TST discute habeas corpus impetrado por trabalhadores que não aderiram a greve
A Subseção II Especializada em Dissídios Individuais do Tribunal Superior do Trabalho (SDI-2) declarou nulos todos os atos praticados no âmbito do Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região (BA) num pedido de habeas corpus em que fora garantido o acesso de um grupo de trabalhadores da Petrobras Transportes S/A (Transpetro) ao Terminal Aquaviário de Madre de Deus, durante uma greve realizada em 2015. Embora considerando cabível a impetração de habeas corpus para essa finalidade, o colegiado, por unanimidade, acolheu parcialmente recurso do Sindicato dos Petroleiros do Estado da Bahia (Sindipetro/BA), por considerar que o juízo competente para examinar o caso não era o TRT, mas uma das Varas do Trabalho de Santo Amaro (BA).
Direito de ir e vir
No habeas corpus, o grupo de empregados sustentava que, durante a greve, o Sindipetro havia bloqueado o acesso a todas as unidades da Transpetro na Bahia. Segundo eles, o movimento atentava contra a garantia constitucional do direito de ir e vir, atrasando a escala de turnos, ameaçando e constrangendo empregados e impedindo a circulação de veículos.
Em decisão monocrática, o desembargador relator do Tribunal Regional do Trabalho da 5ª Região (BA) concedeu liminarmente o salvo conduto em favor dos empregados. A decisão autorizava, caso necessário, a requisição de força policial para o seu cumprimento e fixava multa diária de R$ 50 mil por empregado atingido em caso de descumprimento.
Bloqueio
O sindicato, entretanto, descumpriu a liminar, levando o grupo de empregados a postular a majoração da multa. Foi determinado, então, o bloqueio de R$ 2 milhões do sindicato e fixada a multa em R$ 300 mil por dia de descumprimento. Caso a busca fosse infrutífera, a decisão autorizava o bloqueio da conta pessoal dos dirigentes sindicais.
Ao analisar agravo interposto pelo sindicato, a Seção Especializada em Dissídios Coletivos do TRT extinguiu o habeas corpus, em razão do fim do movimento grevista, mas manteve a condenação do sindicato ao pagamento da multa (astreintes).
Cabimento
No exame do recurso do sindicato, a SDI-2 discutiu, inicialmente, o cabimento do habeas corpus para garantir o direito dos empregados que querem trabalhar. O relator, ministro Dezena da Silva, explicou que, para uma corrente doutrinária, a medida só é cabível contra atos de autoridade, e não de particular (no caso, a entidade sindical). No seu entendimento, porém, o sindicato tem autorização legal para deflagrar a paralisação coletiva, de modo que eventual constrangimento ao direito de locomoção, decorrente de ato praticado por ele, é passível de questionamento por esse meio.
Direito coletivo x direito individual
Ainda de acordo com o ministro, a possibilidade de uso do habeas corpus pelos trabalhadores individualizados que, livremente, resolvem não aderir ao movimento paredista não limita o exercício do direito de greve, cuja natureza é coletiva. Ele lembrou que o habeas corpus não discute a abusividade da greve nem as responsabilidades de eventual abuso. “Cuida-se, unicamente, de se conceder ou não o salvo conduto, mediante configuração do constrangimento ilegal sobre o direito fundamental de locomoção”, assinalou. Esse direito, a seu ver, é uma garantia inalienável, que não pode ser tolhida, mesmo que se contraponha a outro direito fundamental.
Juiz natural
O segundo ponto analisado foi a alegação do sindicato de incompetência funcional do TRT da 5ª Região para julgar o caso. Sobre esse aspecto, o ministro Dezena da Silva observou que o ato questionado no habeas corpus foi praticado por particular, e não por autoridade judiciária, e essa circunstância afeta a definição do juiz natural para sua apreciação.
De acordo com o relator, a competência funcional deriva da hierarquia dos órgãos do Poder Judiciário, estruturada a partir dos graus de jurisdição e das instâncias de conhecimento. Nessa perspectiva, se o habeas corpus for impetrado contra ato de particular, a competência hierárquica será das Varas do Trabalho. O TRT julga habeas corpus contra ato do juiz de primeiro grau, e o TST julga habeas corpus impetrado em face de TRT.
Com a declaração da incompetência do TRT e a anulação de todos os atos praticados no processo, a consequência lógica é a inexigibilidade das multas estipuladas na decisão liminar, em razão de sua natureza acessória, e a liberação dos valores bloqueados.
Processo: RO-1031-70.2015.5.05.0000
RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS
IMPETRADO SOB A ÉGIDE DO CPC DE 1973.
CABIMENTO DA MEDIDA CONTRA ATO DE
PARTICULAR PRATICADO NO ÂMBITO DE
MOVIMENTO GREVISTA. EXAME DE OFÍCIO.
ART. 267, VI E § 3.º, DO CPC DE 1973.
1. Analisa-se o cabimento do habeas corpus contra
ato emanado de particular. No caso, o ato foi
praticado pelo SINDIPETRO/BA, em decorrência do
movimento paredista deflagrado em 2015.
2. É fato que parcela respeitável da doutrina
defende que o habeas corpus é cabível contra ato
de autoridade, mesmo pressuposto estabelecido
para o cabimento do mandado de segurança e do
habeas data, ações que integram a chamada
jurisdição constitucional das liberdades. O referido
entendimento, contudo, não se mostra condizente
com as balizas fixadas pela Constituição Federal
para o uso do habeas corpus.
3. O primeiro ponto a ser observado está no fato de
que, diferentemente dos incisos LXIX e LXXII do
art. 5.º da Constituição Federal, que, referindo-se
respectivamente ao mandado de segurança e ao
habeas data, vinculam expressamente o cabimento
dessas ações à impugnação de atos praticados por
autoridade ou agente públicos, o inciso LXVIII, que
trata do habeas corpus, é silente nessa questão:
“LXVIII - conceder-se-á habeas corpus sempre
que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer
violência ou coação em sua liberdade de
locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”.
4. Cuida-se de silêncio eloquente do legislador
constituinte, que se justifica em função da
magnitude do bem tutelado pela ação de habeas
corpus – o direito de ir e vir, concernente à própria
liberdade do indivíduo, direito fundamental
assegurado na cabeça do art. 5.º da Constituição Federal.
5. A importância da defesa da liberdade, portanto,
justifica não só a utilização do habeas corpus
contra ato praticado por particular, mas também
sua legitimação ativa plena (art. 654 do CPP) e
inexigibilidade de capacidade postulatória (art. 1.º,
§ 1.º, da Lei n.º 8.906/94), características não
extensíveis à ação mandamental e ao habeas data.
6. Além disso, o inciso LXVIII do art. 5.º da
Constituição Federal sinala o cabimento do habeas
corpus contra ameaça de violência ou coação sobre
a liberdade de locomoção por ilegalidade ou abuso
de poder. E “poder” é aqui entendido como ter a
possibilidade de – ou possuir a força física ou moral
para – praticar o ato coator. Naturalmente, esse
“poder” não é aquele que remete ao conceito de
autoridade, que, conforme formatado por JÚLIO
CÉSAR BEBBER, corresponde a “todo aquele que
exerce um cargo ou função estatal em qualquer
dos planos da federação e em qualquer dos
poderes organizados, investido de poder de
decisão, pela qual manifesta a vontade do Estado”
(in Mandado de Segurança, Habeas Corpus,
Habeas Data na Justiça do Trabalho. São Paulo:
Ed. LTr, 2008, p. 31). Afinal, não é apenas o
exercente de cargo ou função estatal que detém
poder de decisão em razão da função institucional
da organização que integra; esse fenômeno
também é passível de verificação em organizações
particulares, com inegável potencial de causar
constrangimento ilegal (ou abusivo) ao direito de
locomoção de outrem, ensejando, assim, o
cabimento do habeas corpus.
7. O caso em tela enquadra-se nessa hipótese: o
sindicato possui autorização legal (rectius, poder)
para deflagrar paralisação coletiva, amparado na
decisão dos trabalhadores da categoria (arts. 8.º,
III, e 9.º da Constituição e 4.º da Lei n.º 7.783/89),
de modo que eventual constrangimento ao direito
de locomoção decorrente da decisão adotada pela
agremiação é passível de elisão por meio do
habeas corpus, não se confundindo com o tipo
previsto no art. 148 do CP (sequestro e cárcere
privado) – hipótese aventada por alguns autores
para defender o descabimento do habeas corpus
contra ato de particular.
8. Também sob a perspectiva de eventual conflito
entre os direitos fundamentais de locomoção e de
greve, assinalo não se vislumbrar
incompatibilidade que autorize cogitar do
descabimento do remédio heroico.
9. É bem verdade que o direito de greve possui
natureza eminentemente coletiva, integrando um
plexo de direitos e garantias cuja implantação e
efetivação encontram raízes na questão social, tão
debatida no início do Novecentos e que estruturou
a própria formação do Direito do Trabalho, como
instrumento de conquistas de direitos coletivos
com ampla repercussão social, no que concerne à
pacificação dos conflitos de classes, a partir do
reconhecimento da liberdade individual de
trabalhar como princípio fundamental de
organização social. É por conta disso que o
exercício de greve é direito que se legitima no
plano coletivo, de modo que somente se pode
cogitar de abusividade de seu exercício na hipótese
de dano de repercussão coletiva.
10. É por esses fundamentos que o uso do habeas
corpus em casos como o que ora se põe sob exame
não implica restrição de direito coletivo, no sentido
de enfraquecer ou de pôr em risco o livre exercício
coletivo do direito fundamental de greve, até
porque no âmbito do habeas corpus não se discute
a abusividade de movimento paredista – pois essa
abusividade deve ser aferida em dimensão
coletiva, e não individual – tampouco a
responsabilidades decorrentes de eventual abuso;
cuida-se, unicamente, de se conceder ou não o
salvo conduto, mediante configuração do
constrangimento ilegal sobre o direito fundamental
de locomoção, concessão essa que, frise-se, não
acarretará o reconhecimento de abusividade da
grave nem mesmo ordem de sua dispersão,
consequências exclusivas do dissídio coletivo de greve.
11. E nesse contexto, a restrição da liberdade
daqueles trabalhadores individualizados que,
livremente, resolvem não aderir ao movimento
paredista, constitui constrangimento ilegal apto a
se sujeitar à intervenção judicial pela forma
expedita do habeas corpus, a fim de que se garanta
um direito fundamental inscrito no art. 5.ª da
Constituição Federal, sem que, repiso, se limite ou
se restrinja o exercício do direito fundamental de
greve. Até porque não se pode descurar que a
Constituição da República, a par de garantir o
direito à greve, de forma clara e enfática, garantiu
também o direito fundamental de ir e vir, ou seja, a
liberdade de locomoção. Trata-se de uma garantia
inalienável que não pode ser tolhida nem sequer
manchada, mesmo que se coloque em perspectiva
e em contraponto um outro direito fundamental.
12. Cabível, portanto, a impetração de
habeas corpus contra ato praticado por particular.