Ressocializar ou não-dessocializar, eis a questão

Ressocializar ou não-dessocializar, eis a questão

Crítica a teoria da ressocialização, mostrando suas incongruências e contradições, sustentado a necessidade do sistema de aplicação da pena trabalhar, em um primeiro momento, com a não-dessocialização do condenado.

A questão da finalidade da pena é um tema que percorre os séculos, envolvendo vários ramos do conhecimento humano, os quais nos oferecem uma gama imensa de teorias e teses.

Nossa pretensão é discutir alguns aspectos da ressocialização enquanto finalidade da pena.

De início, cabe discutir se a ideia de ressocialização é compatível com a imposição e execução da sanção penal. A teoria da socialização, em sua linha mais abrangente, vê o delito como déficit ou carência no processo de socialização, devendo a intervenção punitiva integrar o delinqüente no mundo dos seus co-cidadãos, ou seja, a pena como instrumento de adaptação funcional à coletividade.i

O termo ressocializar traz em seu bojo a ideia de fazer com que o ser humano se torne novamente social (ou sócio). Isto porque, deve-se ressocializar aquele que foi dessocializado.

Disso resulta uma primeira crítica. Adverte Muñoz Conde, em excelente artigo escrito sobre a ressocialização, que:

“Si se acepta y se da por buena la frase de Durkheim de que ‘la criminalidaded es um elemento integrante de uma sociedad sana’ y se considera, además, que es misma sociedad la que produce y define la criminalidad, es lógico que se pergunte hasta qué punto tiene sentido hablar de ressocialización del delincuente em uma sociedad que produce ella misma delincuencia.”ii

Portanto, não se pode conceber que a pena tenha como objetivo “melhorar” o indivíduo dessocializado pela própria sociedade, sem que isso não se converta em uma imposição arbitrária e contrária a livre autonomia individual.

Sob outro prisma, podemos asseverar que a pena jamais pode carregar a tarefa ressocializadora, já que ela própria dessocializa. Na lição de Alessandro Baratta, não se pode, ao mesmo tempo, excluir e incluir.iii Assim, como querer que o fator dessocializante seja, também, ressocializador? Não é o crime (em regra) que dessocializa. Pois, se assim fosse, a pena poderia (em tese) cumprir tal função ressocializadora.

Para comprovar essa afirmação (de que o crime não dessocializa) basta um olhar superficial na sociedade, eis que dessa leitura restará comprovado que o traficante do morro não está dessocializado, nem mesmo o infrator de colarinho branco que fraudou o sistema financeiro, e muito menos o sujeito que comete pequenos e ocasionais furtos. Não existe, pois, uma correlação absoluta entre delinqüência e ressocialização.

Enfim, o que dessocializa é o cumprimento da sanção penal, sendo a privativa de liberdade seu grande expoente de dessocialização.

Assiste razão Wanda Capeller ao escrever que o discurso jurídico da ressocialização oculta a verdadeira razão da pena, qual seja, o castigo, que criminaliza e penaliza os que “sobram”, que leva sofrimento e a morte para aqueles que são “demais” e não são absorvidos economicamente, porquanto não são produtivos. Trocou-se o velho castigo inquisitório, pelo castigo dito “humanitário”.iv

Os defensores da função ressocializadora da pena, até mesmo por concordarem que é a própria pena que dessocializa, argumentam que “refletir sobre a finalidade que deve guiar a execução da pena não é o mesmo que analisar os efeitos que a pena produz tendo presente a realidade penitenciária.”v

No entanto, a distinção entre fins da pena e fins da execução, além de artificiosa, oculta contradições inconciliáveis, já que a pena somente pode operar de forma ressocializadora na sua execução. Assim, se a pena e sua execução dessocializa, estigmatizando o infrator, não cabe configurá-la como um remédio reabilitador.vi

A dessocializa ocorre, como observa Baratta, pela ocorrência de dois fatores: a) “desculturação”, que é a desadaptação às condições necessárias para a vida em liberdade, a redução do senso de realidade do mundo externo e a formação de uma imagem ilusória deste, o distanciamento progressivo dos valores e dos modelos de comportamento próprios da sociedade externa; b) “prisionalização”, que é a absorção dos valores fixados pela subcultura carcerária, em que o preso é educado para ser criminoso e para ser bom preso.vii

Soma-se a esses dois fatores o estigma que o fim do cumprimento fixa no indivíduo, o qual, em muitos casos, é perpetuado por assistências que só visam ampliar o Universo carcerário, como advertia Foucault.viii

Se há o interesse em ressocializar, basta não dessocializar. Mas como fazer com isso ocorra? Em que pese a divergência de alguns aspectos trabalhados pela Professora da Faculdade de Direito de Coimbra Anabela Miranda Rodrigues, principalmente no tocante a função da pena como socializadora, comungamos de forma plena com sua tese de que o objetivo (ou um dos) da pena deve ser evitar a dessocialização do infrator.

Evitar a dessocialização é diferente de ressocializar. Isto porque, não há como negar que a ressocialização é, no seu aspecto mais evidente, a preparação do infrator para voltar a ser sócio. Em outros termos, visa preparar o ser humano “banido” para o regresso à sociedade. Este é o ponto de discordância, pois a pena não ressocializa, e os séculos são provas disso. Como a pena é dessocializante, impossível se torna a ressocialização.

Nesses termos, a realidade demonstra que o fim a ser perseguido não é a ressocialização, mas a não-dessocialização. Toda e qualquer sanção penal deve buscar, ao menos, amenizar a dessocialização, e quando possível evitá-la.

Com esse norte, podemos asseverar que todas as sanções penais, até mesmo as alternativas, têm um fator, ainda que mínimo em alguns casos, dessocializador. Excluindo ou diminuindo esse fator dessocializador, obviamente estará retirada a carga de ressocializar da pena.

Daí mais uma razão, dentre as várias elencadas pela doutrina garantista, de diminuir a incidência do Direito Penal, descriminalizando algumas condutas, e aplicando sanções alternativas, que no nosso entender não devem receber esse rótulo (alternativa), haja vista que deve ser a regra, e não opção. A pena de prisão é que deve ser a alternativa em casos extremos, imprescindíveis para salvaguardar a ordem jurídica.

Já argumentava Fragoso: “A conseqüência natural da falência da prisão é o entendimento de que ela deve ser usada o menos possível, como último recurso, no caso de delinqüentes perigosos, para os quais não haja outra solução. Formula-se assim o princípio da ultima ratio.”ix

Resta diáfano que “o sistema não resolve os conflitos. As penas e a principal das penas, ou seja, aquela de cadeia, de prisão, está a reproduzir a freguesia da própria cadeia...o sistema mata, tortura, seqüestra, fere, reproduzindo a freguesia das gaiolas e o pessoal do sistema.”x

Logo, a primeira solução para que não ocorra a dessocilização é diminuir a incidência da pena de prisão, privilegiando outras espécies de sanção penal.

Sabemos, no entanto, que é impossível extinguir a pena de prisão. Com isso, aplicada a pena de prisão, imprescindível se torna promover instrumentos durante a execução para amenizar o fator dessocializador. Apoiados em Anabela Miranda Rodrigues, elencamos três bases para que isso seja posto em prática: respeito à liberdade de consciência do recluso, a realização positiva dos direitos fundamentais do recluso e a obrigação constitucional de intervenção social do Estado.xi

No entanto, para não cair em retóricas circulares, que preenchem linhas, mas não resolvem a questão, entendemos que o Estado deve proporcionar instrumentos pós-pena, para amenizar, diminuir ou excluir o efeito dessocializador da sanção. Dito de outra forma, se a pena dessocializa, cabe ao Estado efetivar medidas ressocializadoras pós cumprimento da pena, sem que esteja carregada por um lastro de vigília perpétua.

Esses instrumentos serão difundidos positivamente para toda sociedade, não só para ressocializar o infrator, mas também evitar a reincidência. A prevenção especial deve ocorrer fora e não dentro do âmbito da pena. É necessário abandonar, a priori, a definição legal de prevenção penal e partimos para uma prevenção social ou primária. Esta se consubstancia pragmaticamente falando, nas causas originárias do delito, cuidando do indivíduo antes que este venha a suplantar sua conduta ilícita.xii

A teoria da prevenção social ou primária atua nas causas originais que levam ao delinqüente praticar sua conduta, apontando meios e dando oportunidades para o mesmo, que não só a criminalidade, maior empregador nos meios periféricos. Assim, a educação e socialização, bem-estar social e qualidade de vida são âmbitos essenciais para uma prevenção primária, que opera sempre a longo e médio prazo e se dirige a todos os cidadãos.

Entendemos que se o enfoque for não-dessocializar, amenizar a dessocialização causada com a pena, principalmente a de prisão, e ressocializar após a pena, promovendo a chamada prevenção social, a qual visa a todos, inclusive o infrator que cumpriu sua pena, o sistema penitenciário estará mais alinhado com os fundamentos e objetivos da nossa Carta Magna.

Referências

i MOLINA, Antonio García-Pablos de; GOMES, Luiz Flávio. Criminologia. 6. ed. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 2008. p. 424.

ii CONDE, Francisco Muñoz. La ressocialización Del delicuente. Análisis y crítica de um mito. Doctrina Penal: teoria y práctica em las Ciencias Penales. Buenos Aires, Depalma, ano 2, n. 5 a 8. p. 627-628, 1979.

iii BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2002, p. 186.

iv CAPELLER, Wanda. O direito pelo avesso: análise do conceito de ressocialização. Temas IMESC. São Paulo, ano 2, p. 127-134, jul/dez. 1985.

v RODRIGUES, Anabela Miranda. Novo olhar sobre a questão penitenciária. 2. ed. Portugal: Coimbra Editora, 2002. p. 46.

vi MOLINA, op. cit. p. 424.

vii BARATTA, op. cit., p. 184-185.

viii FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 16. ed. Petrópolis: Vozes, 1997.

ix FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994. p. 288

x ZAFFARONI, Eugênio Raul. Função da criminologia nas sociedades democráticas. Trad. Augusto Monte Lopes. Fascículos de Ciências Penais. Porto Alegre, SAFE, v. 2, n. 11, p. 171, nov. 1989.

xi RODRIGUES, op. cit., 53.

xii MOLINA, Antonio García-Pablos de; GOMES, Luiz Flávio. Criminologia. 2. ed. São Paulo: Revistas dos Tribunais. p. 335.
Sobre o(a) autor(a)
Clovis Alberto Volpe Filho
Advogado, Mestre em Direito Público pela Unifran e professor de Direito da Fafram/Ituverava-SP.
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