Será necessária a permanência do Tribunal do Júri?

Será necessária a permanência do Tribunal do Júri?

Analisa o surgimento do Tribunal do Júri e sua estrutura. Faz um questionamento acerca da necessidade de sua permanência em razão da falta de técnica dos jurados e influência da imprensa.

O Júri é uma justiça diferente dentro do Poder Judiciário. Ele julga de acordo com sua consciência, não estando adstrito a normas positivadas, a certos formalismos. O Júri julga de acordo com aquilo que considera justo dentro de princípios de justiça imanente, dentro daquilo que na sua visão pessoal, na sua impressão sobre os fatos, representa uma solução de verdade e bom senso.

De um modo geral, não estamos acostumados a refletir acerca dos problemas de ordem social, política e econômica que ocorrem costumeiramente. Usamos o senso comum por ser a maneira mais cômoda e fácil de justificar os fatos ocorridos ao nosso derredor, afinal, a todo instante fazemos um juízo de valor sobre eles sem ao menos questioná-los.

Sendo assim, até que ponto o senso comum é compatível com idéias e ideais de justiça? Seria o Tribunal do Júri, instituto do Direito Processual Penal, a expressão, quiçá comprovação, de que o senso comum popular conduz a decisões justas?

O Tribunal do Povo nasceu na Inglaterra por volta do século XIII, após o Concílio de Latrão ter abolido as ordálias e os juízos de Deus. Surgiu com um explícito e contundente caráter místico e religioso, pois era constituído por doze membros evocando os apóstolos de Cristo. Logrou rápida aceitação na época da Revolução Burguesa, em virtude da forte aversão à classe dos magistrados historicamente vinculada a nobreza e, da França disseminou-se por todo o continente. [1]

No Brasil, o Tribunal do Júri foi instituído através do Decreto Imperial editado em 18-06-1822, competindo-lhe restritivamente julgar os crimes de imprensa. Ao inseri-lo, a Constituição Imperial de 1824 guindou-o à condição de órgão do Poder Judiciário, dotando-o de competência para questões civis e criminais (arts. 151 e 152). [2]

A Constituição Federal promulgada em 1988, ao instituir o Estado Democrático destinado a garantir tudo quanto disposto no seu Preâmbulo, recepcionou o Tribunal do Povo consagrando-o como uma instituição de garantia individual, inserindo-o dessa maneira, no rol das Cláusulas Pétreas.

Localizado no artigo 5º, inciso XXXVIII, alíneas ‘a’, ‘b’, ‘c’, ‘d’, foi reconhecida a instituição do Júri, com a organização que lhe der a lei, assegurados a plenitude de defesa, o sigilo das votações, a soberania dos veredictos e a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.

A lei que organiza o Júri é o Decreto-Lei nº 3689/41- Código de Processo Penal Brasileiro.

O Tribunal do Júri é composto por um Juiz de Direito (presidente do Tribunal), e por vinte e um jurados, dentre os quais sete serão sorteados para constituir o Conselho de Sentença. Ainda sobre a estrutura do Tribunal do Júri, importa salientar que, o mesmo é um órgão colegiado, heterogêneo, e temporário e o Conselho de Sentença é quem decidirá sobre a existência do crime, as circunstâncias excludentes da culpabilidade e de antijuridicidade, a respectiva autoria, sobre as circunstâncias que modelam e deslocam o tipo fundamental para figuras especiais, bem como sobre circunstâncias que servem, apenas, para a fixação da pena. Entretanto, a aplicação da pena fica a cargo exclusivo do Juiz de Direito, que não poderá afastar-se do quanto decido pelo Conselho de Sentença. [3]

O Júri, portanto é, expressão democrática, intérprete da vontade do povo. Os investidos na função de jurados decidem em nome dos demais, representando a sociedade da qual fazem parte. Os sete integrantes do Conselho de Sentença, são Juízes de Fato, formam a própria convicção e mediante um SIM ou um NÃO, decidem pela inocência ou pela culpa de quem deve julgar. Logo, o Júri popular é julgamento de alguém do povo, pelo próprio povo.

Ainda sobre o preceito constitucional do Júri, Celso Ribeiro Bastos escreveu: “o fato é que nele continua a ver-se prerrogativa democrática do cidadão, uma fórmula de distribuição da justiça feita pelos próprios integrantes do povo, voltada, portanto,muito mais à justiça do caso concreto do que à aplicação da mesma justiça a partir de normas jurídicas de grande abstração e generalidade”. [4]

Neste contexto, é importante digredir brevemente acerca dos princípios assegurados pela Lex Major, quais sejam, a plenitude de defesa, o sigilo das votações, a soberania dos veredictos e a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.

No que pertine a plenitude de defesa, está incluído nesse princípio, além do direito à ampla defesa, no qual o réu em igualdade de condições pode contra-razoar tudo aquilo que lhe é dito em desfavor, o direito a composição heterogênea do Conselho de Sentença.

A necessidade do corpo de jurados ser composto por representantes dos mais diversos segmentos sociais, se faz mister para que seja afastada a homogeneidade de uma determinada classe social, evitando um julgamento distorcido e uniformizado por apenas um segmento da sociedade. [5]

Desse modo, tal heterogeneidade é imprescindível, uma vez que a maioria dos jurados decide de acordo com critérios e valores particulares, de cunho pessoal, desvinculado das nuances técnico-jurídicas do caso. [6]

Quanto ao sigilo das votações, este não abrange os atos preparatórios, tem apenas o fito de proteger a livre manifestação dos jurados, que devem estar imunes às interferências externas para proferirem o seu veredicto.

A “essência do Júri” é, o princípio constitucional da soberania dos veredictos. Esta é respaldada pela inadmissão dos “juízes togados exercerem, concomitantemente, o judicium recindens e o judicium rescisorium, porque há impossibilidade da decisão alicerçada em veredicto dos jurados ser subtraída, quiçá substituída, por outra sentença sem esta base”. [7]

No entanto, a soberania do Júri e sua efetividade são discutíveis, posto que no teor do art. 593 e parágrafos do CPP, é admitida a interposição de recurso da deliberação do Júri por decisão manifestamente contrária à prova dos autos.

Assim, é possível uma decisão absolutamente contrária a anteriormente caçada, vislumbrando, por conseguinte, uma relativização da soberania do Júri.

Ademais, o Supremo Tribunal Federal declarou que a garantia constitucional da soberania do veredicto do Júri não exclui a recorribilidade de suas decisões. [8]

Corrobora com o entendimento de que a soberania do Júri é relativa, a decisão do STF em relação à possibilidade de protesto por novo Júri. [9]

Por fim, o último princípio assegurado pela Magna Carta é a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.

Com se vê, o bem jurídico que se tutela é a vida humana, assim sendo, os crimes enquadrados pelo dispositivo constitucional são os de homicídio (art. 121, §§ 1º e 2º, CP), o induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio (art. 122, § único, CP), o infanticídio (art. 123, CP) e o aborto (Art. 124 a 127, CP), em suas modalidades tentadas e consumadas.

Entretanto, esta competência é considerada mínima, haja vista a prerrogativa de ampliação do rol dos crimes que poderão vir a serem julgados pelo Tribunal do Júri por via de norma infraconstitucional. Afinal, como diz o velho jargão do direito: “o que não está juridicamente proibido, está juridicamente permitido”.

Exemplo do que se expõe é a promulgação da lei nº 9299/96 que atribui competência ao Tribunal do Júri para julgar os crimes dolosos contra a vida, praticados por militares contra civis.

Ressalte-se que, malgrado a competência do tribunal do Júri seja uma regra inafastável em virtude da petrificação do dispositivo, haverá situações excepcionadas pela própria Constituição, conferindo prerrogativa de função quando os crimes dolosos contra a vida forem praticados por autoridades com foro de processo e julgamento previstos diretamente pela Carta Maior, o que demonstra a relativização de mais esse dispositivo.

Nesse diapasão, destaca Alexandre de Moraes que “a competência do Tribunal do Júri não é absoluta, afastando-a a própria Constituição Federal, no que prevê, em face da dignidade de certos cargos e da relevância destes para o estado, a competência de Tribunais, conforme determinam os arts. 29, inciso VIII ; 96, inciso III ; 108, inciso I, alínea ‘a’ ; 105, inciso I, alínea ‘a’ e 102, inciso I, alíneas ‘b’ e ‘c’. Também, nas hipóteses de conexão e continência entre duas infrações penais, um crime doloso contra a vida e outro como foro por prerrogativa de função, inexistirá atração, prevalecendo a regra do juiz natural, havendo, necessariamente, a separação dos processos”. [10]

Não obstante a tudo quanto exposto até o momento e, embora o Mestre das Alteras, Rui Barbosa, tenha definido a instituição do Júri como meridiano da civilização, a verdade é que o Tribunal dos Juízes Leigos tem ao longo da história sofrido acirradas críticas no que pertine à sua legitimidade.

Os detratores do Tribunal do Júri apontam o despreparo técnico dos jurados que nem sempre estão aptos para julgar; a ausência de motivação das decisões, já que decidem em consonância com sua íntima convicção; a morosidade dos julgamentos, enfim, assinalam uma série de empecilhos para a permanência do instituto.

Contudo, o ponto mais importante dentre as inúmeras críticas imputadas ao Júri, é o fato de que comumente, os crimes levados ao crivo popular vêm acompanhados de grande repercussão social, deixando os jurados vulneráveis às pressões e influências da mídia e da sociedade.

Como é cediço, o Júri é formado por pessoas que carregam em si juízos de valor formados a partir de sua convivência com determinados grupos sociais, tornando-se, presas fáceis da mídia sensacionalista.

Ao revés, a atuação do Júri como representante da sociedade teria total legitimidade, no momento em que a formação de sua opinião fosse adstrita somente aos argumentos da promotoria e da defesa, por meio da narração dos fatos apresentados na denúncia e no libelo, sem maiores burburinhos sensacionalistas.

Outrossim, inúmeros são os argumentos dos ardorosos defensores do Júri, entre eles, a severidade do Juiz Togado que se apega ao formalismo legal não se preocupando em interpretar a lei de maneira humana, pois o passar do tempo o deixa insensível transformando-o em um mero aplicador da norma jurídica, um mero técnico do Direito. [11] Aduzem também, que a manutenção do Tribunal do Júri é salutar por ser ele uma instituição democrática na qual o réu é julgado pelos seus pares, que por sua vez têm melhores condições de apreciarem a conduta do acusado com maior humanidade. Asseveram que a participação popular promove a efetiva aplicação do Direito, tendo em vista o sistema penal profundamente arraigado em normas postas ser muitas vezes insensível à dinâmica social, já que a lei não acompanha as mudanças cotidianas.

Ocorre que, muitas vezes o cidadão comum chega a ser mais severo que o próprio juiz togado.

O problema é que cabe ao Júri dizer somente SIM ou NÃO, absolver ou condenar, não é conferido ao juiz leigo o direito de opinar sobre a quantidade da pena que deveria ser aplicada ao caso concreto, pois se assim fosse, restaria mais que provado que as penas cominadas estariam muito alem das aplicadas pelos juízes togados.

Sem sombra de dúvida, o Tribunal do Júri é o mais sedutor dos institutos do Direito Processual Penal. Consolidou-se dentre todas as instituições do nosso ordenamento legal, como a mais democrática e, apesar de concordarmos com os ideais de justiça propostos por esta Instituição, não podemos deixar de pontuar que atualmente a essência do Tribunal Popular está corrompida pela possibilidade da falta de um justo julgamento do acusado.

Existe um despreparo daqueles que são escolhidos para compor o corpo de jurados, de forma que facilmente são induzidos a julgar de acordo com suas emoções, revelando uma total atecnia, que na maioria das vezes, acarreta na absolvição de um acusado que certamente seria condenado dentro dos critérios técnicos processuais.

Na mesma esteira, há muito, os dispositivos concernentes aos princípios basilares do Tribunal do Júri vêm sendo relativizados, fazendo com que a instauração de um Tribunal Popular não passe de um teatro armado para satisfazer a imprensa e ludibriar a sociedade que, mal informada acerca do que realmente vem a ser um julgamento popular, imagina ser essa a melhor forma de se condenar um contraventor.

Existem critérios éticos de justiça, critérios esses, universais, que sobremaneira influenciam o senso comum popular. Existe a justiça real refletida no senso comum, e a justiça ideal, em que há questionamentos. O tribunal do Júri é um senso comum, e na busca por uma justiça ideal precisa ser questionado.

Dessa forma, ainda que haja mecanismos processuais para atenuar os efeitos das decisões do Júri, será que realmente é necessária a permanência do Tribunal do Júri?


[1] MARQUES, José Frederico. A Instituição do Júri. José Frederico Marques. Campinas: Bookseller, 1997.


[2] ACQUAVIVA, Marcus Cláudio. Dicionário Jurídico Brasileiro. São Paulo, Ed. Jurídica Brasileira, 1ª ed., 1993.


[3] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. 5ª ed., ver, atual. e aum., Saraiva, São Paulo, 2003.


[4] BASTOS, Celso Ribeiro. A reforma da Constituição: em defesa da revisão constitucional. Jus Navegandi, Teresina, a.4, 36, nov. 1999. Disponível em : <http:// www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=141>. Acesso em: 03/03/05.


[5] MIRANDA, Pontes. Comentários à Constituição de 1946. Rio de Janeiro: Henrique Cohem, 1946. p. 270.


[6] MIRANDA, Pontes. Ob. Cit. p. 270.


[7] BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federativa Anotada. São Paulo, Saraiva, 1ª ed., 2000, p. 198.

[8] STF, HC 71.617-2, 2ª T., Rel. Min. Francisco Rezek, DJU, Seção 1, 19 maio 1995, p. 13. 995; STF, RE 176.726-0, 1ª T., Rel. Min. Ilmar Galvão, DJU, Seção 1, 26 maio 1995, p. 15. 165.



[9] STF, RT 510/461; STJ – Resp. nº 136.109/DF – Rel. Min. José Dantas, Diário da Justiça, Seção 1, 3 nov. 1997, p. 56.357; Ementário STJ, 01/516; 14/622; TJ/SP – RT 444/334.


[10] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo, Atlas, 2002, p. 112.


[11] PESSOA, Rogério Belens. Extinção ou manutenção do Tribunal do Júri?. Jus Navegandi. Disponível em: < http:// www1.jus.com.br > Acesso em: 06/03/05.

Sobre o(a) autor(a)
Marcela Blumetti Matos
Bacharel em Direito
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