A discricionariedade no Ato Administrativo

A discricionariedade no Ato Administrativo

Analisa a amplitude do poder discricionário no agir da Administração Pública sob o ponto de vista de diferentes autores.

1. Introdução

O Estado de Direito - fundamentado na supremacia da Constituição, na separação dos poderes, na superioridade da lei e na garantia dos direitos individuais - define, pelo ordenamento jurídico, os limites de sua atividade e a esfera de liberdade dos indivíduos. A separação dos poderes é o elemento lógico essencial do Estado do Direito, pois garante que o exercício do poder político seja dividido entre órgãos independentes e harmônicos que controlem uns aos outros. A cada um dos órgãos é dado o nome de poder, quais sejam, o Poder Legislativo, o Poder Executivo e o Poder Judiciário. A separação dos poderes corresponde a uma distinção de atividades (funções).i "A função administrativa ou executiva - pela qual o Estado presta os serviços necessários à ordem, segurança e bem-estar - se realiza dentro em normas criadas pela função legislativa ou normativa e asseguradas, coercitivamente, pela função jurisdicional."ii Cada função corresponde a uma espécie de ato ou norma estatal, a lei corresponde à função legislativa, o ato administrativo, à função administrativa e a sentença, à função jurisdicional.

A função administrativa do Estado deve ser exercida dentro dos limites da lei. Desta forma, o ato administrativo não pode inovar na ordem jurídica. Como norma situada abaixo da lei, ao ato administrativo cabe apenas a aplicação concreta da lei, dentro dos limites por ela estabelecidos. Há, portanto, um dever de observação do princípio da legalidade (art. 37, caput, CR/1988), que deve ser observado pelo Estado no exercício da autoridade que lhe é conferida. Caio Tácito, neste sentido, afirma que "autoridade e legalidade são conceitos antinômicos que, no entanto, se completam".iii


2. O Ato Administrativo

O ato administrativo é definido por Celso Antônio Bandeira de Mello como “declaração do Estado (ou de quem lhe faça as vezes – como por exemplo, um concessionário de serviço público), no exercício de prerrogativas públicas, manifestada mediante providências jurídicas complementares da lei a título de lhe dar cumprimento, e sujeitas a controle de legitimidade por órgão jurisdicional”iv. É uma espécie de ato jurídico dotado de características próprias como a condição de sua válida produção e a forma de eficácia que o individualizam.v


3. Ato Vinculado e Ato Discricionário

O ato administrativo é objeto de diversas classificações pela doutrina, conforme o critério em função do qual é agrupado. Dentre elas, segundo o critério do grau de liberdade da Administração em sua prática, os atos administrativos classificam-se em atos vinculados e atos discricionários.

Atos vinculados são aqueles praticados pela Administração sob a determinação de uma disposição legal que predetermina objetiva e completamente o comportamento a ser adotado em situação descrita. O administrador não dispõe de liberdade alguma e sua vontade é irrelevante.vi

Atos discricionários são aqueles em que o administrador, em razão da maneira com a matéria foi regulada pela lei, deve levar em consideração as circunstâncias do caso concreto, sendo inevitável uma apreciação subjetiva para cumprimento da finalidade legal.vii Há, portanto, certa esfera de liberdade que deverá ser preenchida de acordo com o juízo pessoal e subjetivo do agente a fim de satisfazer a finalidade da lei no caso concreto.viii

Celso Antônio Bandeira de Mello afirma que os atos discricionários são melhor denominados por atos praticados no exercício de competência discricionária, pois discricionário não é o ato, mas a “apreciação a ser feita pela autoridade quanto aos aspectos tais ou quais”.ix Discricionária é, portanto, a competência do agente, o ato é apenas o produto de seu exercício. Neste sentido, não há ato propriamente discricionário, mas discricionariedade por ocasião da prática.


4. A Discricionariedade

José Cretella Júnior define o poder discricionário como aquele que permite que o agente se oriente livremente com base no binômio conveniência-oportunidade, percorrendo também livremente o terreno demarcado pela legalidade. O agente seleciona o modo mais adequado de agir tendendo apenas ao elemento fim.x

Para Celso Antônio Bandeira de Mello a discricionariedade não é um poder atribuído em abstrato, mas um modo de disciplinar juridicamente a atividade administrativa. O autor define a discricionariedade como “a margem de liberdade conferida pela lei ao administrador a fim de que este cumpra o dever de integrar com sua vontade ou juízo a norma jurídica, diante do caso concreto, segundo critérios subjetivos próprios, a fim de dar satisfação aos objetivos consagrados no sistema legal”. Em resumo, é a liberdade circunscrita pela lei. E a lei pode deixar margem de liberdade quanto ao momento da prática, à forma, ao motivo, à finalidade e ao conteúdo.xi

Marçal Justen Filho define a discricionariedade como um “dever-poder de decidir segundo a avaliação da melhor solução para o caso concreto”. Este dever-poder, portanto, não pode ser identificado nem como uma liberdade, nem como uma faculdade a ser exercida segundo juízo de conveniência pessoal.xii Para o autor “é da essência da discricionariedade que a autoridade administrativa formule a melhor solução possível, adote a disciplina jurídica mais satisfatória e conveniente ao poder público”. xiii

Discricionariedade não se confunde com arbitrariedade que se configura no comportamento administrativo que não tenha previsão legal ou que seja contrário à lei existente.xiv “Denomina-se arbítrio a faculdade de operar sem qualquer limite, em todos os sentidos, sem a observância de qualquer norma jurídica”.xv


5. Origem e fundamentos da discricionariedade

Para Maria Sylvia Zanella di Pietro, a discricionariedade decorre de previsão legislativa, de omissão legislativa em razão da impossibilidade de previsão de todas as situações supervenientes à promulgação ou, ainda, de quando a lei prevê a competência, mas não regula a conduta a ser adotada.xvi

De forma diversa, Weida Zancaner assegura que o exercício do poder discricionário é uma forma de atribuição concedida ao administrador pela legalidade, não podendo, portanto, ser entendida como uma faculdade extralegal, marginal ou anterior ao direito. Neste sentido, a autora cita Enterría que afirma “por eso, la discrecionalidad, frente a lo que pretendia la antigua doctrina, no es un supuesto de liberdad de la Administración frente a la norma; más bien, por el contrario, la discrecionalidad es un caso típico de remisión legal”.xvii

Para a autora, o poder discricionário se justifica em três fundamentos não excludentes, quais sejam, o deliberado intento de conferir à Administração certa margem de liberdade em razão dos acontecimentos singulares; a impossibilidade material de prever todas as situações possíveis; e, a inviabilidade jurídica de supressão da discricionariedade em vista da separação dos poderes.xviii

Da mesma forma, Bandeira de Mello afirma que não há como admitir que a discrição resulte da ausência de leixix. Pelo contrário, a esfera de liberdade advém da própria norma. Desta forma, a esfera de liberdade administrativa circunscrita pode resultar da hipótese da norma jurídica a ser implementada, do mandamento dela ou de sua finalidade.xx

Na hipótese da norma jurídica, a liberdade decorre da imprecisão da norma na descrição dos motivos. A discricionariedade pode resultar também do mandamento da lei que ocorre quando a norma faculta um comportamento ao invés de exigi-lo ou quando exige um comportamento facultando, pelo menos, duas alternativas. A atividade discricionária surge, ainda, quando a finalidade é expressa por conceitos práticos e plurissignificativos, como moralidade pública e segurança pública.xxi

Embora a discrição seja determinada por um dos três fatores acima mencionados (hipótese, mandamento ou finalidade), a discrição administrativa só se manifesta em um único elemento que é o conteúdo do ato. Exceção surge nos casos em que a lei faculta agir ou não agir, caso a Administração se omita, a discrição se traduz na omissão.xxii

6. Limitação ao exercício da discricionariedade

Odete Medauar afirma que a atividade discricionária é uma condição de liberdade limitada, ou seja, configura-se em uma liberdade-vínculo. É uma liberdade onerosa que só pode ser exercida com base na atribuição legal. Existe, portanto, certa margem livre de apreciação de conveniência e oportunidade de soluções legalmente possíveis.xxiii

Bandeira de Mello assinala a relatividade da competência discricionária, destacando que o agir discricionário é sempre relativo. É relativo, pois o administrador em todo e qualquer caso é limitado pela lei, sendo que a liberdade conferida só existe na extensão, medidas e modalidades que dela resultem. Ademais, a discricionariedade só pode ser exercida em convergência com a busca da finalidade legal. Além disso, quando decorrente do uso de expressões vagas ou imprecisas, a discricionariedade não pode se desviar do campo significativo mínimo que tais palavras recobrem. E, finalmente, quando, apesar de a lei definir certa margem de liberdade, esta liberdade pode diminuir ou mesmo desaparecer diante do plano fático no qual a regra deve ser aplicada.xxiv

Para o autor, a discricionariedade está estreitamente ligada ao exame de dois planos - o plano da norma jurídica responsável pela existência da liberdade e o plano do caso concreto. No primeiro, há discricionariedade quando a norma não descreve previamente o fato que suscita a atuação do agente ou descreve a situação com palavras de conceitos vagos e imprecisos ou, ainda, confere uma liberdade decisória que enseja exame de oportunidade e conveniência.xxv Porém, o simples exame da norma que confere liberdade administrativa não é suficiente para se concluir que exista discrição na prática de um determinado ato. A liberdade conferida pela lei ao agente representa o reconhecimento de que é a Administração que está melhor posicionada para identificar o comportamento ideal e mais apto no caso concreto a atender com perfeição a finalidade da norma. Desta forma, o autor afirma que “a discricionariedade do ato só existe in concreto, ou seja, perante o quadro da realidade fática com suas feições polifacéticas”.xxvi

Após o necessário exame da norma e do caso concreto, define-se o mérito do ato administrativo, qual seja, o “campo de liberdade suposto na lei e que, efetivamente, venha remanescer no caso concreto, para que o administrador, segundo critérios de conveniência e oportunidade, se decida entre duas ou mais soluções admissíveis perante ele, tendo em vista o exato atendimento da finalidade legal, dada a impossibilidade de ser objetivamente reconhecida qual delas seria a única adequada”.xxvii

A relatividade e a limitação da competência discricionária acima apontadas demonstram que “a situação concreta afunila o campo de liberdade abstratamente aberto na lei e pode eliminá-lo por completo”. Em conseqüência, a existência da discricionariedade só pode ser verificada e dimensionada no caso concreto, na medida em que a discrição normativa é apenas condição necessária, mas não suficiente para seu exercício.xxviii


7. Conclusão

Do exposto, ao reconhecer a discricionariedade não como atributo do ato administrativo, mas como a competência do agente na prática do ato, supera-se a antítese entre atos vinculados e atos discricionários. A discricionariedade é a possibilidade garantida pela lei ao agente público para dispor de certa esfera de liberdade no exercício da sua competência, seja na avaliação da existência dos pressupostos que deram ensejo ao ato, para produzi-lo ou não, escolher seu conteúdo, decidir o momento oportuno da sua prática ou selecionar sua forma. Esta liberdade, porém, deve ser exercida na medida, extensão e modalidade que resultem da norma jurídica que a confere e, ainda, deve ser comportada pela situação concreta.

Desse modo, a discricionariedade se apresenta não como um poder abstrato concedido ao agente pelo ordenamento jurídico, mas como condição conferida ao agente para que este, no exercício de suas funções, tome a decisão mais adequada ao caso concreto. Para Marçal Justen Filho “a afirmação de um Estado Democrático de Direito e a própria existência do direito administrativo conduzem à adoção de um instituto jurídico que venha a formalizar e adequar a autonomia das escolhas do administrador público pela supremacia do princípio da legalidade. Esse instituto é a discricionariedade administrativa”.xxix


Referências bibliográficas

BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 22. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2007.

______ . Discricionariedade e Controle Jurisdicional. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2007.

______ . “Relatividade” da Competência Discricionária. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 212, p. 49-56, abr./jun. 1998.

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JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006.

MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.

SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos do Direito Público. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2007.

TÁCITO, Caio. O abuso do poder administrativo no Brasil. Rio de Janeiro: Departamento Administrativo do Serviço Público – Instituto Brasileiro de Ciências Administrativas, 1959.

ZANCANER, Weida. Da convalidação e da invalidação dos atos administrativos. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2001.



i SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos do Direito Público. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2007.


ii TÁCITO, Caio. O abuso do poder administrativo no Brasil. Rio de Janeiro: Departamento Administrativo do Serviço Público – Instituto Brasileiro de Ciências Administrativas, 1959, p. 9.


iii Ibidem, p. 26.


iv BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 22. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 368.


v Ibidem, p. 355.


vi Ibidem, p. 358.


vii Ibidem, p. 359.


viii Ibidem, p. 926.


ix Ibidem, p. 947-948.


x CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de Direito Administrativo. 18. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 174.


xi BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso..., p. 414.


xii JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 161.


xiii Ibidem, p. 168.


xiv BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Discricionariedade e Controle Jurisdicional. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 13.


xv CRETELLA JÚNIOR, José. Op. cit., p. 174.


xvi DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 20. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 198.


xvii ZANCANER, Weida. Da convalidação e da invalidação dos atos administrativos. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 48.


xviii Ibidem, p. 49.


xix No mesmo sentido, JUSTEN FILHO, Marçal. Op. cit., p. 169.


xx BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso..., p. 932.


xxi BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Discricionariedade..., p. 19.


xxii Ibidem, p. 22.


xxiii Medauar, Odete. Direito Administrativo Moderno. 6. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 129.


xxiv BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. “Relatividade” da Competência Discricionária. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, n. 212, p. 49-56, abr./jun. 1998.


xxv BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso..., p. 415-416.


xxvi BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso..., p. 416-418.


xxvii BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Discricionariedade..., p. 38.


xxviii BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. “Relatividade”..., p. 415-416.


xxix JUSTEN FILHO, Marçal. Op. cit., p. 160.

Sobre o(a) autor(a)
Thais Stefano Malvezzi
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