Direito penal do inimigo

Direito penal do inimigo

Discorre sobre a proposta do doutrinador alemão Günther Jakobs, que advoga pela aplicação da tutela penal em diferentes níveis repressivos, a depender da pessoa em relação a qual é imputado determinado delito, visando, nessa senda, garantir a pacificação social.

1. Breve intróito:

O Direito Penal do Inimigo foi bem conceituado pelo autor Luis Gracia Martín, com efeito:

Do ponto de vista geral, é possível dizer que esse Direito Penal do inimigo seria uma clara manifestação dos traços característicos do chamado Direito Penal moderno, isto é, da atual tendência expansiva do Direito Penal, que com freqüência origina formalmente uma ampliação dos âmbitos de intervenção daquele, e, materialmente, de acordo com a opinião majoritária, um desconhecimento, ou, pelo menos, uma clara flexibilização ou relaxamento, e, com isso, um menoscabo dos princípios e das garantias jurídico-penais liberais do Estado de Direito.1

A expressão Direito Penal do Inimigo foi utilizada pela primeira vez por Günther Jakobs no ano de 1985, em seu artigo sobre criminalização no âmbito prévio de condutas lesivas a bem jurídicos, publicado na Revista de Ciência Penal ZStW 97 (p. 753 e ss.) 2, oportunidade em que o autor criticou o endurecimento legislativo em matéria penal.

No ano de 1999, Jakobs ampliou a discussão do tema, passando a defender parcialmente esta tendência, assumindo um posicionamento de legitimação e aplicabilidade do chamado Direito penal do inimigo, que segundo o renomado doutrinador alemão se caracteriza, por três elementos, quais sejam: o adiantamento da punibilidade, a previsão de penas desproporcionalmente altas e a relativização ou mesmo a supressão de certas garantias individuais.

Logo depois, a discussão acerca deste Direito penal moderno trazido pelo autor ganhou ênfase quando ocorreram os atentados terroristas do dia 11 de setembro de 2001 contra os Estados Unidos, grande potência econômica e política. Diante desse fato, a mídia passou a divulgar ideais propostos pelo Estado norte-americano (USA Patriot Act) ao combate a crimes como aqueles, tendo em vista a eliminação de seus agentes.

Evidente que a indignação mundial frente à gravidade de alguns crimes e pela repulsa que causam dá força a teorias que buscam combatê-la, tais com a de Jakobs, que por ser duramente criticada por alguns autores, não representa algo imediatista.

Neste sentido, aqui vale analisar o que foi proposto por Jakobs.


2. Considerações e características do Direito penal do inimigo conforme Günter Jakobs:

A proposta de Jakobs é a introdução do Direito penal do inimigo como forma de contenção do avanço da criminalidade atentatória à ordem vigente. Entretanto, segundo o autor, a medida não significa ausência de direitos aos que foram declarados como inimigos, nem a adoção de um regime totalitário, em que todos ficarão submetidos aos mandos e desmandos do Estado, sem a garantia de defesa contra atrocidades. Ao contrário, por também se tratar de Direito, deve ser aplicado dentro do Estado democrático de Direito.

A propósito, a opinião de Gracia Martin:

A meu ver, um debate e uma indagação acerca desse denominado Direito Penal do Inimigo não poderiam ser feitos, nem teriam sentido, em relação à legislação de um regime totalitário. Nos regimes deste tipo, pode-se dizer que na realidade toda a legislação está inspirada pela ideologia de guerra contra inimigos. Essas legislações, do meu ponto de vista, não podem comungar da idéia do Direito e, do ponto de vista material, não podem ser reconhecidas como meros dispositivos de coação; por outro lado, nos Estados totalitários não pode ser reconhecido nenhum Estado de Direito, dado que, (...), não são a mesma coisa Estado com Direito e Estado de Direito. O debate sobre um Direito Penal do Inimigo, portanto, só pode ocorrer e ter sentido em relação ao Direito de sociedades democráticas que reconhecem e garantem direitos e liberdades fundamentais e que depositam o poder em autênticos e reais Estados de Direito.3

Após análise profunda do tema, Zaffaroni explica que a intenção de Jakobs, ao propor o Direito penal do inimigo foi, na verdade, realizar sua contenção. Ao fazer a divisão do Direito penal dentro do Estado democrático, sendo um deles o do inimigo, o que ele quis foi evitar que todo o sistema penal fosse contaminado pelo Direito do inimigo. Logo, tendo em vista o inevitável avanço da expansão do sistema punitivo, o que o autor pretendeu é que fosse preservado um Direito penal garantista, aplicável para o cidadão. Sendo que o outro somente deveria ser aplicado quando isso fosse realmente necessário.

Destarte, ao contrário do que se imagina, a proposta não figura um passo à expansão do Direito penal, mas vem, outrossim, para tentar conter esta expansão, que tem ocorrido, ou como medida de redução de danos. Seria para Jakobs institucionalizar e controlar o que já é fato. Assim, não se trata de uma proposta irracional ou infundada, como se tem em primeira impressão, mas sim de uma tática que busca preservar, em parte o sistema penal regido por garantias. Assim, faz-se de enorme importância sua discussão.

Ademais, o Direito penal do inimigo não representa inexistência de direitos, nem dos cidadãos, nem dos que são declarados inimigos. Trata-se, na verdade, de uma intervenção drástica do Estado na esfera das liberdades individuais. Entretanto, esta intervenção deve legalmente prevista e adequada aos parâmetros constitucionais.

Essa atuação interventiva pode ser vista como uma nova teoria jurídico-penal, o funcionalismo radical, ou seja, o pensamento que reserva elevado valor à norma jurídica como fator de proteção social. Representa a legitimação de atitudes mais enérgicas por parte do Estado com o fim precípuo de restabelecer a paz social que foi ou pode vir a ser abalada pelo criminoso habitual.

Assim, o caráter coativo da pena transmuda-se para o da medida de segurança, como forma de proteção da sociedade contra a periculosidade do agente. Por se tratar de medida de segurança, a intervenção estatal na liberdade do inimigo permanecerá enquanto permaneça sua periculosidade, o que não impede, entretanto, que o inimigo recupere o status de pessoa. Somente assim, poderá voltar a ser um cidadão, detentor de direitos e deveres, e a conviver harmoniosamente em sociedade.

Neste sentido é que se verifica a presença do Estado Preventivo, que busca segregar criminosos vistos como perturbadores da estabilidade do sistema normativo vigente e assim evitar um conseqüente prejuízo à segurança da sociedade.


3. As principais características do Direito Penal do Inimigo são:

 1- A relatividade do princípio da legalidade, por meio da previsão de tipos penais vazios ou genéricos, uma vez que não são expressos de forma clara, dando margem a uma ampla interpretação e, aplicação. O princípio é mitigado, sob o fundamento de que a periculosidade do autor impede a previsão de todos os atos que possam vir a ser por ele praticados.

2- Deixa-se de lado o juízo de culpabilidade para a fixação da reprimenda imposta ao inimigo, privilegiando-se sua periculosidade, uma vez que ele representa um grande perigo para a sociedade. Com isso, ocorre o adiantamento da tutela penal para atingir inclusive atos preparatórios. Tendo em vista que este tipo de autor é manifestadamente voltado para o crime, não há que se esperar que ele pratique infrações penais para, posteriormente, aplicar-lhe a repressão estatal, como se dá com os cidadãos comuns. Pelo contrário, para a manutenção da ordem pública deve-se combater a sua periculosidade, impondo-lhe medida de segurança quando da mera demonstração de futura e eventual prática criminosa.

3- Em virtude da tutela antecipada, também são previstas mudanças nos aspectos processuais. A prisão preventiva é uma das medidas processuais mencionadas por Jakobs, e da mesma forma que a medida de segurança, ela também tem, para o indivíduo, apenas significado de coação física. Tais medidas tratam, na verdade, de acautelamento. Isso porque, uma vez que o inimigo se encontra em estágio de afastamento da ordem jurídica, não dispensará qualquer interesse em relação ao processo, impossibilitando a aplicação da justiça. Ao cidadão esta medida não será aplicada, pois se entende que este não se oculta e não prejudica a instrução probatória, sendo desnecessário, portanto, seu encarceramento para garantir o trâmite normal do processo.

Nessa senda, vale frisar, que o Código Penal brasileiro prevê a prisão preventiva em determinados casos, nos seguintes termos: A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente da autoria.4

Como medidas processuais aplicáveis, Jakobs elenca ainda as intervenções nas telecomunicações (interceptações telefônicas), investigações secretas e a infiltração de agentes, também se pode contar com a quebra de sigilos bancários. Estas medidas são aplicáveis na fase inquisitiva, possibilitando o desmantelamento das organizações criminosas.


4. Ponderações sobre o Direito Penal do Cidadão e Direito Penal do Inimigo:

Atualmente, é possível verificar dois tipos de agentes criminosos: os ocasionais e os habituais ou profissionais. Estes últimos estão vinculados à prática de crimes modernos e mesmo após sofrerem uma sanção penal, continuam a atentar contra a ordem jurídica, causando temor na coletividade e riscos à sociedade constituída. Destarte, sobre eles dificilmente consegue se aplicar o ordenamento jurídico, e logo merecem atenção, pois são o foco da atuação do Direito proposto por Jakobs, que os denomina por inimigos5. Nesta senda, esclarece Silva Sánchez:

A conversão do ‘cidadão’ em ‘inimigo’ se produz mediante a reincidência, a habitualidade, o profissionalismo delitivo e, finalmente, a integração em organizações delitivas estruturadas, e esse trânsito, além de significado de cada fato delitivo concreto, manifestaria uma dimensão fática de periculosidade que deveria ser prontamente enfrentada.6

Vale frisar que não são os tipos de crimes praticados pelos indivíduos que o caracterizam como inimigos. Geralmente, os bens jurídicos lesados pelos cidadãos e pelos inimigos coincidem, entretanto, o que os caracteriza como ameaças sociais é a persistência na inobservância das normas a ele impostas.

Atento a isso, Günter Jakobs propõe que o Direito penal deve ser aplicado diferentemente a cada tipo de indivíduo. Ele estabelece que o chamado Direito penal do cidadão, é aplicável àqueles que, apesar de cometerem um fato delitivo, não representam um risco futuro à coletividade, e que o Direito penal do inimigo, aplicável àqueles indivíduos que não dão à coletividade a certeza de que não voltarão a delinqüir.

O Direito penal do cidadão se preocupará com os delitos realizados pelas pessoas de forma eventual. A estas transgressões ao ordenamento, que não passam de meros deslizes, nos termos da prevenção geral descrita por Jakobs, a pena deve ser imposta como forma de restabelecer a vigência da norma e estabilizar o ordenamento jurídico. Neste sentido, o cidadão que pratica um fato delitivo, apesar de agir em contrariedade ao ordenamento jurídico, tem o direito de voltar ao convívio social, pois continua subjugado às normas jurídicas. Destarte, ao cidadão caberá o tratamento de pessoa, com todas as garantias jurídico-penais do Estado democrático de Direito a ele inerentes.

Ademais, uma pena só será imposta a um cidadão após uma exteriorização de conduta, e a sanção se dará com o escopo de restabelecer a norma violada. Logo, infere-se que não haverá criminalização no âmbito prévio de condutas praticadas pelos que gozam do status de pessoa.

Já o Direito penal do inimigo irá se ater à periculosidade do agente e aos riscos que representa a sua convivência em sociedade. O indivíduo que não exterioriza uma garantia cognitiva mínima, tendo se afastado de maneira duradoura ou definitiva do Direito, passa a representar para a sociedade uma ameaça à manutenção da norma vigente, logo, o tratamento a ele dispensado passará a ser o de não pessoa, motivo pelo qual Jakobs o trata por indivíduo.

Uma vez que trata se de um Direito penal que possui destinatários muito bem definidos, Jakobs traz um rol dos mais propensos inimigos da sociedade, que figuram como: criminosos econômicos, terroristas, integrantes de organizações criminosas e delinqüentes sexuais, deixando em aberto, no entanto, a possibilidade de se enquadrar qualquer outro delinqüente contumaz como inimigo.

Uma vez que o inimigo representa um perigo constante à coletividade, é necessária a precaução do Estado em busca de evitar futuros danos que ele possa vir a causá-la e, tão-logo haja cogitado a prática delitiva, a sanção deve-se fazer presente. Trata-se do denominado Direito penal do autor em substituição ao usual Direito penal de fato.

Assim, quando a pessoa/cidadão passa ao estado de indivíduo/inimigo a ele deixa de ser conferido o direito de ser punido apenas por suas condutas exteriorizadas, e passa e ser punido também pelos possíveis delitos que possa vir a cometer dentro de uma sociedade. Nesta esfera de raciocínio, o autor dispõe o seguinte:

não se trata, em primeira linha, da compensação de um dano à vigência da norma, mas da eliminação de um perigo: a punibilidade avança um grande trecho para o âmbito da preparação, e a pena se dirige à segurança frente a fatos futuros, não à sanção de fatos cometidos.7

Em suma, verificam-se duas tendências, ou duas formas de tratamento possíveis no Direito penal:

Por um lado, o tratamento com o cidadão, esperando-se até que se exteriorize sua conduta para reagir, com o fim de confirmar a estrutura normativa da sociedade, e por outro, o tratamento com o inimigo, que é interceptado já no estado prévio, a quem se combate por sua periculosidade.8

Vale frisar que, caso não ocorra essa diferenciação do Direito a ser aplicado aos inimigos, os próprios cidadãos perderão as garantias que lhes são conferidas, pois, como ilustrado, os inimigos atentam contra toda a ordem jurídica vigente de forma obstinada.


Notas

1 GRACIA MARTIN, Luis. O horizonte do Finalismo e o Direito Penal do Inimigo. Série Ciência do Direito Penal Contemporânea. Traduzido por Luiz Regis Prado e Érika Mendes de Carvalho. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 75/76.

2 Idem, Ibidem. p. 75.

3 GRACIA MARTIN, Luis. O horizonte do Finalismo e o Direito Penal do Inimigo. Série Ciência do Direito Penal Contemporânea. Traduzido por Luiz Regis Prado e Érika Mendes de Carvalho. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 79.

4 ______. Código de Processo Penal. 3 ed. São Paulo: Rideel, 2006.

5 INIMIGO adj. (Do latim inimicus.) 1. Não amigo, hostil, adverso, contrário. – 2. Malquistado, indisposto. – 3. De ou pertencente a partido, facção ou grupo oposto.

6 SILVA SANCHEZ apud GRACIA MARTIN, Luis. O horizonte do Finalismo e o Direito Penal do Inimigo. Série Ciência do Direito Penal Contemporânea. Traduzido por Luiz Regis Prado e Érika Mendes de Carvalho. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 83.

7 JAKOBS, Günter, e MELIÁ, Cancio. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas. Organização e tradução de André Luis Callegari e Nereu José Giacomolli, 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 35/36.

8 JAKOBS, Günter, e MELIÁ, Cancio. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas. Organização e tradução de André Luis Callegari e Nereu José Giacomolli, 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 37.
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