Não cabe produção de laudo antropológico em ação possessória sobre terras invadidas por índios

Não cabe produção de laudo antropológico em ação possessória sobre terras invadidas por índios

O laudo antropológico destinado a verificar a existência de ocupação tradicional indígena sobre determinada área, para fins de demarcação, não pode ser exigido no âmbito de uma ação possessória, como condição para a reintegração de posse de imóvel invadido por índios.

Para a Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a produção do laudo antropológico em tal cenário é descabida, pois abriria a possibilidade de se reconhecer a legalidade da invasão.

Nas palavras do relator do caso, ministro Mauro Campbell Marques, seria a "possibilidade de aceitação da prática de justiça de mão própria pelos indígenas, o que afrontaria o ordenamento jurídico sob diversos ângulos".

O entendimento da turma foi adotado ao rejeitar recursos do Ministério Público Federal, da União e da Fundação Nacional do Índio (Funai), que defendiam a produção do laudo como pré-requisito para a prolação de sentença na ação de reintegração de posse ajuizada pelo proprietário regular da fazenda após a invasão. Segundo os recorrentes, a não produção do laudo, que poderia demonstrar a ocupação tradicional da terra pelos índios, caracterizou cerceamento de defesa.

A ação foi ajuizada pelo fazendeiro contra um cacique guarani ñandeva, da Terra Indígena Porto Lindo, após a invasão da Fazenda Remanso Guaçu.

O pedido foi julgado procedente na primeira instância, sob o fundamento de que o fazendeiro comprovou a propriedade das terras e os indígenas não poderiam reivindicá-las, nem com base no domínio – já que a União não as detém –, nem com base na posse – já que o fazendeiro é quem possui as terras de forma mansa e pacífica.

Discussão inadequada

A Funai editou uma portaria em 2005 para demarcar a área como indígena, mas no Mandado de Segurança 10.985 o STJ decidiu que a demarcação não tinha validade quanto às terras da Fazenda Remanso Guaçu.

O Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3) manteve a reintegração de posse determinada em primeira instância, afirmando que, na ausência de procedimento demarcatório, deve prevalecer a situação em vigor. Para o TRF3, considerando que o fazendeiro é dono das terras desde 1977 e os índios as invadiram por conta própria, a reintegração é a "única solução possível".

O ministro Mauro Campbell Marques destacou que o processo decorre de pedido de reintegração de posse apresentado pelo proprietário da fazenda, razão pela qual "mostra-se inadequada a discussão acerca da tradicionalidade da ocupação indígena, sob pena de se admitir a possibilidade de justiça de mão própria pelos interessados".

Responsabilização inviável

No mesmo julgamento, a Segunda Turma analisou também um recurso do fazendeiro que pedia a responsabilização da Funai pelos supostos danos causados pelos indígenas na propriedade rural durante a invasão. O recurso foi interposto com o objetivo de restabelecer a sentença que fixou condenação nesse ponto, responsabilizando a Funai.

Segundo o relator, o recurso do fazendeiro é inviável, já que "a tutela de natureza orfanológica prevista no Estatuto do Índio não foi recepcionada pela atual ordem constitucional, por isso a fundação não possui ingerência sobre as atitudes dos indígenas que, como todo cidadão, possuem autodeterminação e livre-arbítrio, sendo despida de fundamento jurídico a decisão judicial que impõe ao ente federal a responsabilidade objetiva pelos atos ilícitos praticados por aqueles".

Com esse mesmo fundamento, Mauro Campbell Marques afastou a multa diária imposta à autarquia em caso de nova invasão dos índios sobre a propriedade.

"Ora, se a recorrente não responde pelos danos materiais decorrentes da ocupação irregular ocorrida no caso concreto, logicamente não subsiste fundamento legal para que tenha que responder por multa diária em caso de nova invasão, que pressupõe descumprimento de obrigação de não fazer por parte da comunidade indígena", explicou.

RECURSO ESPECIAL Nº 1.650.730 - MS (2017/0010862-1)
RELATOR : MINISTRO MAURO CAMPBELL MARQUES
RECORRENTE : FLÁVIO PÁSCOA TELES DE MENEZES
ADVOGADO : REGIS EDUARDO TORTORELLA E OUTRO(S) - SP075325
RECORRENTE : FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO - FUNAI
RECORRENTE : UNIÃO
RECORRENTE : MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
RECORRIDO : OS MESMOS
INTERES. : COMUNIDADE INDIGENA GUARANI-NANDEVA YVY KATU
DE REMANSO GUASU
INTERES. : CACIQUE MAMAGA - SILVICOLAS DA ALDEIA INDIGENA
PORTO LINDO
EMENTA
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. RECURSOS ESPECIAIS
SUBMETIDOS AO ENUNCIADO ADMINISTRATIVO 2/STJ. AÇÃO DE
REINTEGRAÇÃO DE POSSE. FAZENDA OCUPADA POR MEMBROS
DA COMUNIDADE GUARANI ÑANDEVA. ATO PRATICADO PELOS
INDÍGENAS POR SUA PRÓPRIA CONTA. PROCESSO
DEMARCATÓRIO AINDA EM ANDAMENTO. ESBULHO
CONFIGURADO. MULTA DIÁRIA IMPOSTA À FUNAI EM CASO DE
NOVA INVASÃO. AFASTAMENTO.
1. Os presentes recursos especiais decorrem de ação de reintegração de posse
ajuizada por Flávio Páscoa Teles de Menezes em face do Cacique Mãmãgá
(Comunidade Indígena Guarani Ñandeva - Terra Indígena Porto Lindo), da Fundação
Nacional do Índio e da União, em razão da ocupação de indígenas na propriedade
rural denominada "Fazenda Remanso Guaçu".
2. O Tribunal Regional Federal da 3ª Região manteve a procedência do pedido de
reintegração de posse, pois, "[n]a ausência de procedimento demarcatório, deve
prevalecer a situação fática em vigor"; e, "[c]omo o autor está na posse da
fazenda desde 1977 e os índios invadiram a propriedade por conta própria, ou
seja, sem elementos administrativos que mostrem uma ocupação contemporânea
a outubro de 1988 ou neutralizada historicamente por esbulho renitente (STF,
Pet 3388, Relator Carlos Britto, Tribunal Pleno, DJ 19/03/2009), a
reintegração é a única solução possível". 3. Não há falar na ofensa ao art. 535 do CPC/1973 arguida nos recursos especiais
da FUNAI, da União e do Ministério Público Federal. Isso porque a Corte de origem
decidiu a controvérsia de modo integral e suficiente ao consignar que a preliminar de
nulidade da sentença por violação aos princípios da ampla defesa e do contraditório é
absorvida pela resolução do mérito, que vai enquadrar a demarcação como atividade
tipicamente administrativa; e, na ausência de procedimento demarcatório, deve
prevalecer a situação fática em vigor, pois o autor da demanda está de posse da
fazenda desde 1977 e os índios invadiram a propriedade por conta própria.
4. Sem razão a FUNAI e o MPF no que importa à produção de laudo antropológico,
pois a demanda de que decorrem seus recursos especiais é de natureza possessória
e foi ajuizada pelo proprietário de fazenda ocupada por indivíduos do grupo indígena
Guarani-Ñandeva, que agiram por sua própria conta - fato sobre o qual não há
controvérsia nos autos. Admitida a produção de laudo antropológico, abrir-se-ia a

possibilidade de reconhecimento da legalidade da invasão perpetrada em sede de
ação possessória proposta por não índio, melhor dizendo, da possibilidade de
aceitação da prática de justiça de mão própria pelos indígenas, o que afrontaria o
ordenamento jurídico sob diversos ângulos.
5. Como a presente demanda decorre de pedido de reintegração de posse
apresentado pelo proprietário de fazenda ocupada por indígenas que agiram por
contra própria, mostra-se inadequada a discussão acerca da tradicionalidade da
ocupação indígena, sob pena de admitir a possibilidade de justiça de mão própria
pelos interessados, conforme demonstrado acima. Desprovimento, no ponto, dos
recursos especiais da FUNAI, da União e do MPF.
6. Sem razão o particular quando defende o restabelecimento da condenação da
FUNAI ao ressarcimento pelos danos decorrentes do abatimento de animais ocorrido
nessa ocupação. Conforme bem lançado nas contrarrazões da FUNAI, a tutela de
natureza orfanológica prevista no Estatuto do Índio não foi recepcionado pela atual
ordem constitucional, por isso a fundação não possui ingerência sobre as atitudes dos
indígenas que, como todo cidadão, possuem autodeterminação e livre arbítrio, sendo
despida de fundamento jurídico a decisão judicial que impõe ao ente federal a
responsabilidade objetiva pelos atos ilícitos praticados por aqueles.
7. Com razão a FUNAI quando defende o afastamento da multa diária que lhe foi
imposta, em caso de nova invasão. Ora, se a recorrente não responde pelos danos
materiais decorrentes da ocupação irregular ocorrida no caso concreto, logicamente
não subsiste fundamento legal para que tenha que responder por multa diária em
caso de nova invasão, que pressupõe descumprimento de obrigação de não fazer por
parte da comunidade indígena.
8. Quando pede a redução da verba honorária imposta aos demandados no caso
concreto, a FUNAI parte do equivocado pressuposto de que os honorários fixados na
sentença foram mantidos no acórdão recorrido - o que não aconteceu, pois reduzidos
de R$-10.000,00 (dez mil reais) para R$-2.000,00 (dois mil reais). Incide o óbice da
Súmula 284/STF, tendo em vista que a fundamentação recursal mostra-se dissociada
do que efetivamente decidido no acórdão recorrido.
9. Recursos especiais da União, do Ministério Público Federal e de Flávio Páscoa
Teles de Menezes desprovidos. Recurso especial da FUNAI conhecido em parte e,
nessa extensão, provido em parte tão somente para afastar a multa diária que lhe foi
imposta.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos esses autos em que são partes as acima indicadas,
acordam os Ministros da SEGUNDA TURMA do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade
dos votos e das notas taquigráficas, o seguinte resultado de julgamento:
"A Turma, por unanimidade, negou provimento aos recursos da União, do Ministério
Público Federal e de Flávio Páscoa Teles de Menezes; conheceu em parte do recurso da FUNAI
e, nessa parte, deu-lhe parcial provimento, nos termos do voto do(a) Sr(a).
Ministro(a)-Relator(a)."
A Sra. Ministra Assusete Magalhães, os Srs. Ministros Francisco Falcão (Presidente),
Herman Benjamin e Og Fernandes votaram com o Sr. Ministro Relator.
Brasília (DF), 20 de agosto de 2019.

MINISTRO MAURO CAMPBELL MARQUES
Relator

Esta notícia foi publicada originalmente em um site oficial (STJ - Superior Tribunal de Justiça) e não reflete, necessariamente, a opinião do DireitoNet. Permitida a reprodução total ou parcial, desde que citada a fonte. Consulte sempre um advogado.
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