Anormalidade institucional na Venezuela justifica dispensa de exigências para obtenção de documento

Anormalidade institucional na Venezuela justifica dispensa de exigências para obtenção de documento

Situações de anormalidade institucional em país estrangeiro, que permitam presumir dificuldade ou inviabilidade de obter documentos ou informações necessárias para o prosseguimento de uma ação no Brasil, justificam flexibilizar a regra segundo a qual é dever da parte atender às exigências de órgãos públicos para a obtenção de documentos.

Com esse entendimento, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) deu provimento a um recurso para possibilitar que a Receita Federal, em caráter excepcional, emita o CPF de uma brasileira que morou por 40 anos na Venezuela e lá faleceu.

Conforme a decisão, o juízo de primeira instância deverá solicitar das autoridades venezuelanas todos os documentos pela via da cooperação jurídica internacional. Na ausência de resposta no prazo de 120 dias, o juízo deverá expedir ofício à Receita Federal determinando a emissão do CPF, tendo como base a autenticação dos documentos estrangeiros feita pelo advogado do inventário.

O recurso chegou ao STJ ante a impossibilidade de os familiares obterem a autenticação dos documentos necessários para a emissão do CPF em nome da falecida. A ausência dos documentos impediu o andamento da ação de inventário, e a dispensa da exigência foi negada em primeira e segunda instâncias.

Segundo o processo, a brasileira foi casada com cidadão venezuelano, é herdeira de imóvel no Brasil e não possuía CPF, documento indispensável para a expedição de certidões negativas de débito exigidas para a tramitação do inventário.

Anormalidade

A relatora do recurso especial, ministra Nancy Andrighi, disse que, em se tratando de situação de “excepcional e induvidosa anormalidade”, é preciso haver a necessária sensibilidade e flexibilidade na interpretação das regras jurídicas, “a fim de que o processo não seja um fim em si mesmo, mas que efetivamente sirva ao seu propósito: a realização do direito material”.

A ministra ressaltou que, em uma situação de regular funcionamento das instituições, é evidente que os recorrentes deveriam ser responsáveis pela obtenção dos documentos necessários para o inventário. Entretanto, Nancy Andrighi afirmou que é necessário contextualizar a situação vivida.

“É preciso estabelecer, como premissa, o fato de que a Venezuela se encontra em uma situação de anormalidade institucional, fato que é público, notório e indiscutível, o que torna absolutamente verossímil a versão apresentada pelos recorrentes, no sentido de ser impossível a obtenção da declaração de autenticidade dos documentos indispensáveis ao prosseguimento da ação de inventário do imóvel situado no Brasil.”

Situação paradoxal

Impedir uma interpretação histórico-evolutiva das normas, de acordo com a relatora, produziria uma situação paradoxal no caso, já que os documentos declarados autênticos pelo advogado serviriam para resolver questões de fato e de direito na ação do inventário, mas não seriam suficientes para a simples emissão do CPF da autora da herança.

“É preciso reconhecer, pois, que há uma nítida migração, cada vez mais acentuada e rápida, no sentido de se abandonar a mentalidade cartorial e os arraigados anacronismos, com o contínuo – e aparentemente irrefreável – movimento de desapego da forma em prol da materialização do conteúdo”, comentou Nancy Andrighi ao relatar o clamor social pela desburocratização de procedimentos e pelo afastamento de exigências desnecessárias que podem “até mesmo inviabilizar o regular e tempestivo exercício de direitos, de liberdades e de garantias”.

RECURSO ESPECIAL Nº 1.782.025 - MG (2018/0196150-3)
RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI
RECORRENTE : REGINA HELENA BOTELHO - ESPÓLIO
RECORRENTE : EUDES RAMON PAREDES MONTILLA - POR SI E REPRESENTANDO
RECORRENTE : RENATO AUGUSTO PAREDES BOTELHO
RECORRENTE : MONICA CRISTINA PAREDES BOTELHO
ADVOGADOS : ANTONIO CELSO GUIMARAES - MG028494
LUDMILA FARIA BARBOSA - MG176544
RECORRIDO : NÃO INDICADO
EMENTA
CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE INVENTÁRIO E PARTILHA DE BENS.
ANORMALIDADE INSTITUCIONAL EM PAÍS ESTRANGEIRO QUE IMPEDE A
OBTENÇÃO DE DOCUMENTOS E INFORMAÇÕES NECESSÁRIAS AO
ANDAMENTO DE PROCESSO JUDICIAL NO BRASIL. FATO NOTÓRIO.
NECESSIDADE DE ADOÇÃO DE INSTRUMENTOS DE COOPERAÇÃO JURÍDICA
INTERNACIONAL. EVENTUAL INSUCESSO DA MEDIDA. DECLARAÇÃO DE
AUTENTICIDADE DE DOCUMENTOS PELO ADVOGADO, MESMO QUE PARA
FINALIDADE DISTINTA DO USO EM PROCESSO JUDICIAL, PARA A QUAL HÁ
AUTORIZAÇÃO NORMATIVA. POSSIBILIDADE. CARÁTER EXCEPCIONAL E
SUBSIDIÁRIO DA INTERPRETAÇÃO POR ANALOGIA.
1- Ação proposta em 16/06/2017. Recurso especial interposto em
07/03/2018 e atribuído à Relatora em 18/09/2018.
2- O propósito recursal é definir se é admissível a autenticação de
documentos estrangeiros pelo advogado para a obtenção, perante a Receita
Federal, de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas em nome de pessoa
falecida que residia no exterior, permitindo-se a continuidade da ação de
inventário, especialmente quando há notória impossibilidade, ainda que
momentânea, de obtenção das referidas autenticações no país de origem.
3- Tratando-se de fato notório a existência de situação de anormalidade
institucional em país estrangeiro que faz presumir a dificuldade ou a
inviabilidade de se obter documentos ou informações necessárias para o
prosseguimento da ação de inventário, deve-se flexibilizar a regra segundo a
qual é dever da parte atender às exigências e determinações de órgãos e
entidades para que se dê regular prosseguimento ao processo judicial,
admitindo-se o uso de instrumentos de cooperação jurídica internacional
para a prática de atos ou obtenção de informações de países do exterior.
4- Sendo infrutífero o pedido de cooperação jurídica internacional e em se
tratando de situação de notória anormalidade institucional existente no país
de origem, é admissível, subsidiariamente e em caráter excepcional, que
seja determinado à Receita Federal que emita CPF sem que haja
autenticação, no país de origem, dos documentos estrangeiros por ela

comumente exigidos, suprindo-se a referida autenticação por declaração de
autenticidade dos documentos estrangeiros realizada pelo advogado das
partes, sob sua responsabilidade pessoal, como autoriza, no processo
judicial, o art. 425, IV, V e VI, do CPC/15.
5- Recurso especial conhecido e provido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Terceira
Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas
taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, conhecer e dar provimento ao
recurso especial nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros Paulo de
Tarso Sanseverino, Ricardo Villas Bôas Cueva, Marco Aurélio Bellizze e Moura Ribeiro
votaram com a Sra. Ministra Relatora.
Brasília (DF), 02 de abril de 2019(Data do Julgamento)
MINISTRA NANCY ANDRIGHI
Relatora

Esta notícia foi publicada originalmente em um site oficial (STJ - Superior Tribunal de Justiça) e não reflete, necessariamente, a opinião do DireitoNet. Permitida a reprodução total ou parcial, desde que citada a fonte. Consulte sempre um advogado.
Lista de leitura
Adicione esta notícia à sua lista de itens para ler depois
Adicionar à lista

Notícias relacionadas

Veja novidades e decisões judiciais sobre este tema

Resumos relacionados Exclusivo para assinantes

Mantenha-se atualizado com os resumos sobre este tema

Guias de Estudo relacionados Exclusivo para assinantes

Organize seus estudos jurídicos e avalie seus conhecimentos

Economize tempo e aumente sua produtividade com o DN PRO Seja um assinante DN PRO e tenha acesso ilimitado a todo o conteúdo que agiliza seu processo de elaboração de peças e mantém você sempre atualizado sobre o mundo jurídico. 7.530 modelos e documentos essenciais para o seu dia a dia Atualizados regularmente por especialistas em Direito Ideal para advogados e profissionais da área jurídica Apenas R$ 24,90 por mês Veja exemplos gratuitos