direitos e provas para defesa futura. Nesse sentido, aliás, o entendimento esposado pelo Supremo Tribunal Federal, verbis:
"Captação, por meio de fita magnética, de conversa entre presentes, ou seja, a chamada gravação ambiental, autorizada por um dos interlocutores, vítima de concussão, sem o conhecimento dos demais. Ilicitude da prova excluída por caracterizar-se o exercício de legítima defesa de quem a produziu. Precedentes do Supremo Tribunal HC 74.678, DJ de 15-8- 97 e HC 75.261, sessão de 24-6-97, ambos da Primeira Turma." (RE 212.081, Rel. Min. Octavio Gallotti, julgamento em 5-12-97, DJ de 27-3-98). No mesmo sentido: HC 75.338, Rel. Min. Nelson Jobim, julgamento em 11-3-98, DJ de 25-9-98.
Assim, aquele que está sendo submetido a algum constrangimento, especialmente se tal constrangimento for caracterizador de conduta ilícita, está sim autorizado a promover gravação dialógica (telefônica ou ambiental) por si ou por terceiros, desde que tal se dê para usar como instrumento de defesa e, para tal, não se exige autorização judicial pois não se trata de interceptação telefônica de que nos fala o art. 5°, inc. XII, in fine, da CF. Estamos aqui diante de situação em que um dos interlocutores está promovendo a gravação e, portanto, não há que se falar em autorização judicial prévia. Apenas para traçar parâmetro com outras condutas, indaga-se: É possível matar alguém de forma lícita? Claro! Quando no exercício do direito de defesa. Assim, e no mesmo tirocínio, indaga-se: é possível gravar a conversa sem o consentimento de um dos interlocutores de forma lícita? Sim, desde que no exercício do direito de defesa. Para as duas indagações a regra é a ilicitude mas o direito de defesa torna as condutas lícitas. Para promover a gravação
da relação dialógica por um dos interlocutores
(ou com o seu consentimento), não há a proteção
da denominada clausula de reserva jurisdicional até porque é
o próprio interlocutor quem está promovendo a gravação
e para defesa de direito seu em razão de estar sendo submetido
a situação caracterizadora de crime ou ao menos de
constrangimento e o que se procura com a gravação é
a preservação de situação probatória
que não se terá outra oportunidade para sua produção.
Repita-se, no entanto, que na esteira
da jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal, não
se está aqui a sustentar o uso de prova ilícita, mas
sim o uso de prova lícita que ganha esse status pelo
modo de sua produção (defesa própria).
4. Conclusão
Assim sendo, e à guisa de
conclusão, pode-se afirmar que a prova ilícita não
pode ser admitida em nenhuma situação, tendo pois, a
garantia constitucional insculpida no art. 5°, inc. LVI, da CF,
caráter absoluto.
Por outro lado, a prova que, em
princípio seria ilícita, pode tornar-se lícita
se for produzida em defesa própria, como é o caso da
gravação da relação dialógica
ambiental por um dos interlocutores (ou por terceiro mas com o seu
consentimento) desde que tal prova destine-se ao exercício do
direito de defesa.
Como se percebe, pois, a gravação ambiental de uma conversa por um dos interlocutores, quando os demais não tenham conhecimento, como regra geral deve ser tida como prova ilícita, contudo se a colheita dessa prova se dá no exercício do direito de defesa, é uma prova lícita, logo plenamente hábil a ser utilizada como instrumento probatório para comprovação de ilícitos praticados contra o interlocutor que promoveu ou autorizou a gravação.