Descaminho e insignificância penal

Descaminho e insignificância penal

Aborda a aplicação do princípio da insignificância penal ao delito de descaminho.

INTRODUÇÃO

O presente estudo tem por objeto a aplicação do princípio da insignificância penal ao crime de descaminho, previsto no artigo 334 do Código Penal, abordando-se as hipóteses em que é cabível para excluir a tipicidade delitiva.

Para tal, inicialmente analisar-se-á as noções gerais acerca do descaminho, bem como o conteúdo jurídico do princípio da insignificância, abordando-se, quanto a este último, conceito, relevância e maneira como é aplicado.

Em seguida, serão estudados todos os aspectos que regem a aplicação do princípio da insignificância ao delito de descaminho.

Insta observar, desde já, que a relevância do presente estudo reside na discussão acerca da ausência de justificativa para a persecução penal, pelo Estado, quando este não possui interesse, nem mesmo, na esfera civil; situação que se verifica quando uma pessoa é denunciada ou condenada por descaminho, mesmo tendo causado um desfalque patrimonial ao Estado que não ensejaria nem mesmo a propositura de execução fiscal.

Outrossim, pretende-se demonstrar que a tipicidade do descaminho sempre deve ser afastada quando a quantia devida for insignificante, a ponto de não acarretar prejuízo ao patrimônio do Estado.


1. NOÇÕES GERAIS ACERCA DO DESCAMINHO

Os delitos de contrabando e descaminho estão tipificados no artigo 334 do Código Penal, mas ambos não se confundem, pois, enquanto o contrabando é importar ou exportar mercadoria proibida, o descaminho é, por sua vez, iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria.

Art. 334. Importar ou exportar mercadoria proibida ou iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria: Pena – reclusão, de um a quatro anos.

O objeto jurídico sobre o qual recai a proteção do tipo penal, no caso do descaminho, é o erário público, pois prejudicado pela evasão de renda resultante do delito. [1]

Há que se considerar que o descaminho é um crime comum, podendo ser praticado por qualquer pessoa. Já o sujeito passivo é o Estado, principal interessado na arrecadação fiscal.

Ao se analisar a segunda parte do tipo penal extrai-se que o descaminho “se configura pela fraude empregada para evitar o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada ou saída de mercadoria não proibida”. [2]

Ademais, para a configuração do descaminho, além dos elementos objetivos do tipo, deve estar presente, também, o dolo, ou seja, a vontade de praticar a conduta, no caso, a vontade de iludir o pagamento devido.

Ainda, a tipicidade do delito in casu é afastada quando possível aplicar, na situação concreta, o princípio da insignificância, residindo aí o objeto do presente estudo.


2. CONTEÚDO JURÍDICO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA

O crime, tendo-se por base o Direito Penal de desvalor de resultado, constitui uma ofensa a determinado bem jurídico, que desencadeia o jus puniendi estatal; porém, se esta ofensa não é capaz de lesionar o bem jurídico protegido, diz-se que ela é insignificante, sendo desnecessária a intervenção penal.

Neste diapasão, tem-se que relevante para o Direito Penal é o delito que efetivamente atinge o bem jurídico e não aquele incapaz de alterar significativamente a esfera fática social.

Ainda, de acordo com a Teoria Social da Ação, uma conduta que não encontra reprovação social ou que, até mesmo, é considerada correta pela sociedade, não configura nenhum crime.

Com base nisso, Claus ROXIN propôs o denominado princípio da insignificância, que permite, na maioria [3] dos tipos penais, excluir os danos de pouca importância. [4]

O princípio da insignificância exclui a tipicidade do crime, pois, quando aplicável, sempre estará ausente um dos elementos objetivos do tipo, qual seja, a lesão ao bem jurídico tutelado.

Nas palavras de Julio Fabbrini MIRABETE: “é indispensável que o fato tenha acarretado uma ofensa de certa magnitude ao bem jurídico protegido para que se possa concluir por um juízo positivo de tipicidade”. [5]

Interessante trazer à colação, também, fragmento da doutrina de Geraldo Batista de SIQUEIRA:

O fato, comportamento humano, positivo ou negativo, só se eleva à condição de fato típico quando tiver a impulsioná-lo o dolo ou a culpa como conteúdo subjetivo e normativo. É a regra que se completa com a valoração jurídica do bem jurídico, que se pretende tutelar, do qual se exige alguma relevância axiológica. Assim, ausente a razão da incriminação, a proteção de um valor para a sociedade, atípica resta a conduta apurada. O momento final do fato típico, a consumação, deve realizar o tipo penal em seus dois aspectos: formal e material ou substancial. Consumação formal e material. [6]

A possibilidade de se aplicar o princípio da insignificância deve sempre ser verificada no caso concreto, pois somente com a análise fática serão encontrados elementos que permitam a conclusão acerca da significância ou não da lesão ao bem jurídico.

É importante considerar que todos os detalhes da situação fática devem ser levados em conta, principalmente quando em análise crimes contra o patrimônio, pois uma conduta que representa lesão patrimonial para determinada vítima pode ser completamente irrisória para outra.

Assim, para exemplificar, traz-se o seguinte caso:

O sujeito que subtrai cinqüenta reais de uma pessoa, que recebe um salário mínimo e sustenta a família de cinco integrantes, comete o crime de furto, pois a lesão ao patrimônio foi significativa, mesmo sendo pequena [7] a quantia subtraída. Já, aquele que subtrai uma garrafa de bebida alcoólica, no valor de cinqüenta reais, em um grande supermercado, não comete o crime de furto, pois a quantia é irrisória para a vítima, não afetando o seu patrimônio.

Por fim, é importante salientar que o cabimento do princípio da insignificância deve ser verificado em todas as esferas penais: pelo delegado, na instauração do inquérito; promotor de justiça, no oferecimento da denúncia; e juiz, no recebimento da denúncia e na decisão final. Isto porque, com a insignificância, não há crime. [8]

 
3. O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA APLICADO AO DECAMINHO

Bem como em outros crimes, o princípio da insignificância também se aplica ao descaminho, mas de uma forma peculiar; pois é possível definir quando o delito é insignificante anteriormente ao próprio fato, já que a vítima é sempre a mesma, o Estado.

Assim, resta saber até quanto o Estado pode ter de perda monetária sem que o seu patrimônio seja desfalcado de maneira significativa.

Não se pode estabelecer um número ao acaso, razão pela qual a doutrina e a jurisprudência se apegam a normas não penais para avaliar este limite, tais como:

a) na Lei nº 9.469/97, que estabelece o valor mínimo da propositura de execução fiscal em R$ 1.000,00 (mil reais);

b) na Medida Provisória nº 1.973/63, que expõe o valor que a Fazenda Nacional desconsidera para inscrever os débitos em dívida ativa em valores até R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais)

c) no art. 20, da Lei nº 10.522/02 (famosa Lei do Cadin – Cadastro Informativo dos créditos não quitados de órgãos e entidades federais e dá outras providências), ao estabelecer que “serão arquivados, sem baixa na distribuição, os autos das execuções fiscais de débitos inscritos como Dívida Ativa da União pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional ou por ela cobrados, de valor consolidado igual ou inferior a R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais)”;

d) na Portaria nº 4.910/99 do Ministério da Previdência, que prevê o não ajuizamento das suas execuções quando o valor da dívida não ultrapassar R$ 5.000,00 (cinco mil reais). [9]

A utilização destes valores, como patamar, é perfeitamente válida, pois se o Estado não tem interesse na execução civil é porque a dívida existente é insignificante para o patrimônio estatal, de maneira que a persecução penal se torna totalmente injustificada.

Atualmente, a maioria da doutrina e jurisprudência segue o entendimento de que o descaminho não se configura quando o imposto ou direito devido for igual ou inferior a R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais), seguindo-se a disposição da Lei 10.522/2002.

Acerca da aplicação do princípio da insignificância, neste patamar, pode-se citar decisão do Superior Tribunal de Justiça:

[...] I – Essa Eg. Corte havia consolidado entendimento no sentido de aplicar o princípio da insignificância para possibilitar o trancamento da ação penal no crime de descaminho de bens, cujos impostos incidentes e devidos fossem iguais ou inferiores aR$ 1.000,00, valor considerado pelos arts. 1° da Lei 9469/97 e 20 da MP 1.542-28/97 como de desinteresse do erário em execução fiscal. Precedentes. II – Nada obstante, com a entrada em vigor da Lei 10.522, de 19 de julho de 2002, o legislador posicionou-se no sentido de certificar a insignificância de créditos de valor igual ou inferior a R$ 2.500, 00 (dois mil e quinhentos reais).Precedentes. III – In casu, o tributo devido pelo paciente foi avaliado em R$ 1.372, 27, montante inferior ao determinado pela Lei e pela jurisprudência como lesivo aos cofres públicos, fato a possibilitar a incidência do princípio da insignificância. Isso porque, a conduta imputada na peça acusatória não chegou a lesar o bem jurídico tutelado, qual seja, a Administração Pública em seu interesse fiscal. IV – Acórdão a quo que deve ser cassado, restabelecendo-se a decisão que não recebeu a denúncia, ante a aplicação do princípio da insignificância penal. Habeas Corpus concedido. [10]

Muito embora doutrina e jurisprudência, em sua maioria, tenham definido o patamar de R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais) para a aplicação do princípio da insignificância ao descaminho; é de se acreditar que o mais adequado seria a definição do limite no importe maior de R$ 5.000,00 (cinco mil reais), observando-se o que dispõe a Portaria n° 4.910/99 do Ministério da Previdência e Assistência Social.

Em posição contrária tem-se a doutrina de Roberto Luís Luchi DEMO que faz a seguinte ressalva:

Ressalto que a Portaria nº 4.910/99, do Ministério da Previdência e Assistência Social, ao fixar o valor de R$ 5.000,00 para contribuições previdenciárias serem dispensadas de ajuizamento da ação de execução, não se aplica ao crime de descaminho, na perspectiva do princípio da insignificância, em virtude de que é norma restrita às contribuições sociais, não açambarcando impostos, ambos espécies distintas do gênero tributo. [11]

Contudo, não se pode concordar com a posição do citado doutrinador. Claro está que a portaria somente se refere às contribuições sociais e não a impostos, mas não é este o ponto relevante para a aplicação do princípio da insignificância.

Na verdade, o que se deve levar em conta é que o estado dispensa a execução da quantia de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) simplesmente porque esta é insignificante e não vai lhe acarretar prejuízo patrimonial.

Desta forma, se R$ 5.000,00 (cinco mil reais) não é um valor apto a prejudicar o patrimônio estatal, não há razão para não se permitir a aplicação do princípio da insignificância, neste patamar, na esfera penal.


CONCLUSÃO

Do presente estudo extrai-se que o princípio da insignificância informa que: uma conduta não pode ser considerada crime, estando afastada a sua tipicidade, quando não for apta a acarretar prejuízo relevante ao bem jurídico tutelado, até mesmo porque não há reprovação por parte da sociedade.

Ainda, pode-se concluir que o referido princípio é perfeitamente aplicável ao descaminho, sendo que a insignificância, neste caso, pode ser definida anteriormente à ocorrência do delito, haja vista que o sujeito passivo é sempre o Estado.

Ademais, a definição do que é insignificante para o patrimônio do Estado deve ser definido de maneira objetiva, verificando-se os valores que efetivamente são relevantes, quais sejam, aqueles que, decorrentes da norma, justificam a propositura de execução fiscal.

Por fim a de se salientar que a aplicação do princípio da insignificância ao descaminho não é uma exaltação da impunidade, mas sim uma decorrência necessária da lógica jurídico-penal, pois constitui equívoco punir alguém por uma dívida fiscal na qual o Estado não possui qualquer interesse.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DEMO, Roberto Luís Luchi. Descaminho. Revista Jurídica Consulex n° 158. publicada em 15.08.03.

MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal – parte especial – arts. 235 a 361 do CP. 16. ed. São Paulo: Atlas, 2001. v. 3.

MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal – parte geral – arts. 1° a 120 do CP. 16. ed. São Paulo: Atlas, 1999. v. 1. p. 118

SIQUEIRA, Geraldo Batista de; et. al. Princípio da insignificância e ação penal – juízo de admissibilidade. Revista Síntese de Direito Penal e Processual Penal n° 09. Ago-Setembro/2001. p. 51.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA – HC 34281 – RS. Rel. José Arnaldo da Fonseca – QUINTA TURMA – publicado no DJU em 09.08.2004. p. 00281.

VERONESE, Osmar; PINTO, Emanuel Lutz. Princípio da insignificância no delito de contrabando /descaminho – art. 334, CP. Júris Síntese n° 35. Mai-Jun/2002.


 
[1] MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal – parte especial – arts. 235 a 361 do CP. 16. ed. São Paulo: Atlas, 2001. v. 3. p. 385.


[2] Idem. p. 386.


[3] Em alguns tipos penais, principalmente os com conteúdo de Direito Penal de desvalor de ação, não se aplica o princípio da insignificância, muito embora não haja incompatibilidade.


[4] MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de direito penal – parte geral – arts. 1° a 120 do CP. 16. ed. São Paulo: Atlas, 1999. v. 1. p. 118.


[5] Idem. p. 118.


[6] SIQUEIRA, Geraldo Batista de; et. al. Princípio da insignificância e ação penal – juízo de admissibilidade. Revista Síntese de Direito Penal e Processual Penal n° 09. Ago-Setembro/2001. p. 51


[7] O pequeno valor não se confunde com a insignificância, pois algo de pouco valor pode ser de extrema relevância para a vítima, tudo dependendo da condição desta.


[8] MIRABETE, Julio Fabbrini. op cit. p. 119.

[9] VERONESE, Osmar; PINTO, Emanuel Lutz. Princípio da insignificância no delito de contrabando /descaminho – art. 334, CP. Júris Síntese n° 35. Mai-Jun/2002.



[10] Superior Tribunal de Justiça – HC 34281 – RS. Rel. José Arnaldo da Fonseca – QUINTA TURMA – publicado no DJU em 09.08.2004. p. 00281.


[11] DEMO, Roberto Luís Luchi. Descaminho. Revista Jurídica Consulex n° 158. publicada em 15.08.03.

Sobre o(a) autor(a)
André Pontarolli
Advogado, bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Curitiba, autor de diversos trabalhos de pesquisa.
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