O Direito de punir

O Direito de punir

Estudo introdutório sobre o direito de o Estado punir aqueles que infringem as normas penais.

O Direito Penal tem por finalidade essencial proteger os valores mais importantes dos indivíduos e da sociedade em geral. Tais valores são chamados bens jurídicos penais, entre os quais se destacam: vida, liberdade, propriedade, integridade física, honra, patrimônio público etc.

Essa proteção se dá com a incriminação de determinadas condutas: quando o art. 121 do Código Penal (CP) diz “Matar alguém” está implícita a norma “É proibido matar”. Da mesma forma, o art. 135 do CP, que trata da omissão de socorro, tem a regra implícita: “É obrigatório que se socorra pessoas que estejam em situação de perigo”. Este é o preceito primário da norma penal.

Porém, apenas proibir ou exigir não é suficiente para que as pessoas se comportem de acordo com a norma penal. Para que isso seja possível, é preciso que o descumprimento tenha como conseqüência uma sanção, isto é, um mal à pessoa que descumpriu a norma. Várias são as sanções previstas em nosso ordenamento jurídico: temos desde a proibição de freqüentar determinados lugares até a pena de morte (para crimes militares em tempo de guerra).

Portanto, quando alguém desobedece a norma “É proibido matar” deverá ser submetido a uma pena de reclusão que varia entre 6 e 30 anos, dependendo das circunstâncias do crime. Este é o preceito secundário da norma penal.

O preceito primário dá ao Estado o direito de punir (jus puniendi) o infrator da norma mediante a aplicação do preceito secundário. “No momento em que é cometida uma infração, esse poder, até então genérico, concretiza-se, transformando-se numa pretensão individualizada, dirigida especificamente contra o transgressor” (CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal, p. 2).

Apesar dessa expressão já estar consagrada na doutrina e na jurisprudência, não é exato dizer que o Estado tem o direito de punir o infrator, mas um poder-dever de exercitar essa punição, pois a própria Constituição Federal coloca que a segurança pública é dever do Estado e direito e responsabilidade de todos (art. 144, caput).

De acordo com Frederico Marques, o direito de punir é “o direito que tem o Estado de aplicar a pena cominada no preceito secundário da norma penal incriminadora, contra quem praticou a ação ou omissão descrita no preceito primário causando um dano ou lesão jurídica, de maneira reprovável” (Elementos de Direito Processual Penal, vol. I, p. 3).

Por que essa sanção é aplicada pelo Estado e não pelas próprias vítimas ou seus parentes? Por duas razões: essas pessoas, por seu abalo emocional, não se motivariam por questões de justiça ou de proporcionalidade entre a pena e a infração, mas de pura vingança. Boa parte das pessoas assaltadas ou estupradas, por exemplo, matariam, se pudessem, seus agressores (cf. abaixo, matéria sobre linchamento). A segunda razão é que, quando o Direito Penal intervém o fato já ocorreu e o interesse maior da punição não é retribuir o mal causado, mas, por meio do sofrimento do condenado, mostrar aos potenciais criminosos que não se deve cometer crimes. Vê-se, assim, que o interesse é muito mais social do que individual.

Pode-se argumentar: e a legítima defesa (CP, art. 25)? Quando está ocorrendo uma agressão injusta atual ou iminente, teria o agredido o direito de punir? A resposta é não. Como o próprio nome diz, o direito é de se defender do ataque, na medida do necessário, não de punir o agressor. Assim, se A tenta matar B e este fere A para se defender, B não responderá por crime algum, pois agiu em legítima defesa e A deverá ser devidamente julgado e condenado pela tentativa de homicídio.

E o direito de queixa dado à vítima – art. 30 do Código de Processo Penal (CPP) – ou ao CADI (cônjuge, ascendente, descendente e irmão) – art. 31 do CPP – de oferecer queixa nos casos de ação penal privada? Assim, por exemplo, quando se presta queixa quanto ao crime de calúnia (CP, art. 140) estaria o particular exercendo seu direito de punir? A resposta novamente é não. A queixa é apenas a petição inicial do processo penal, isto é, apenas o inicia: o julgamento e a eventual punição são sempre dados pelo Estado. Além disso, as ações penais privadas compreendem raros casos em que o interesse particular se sobreleva, como nos crimes contra a honra e contra os costumes.

A pessoa que se achar vítima de algum crime deve sempre buscar o poder do Estado para que o culpado seja punido e os prejuízos ressarcidos. Caso resolva fazer “justiça com as próprias mãos” incorrerá nos crimes previstos nos arts. 345 e 346 do CP:

Exercício arbitrário das próprias razões

Art. 345 - Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite:

Pena - detenção, de quinze dias a um mês, ou multa, além da pena correspondente à violência.

Parágrafo único - Se não há emprego de violência, somente se procede mediante queixa.

Art. 346 - Tirar, suprimir, destruir ou danificar coisa própria, que se acha em poder de terceiro por determinação judicial ou convenção:

Pena - detenção, de seis meses a dois anos, e multa.

Ressalte-se que a exceção expressa no caput do art. 345 é de ocorrência bastante escassa. Como exemplo, temos, além da supracitada legítima defesa, o art. 1210, § 1° do Código Civil, que autoriza “o possuidor turbado ou esbulhado” a se manter ou se restituir do objeto possuído “por força própria, desde que o faça logo”.

Por fim, deve se atentar para o fato de que o direito de punir deve ser exercido pelo Estado de forma totalmente vinculada às leis. Assim, ao mesmo tempo em que nosso ordenamento jurídico dá ao Estado o direito de punir, também limita esse direito, que só pode ser exercido nas condições e limites estabelecidos nas normas penais e processuais penais. Nesse sentido, não se pode condenar alguém por difamação (CP, art. 139) a dois anos de prisão, pois a pena máxima é de um ano, e não se pode condenar alguém por homicídio doloso sem se obedecer ao procedimento do Tribunal do Júri (CPP, arts. 406-497).


03/05/2003 - 04h48 Após crime, Grajaú vive crise de consciência

GILMAR PENTEADO
da Folha de S.Paulo

"Um pai que perdeu o filho, um filho que perdeu o pai." A melhor descrição do conflito pelo qual passam moradores do Parque Grajaú (zona sul de SP) não vem da polícia nem de especialistas que costumam analisar de fora os problemas da periferia. Vem de uma moradora, uma mãe que teve de retirar o filho gravemente ferido debaixo de um carro.

Em uma viela do bairro, Cícera Maria de Melo Silva, 43, tenta retomar a vida em seu pequeno salão de beleza. Mas logo voltam as cenas de sábado passado, quando uma briga motivada por ciúme terminou no atropelamento de duas crianças -uma morreu e outra ficou ferida. Em seguida, houve o linchamento do motorista responsável pelo acidente.

A gravidade dos ferimentos a fez acreditar que tivesse perdido o filho de nove anos. Ele teve traumatismo craniano e sobreviveu, mas vai ter de passar por outras cirurgias. Na quinta-feira, como boa parte dos moradores, ela tentava explicar o que aconteceu. Ora com raiva, ora com compaixão.

"O povo fez isso porque não acredita na Justiça. Sabe que ele [motorista] entraria numa delegacia, pagaria fiança e sairia impune", afirmou a cabeleireira, indignada. Logo em seguida, a piedade. "Mas não é certo fazer isso. Fiquei surpresa quando vi aquela multidão atrás dele", afirmou.

Ela acredita que o motorista foi linchado por um grupo de 30 a 50 homens. Eles iam saindo das casas e entrando no grupo de agressores. A vítima apanhava, caía, conseguia escapar, mas era logo alcançada. Isso durou quase um quilômetro, quando recebeu os tiros que a mataram.

O motorista não era, porém, um desconhecido. Pertencia à comunidade, conhecia seus linchadores e freqüentava o bar do tio da criança que morreu. Gilmar Alves de Araújo, 27, trabalhava no estacionamento da Câmara Municipal. À noite, cursava o 2º ano do ensino médio. Seria pai pela segunda vez. Ajudava a sustentar a cunhada e duas sobrinhas.

Em casa, Araújo recebia até broncas da mulher por ser tão pacato. "Eu falava isso porque ele ficava tranqüilo demais quando as pessoas brigavam com ele. Ele só dizia: "Não esquenta a cabeça". E dava risada", lembra a costureira Maria Erenilza Ferreira Oliveira, 32, grávida de três meses.

Ela diz não saber explicar por que o marido perdeu a cabeça naquele sábado, quando ela e outra mulher discutiram na rua por causa dele. Nem por que ele saiu com o carro de ré em alta velocidade, provocando o acidente.

A costureira afirma que só se lembra que os moradores começaram a jogar pedras quando os dois ainda estavam dentro do carro. "Tinha gente que era amiga dele. Mas, naquela hora, ninguém tentou evitar o linchamento."

Para a auxiliar de enfermagem Maria Lopes, 48, que socorreu as crianças, a população percebeu o erro, mesmo tardiamente. "Foi o impacto de ver as crianças naquele estado. Mas agora, pensando melhor e vendo que era um homem de bem, acredito que as pessoas estão arrependidas", disse.

A socióloga Jacqueline Sinhoretto, 29, que estudou a prática de linchamento na sua dissertação de mestrado pela USP (Universidade de São Paulo), afirma que falta de clareza entre bem e mal – se a vítima fosse um criminoso desconhecido, seria mais fácil – torna a análise mais complexa e divide a opinião dos moradores.

Entre os casos estudados pela socióloga, ocorridos na década de 80 em São Paulo, está o de uma comunidade que linchou um homem, mas passou a ajudar no sustento da sua mulher e filhos.

O menino Cristian Mateus dos Santos, 7, morto no acidente, fazia reforço escolar e capoeira na comunidade paroquial. Seu jeito brincalhão conquistou a simpatia do padre Ari Ribeiro, 34.

Apesar do envolvimento afetivo, o padre disse que não vai poupar críticas aos linchadores na missa de 7º Dia, às 19h de hoje.

Moradores defendem uma missa na própria rua. "Como posso celebrar uma missa na rua que foi palco de uma selvageria que contraria a fé católica? Não cumpriram a lei de Deus nem a dos homens", questionou o padre.


Para saber mais:

CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal, pp. 1-2.

MARQUES, José Frederico. Elementos de Direito Processual Penal. Volume 1, pp. 3-5.

MOREIRA, Rômulo de Andrade. Em torno do linchamento. Disponível na internet: www.ibccrim.org.br , 17.09.2001

MIRABETTE, Julio Fabbrini Mirabete. Processo Penal, pp. 25-27.

NUCCI, Guilherme de Souza Nucci. Código Penal Comentado, pp. 951-953.

SINHORETTO, JACQUELINE. Os Justiçadores e sua Justiça, IBCCRIM, 2002.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. Volume 1, pp. 9-16.

Sobre o(a) autor(a)
Alexandre Magno Fernandes Moreira
Procurador do Banco Central em Brasília. Professor de Direito Penal e Processual Penal da Universidade Paulista. Editor do site: www.alexandremagno.com.
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