Tempo de atividade para empresário rural pedir recuperação pode incluir período anterior ao registro formal
Embora o produtor rural precise estar registrado como empresário para requerer a recuperação judicial, a comprovação do prazo mínimo de dois anos de atividade exigido pelo artigo 48 da Lei 11.101/2005 pode incluir o período anterior à formalização do registro na Junta Comercial.
O entendimento foi fixado pela Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no julgamento de recurso especial interposto por produtor rural de Mato Grosso. A tese, inédita no âmbito do STJ, foi firmada em novembro do ano passado e mantida após a análise de sucessivos embargos de declaração – o último deles julgado neste mês de outubro.
De acordo com o colegiado, diferentemente do empresário urbano, o produtor rural tem a faculdade de decidir sobre seu registro como empresário – ato que tem efeitos retroativos, de modo que os créditos sujeitos à recuperação também incluem aqueles gerados antes do registro empresarial.
"O registro do produtor rural apenas o transfere do regime do Código Civil para o regime empresarial, com efeito ex tunc, pois não o transforma em empresário regular, condição que já antes ostentava apenas em decorrência do exercício da atividade econômica rural", afirmou o ministro Raul Araújo, em voto que foi acompanhado pela maioria da Quarta Turma.
Sempre regular
Raul Araújo explicou que a pessoa, antes de iniciar a atividade de produção ou circulação de bens e serviços, deve obter regular inscrição no registro competente; caso contrário, estará em situação irregular. A inscrição, obrigatória para o empresário comum, é feita nos termos do artigo 968 do Código Civil.
Entretanto, o ministro lembrou que o artigo 970 do próprio Código Civil assegura ao empresário rural tratamento favorecido, diferenciado e simplificado em relação à sua inscrição e aos efeitos decorrentes. No mesmo sentido, o artigo 971 prevê que o empresário rural pode requerer inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis da respectiva sede – caso em que, depois de inscrito, ficará equiparado ao empresário sujeito a registro.
Segundo Raul Araújo, se a legislação diz que o produtor rural tem a faculdade – e não a obrigação – de solicitar sua inscrição, "significa que o empreendedor rural, diferentemente do empreendedor econômico comum, não está obrigado a requerer inscrição antes de empreender. Desse modo, o empreendedor rural, inscrito ou não, está sempre em situação regular; não existe situação irregular para ele, mesmo ao exercer atividade econômica agrícola antes de sua inscrição, por ser esta facultativa".
Benefícios
"Nessa linha de raciocínio, tem-se que a inscrição do produtor rural na Junta Comercial, em vez de torná-lo empresário, que já era, apenas acarreta sua sujeição ao regime empresarial, de onde colherá benefícios acessíveis àqueles que se registram na forma preconizada no artigo 968 do Código Civil. A inscrição, então, apenas confere ao produtor rural uma nova condição regular, dando maior publicidade e formalidade aos atos do empresário, agora enquadrado no regime empresarial", declarou o ministro.
Pelas mesmas razões, Raul Araújo entendeu que "não se pode distinguir o regime jurídico aplicável às obrigações anteriores ou posteriores à inscrição do empresário rural que vem a pedir recuperação judicial".
Assim, conforme a decisão do colegiado, ficam abrangidas na recuperação todas as dívidas existentes na data do pedido, inclusive aquelas contraídas antes do registro do empresário na Junta Comercial e ainda não pagas.
Requisitos da recuperação
No âmbito da Lei de Recuperação Judicial, o ministro Raul Araújo explicou que, para cumprir os requisitos de admissão do pedido previstos pelo artigo 48, o produtor rural deve comprovar que explora regularmente a atividade há mais de dois anos. Essa comprovação, enfatizou, pode incluir período anterior ao registro formal, quando ele exercia regularmente sua atividade rural sob o regime do Código Civil.
"Em suma, o produtor rural, após o registro, tem o direito de requerer a recuperação judicial regulada pela Lei 11.101/2005, desde que exerça há mais de dois anos sua atividade", declarou o ministro, lembrando que a inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis é condição para o pedido de recuperação.
RECURSO ESPECIAL Nº 1.800.032 - MT (2019/0050498-5)
RELATOR : MINISTRO MARCO BUZZI
R.P/ACÓRDÃO : MINISTRO RAUL ARAÚJO
RECORRENTE : JOSE PUPIN AGROPECUARIA - EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL
RECORRENTE : VERA LUCIA CAMARGO PUPIN - EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL
ADVOGADOS : ANNA MARIA DA TRINDADE DOS REIS E OUTRO(S) - DF006811
OCTÁVIO LOPES SANTOS TEIXEIRA BRILHANTE USTRA - SP196524
MARCUS VINICIUS FURTADO COÊLHO - DF018958
LIGIA CARDOSO VALENTE - SP298337
CAMILA SOMADOSSI GONÇALVES DA SILVA - SP277622
LUIZ FERNANDO VIEIRA MARTINS E OUTRO(S) - RS053731
ANA CAROLINA BUENO DO VALE - SP387110
YURI GALLINARI DE MORAIS E OUTRO(S) - SP363150
RECORRIDO : BANCO DO BRASIL SA
ADVOGADOS : CRISTIANO KINCHESCKI E OUTRO(S) - DF034951
BRUNO RAMOS DOMBROSKI E OUTRO(S) - RJ173725
INTERES. : ARYSTA LIFESCIENCE DO BRASIL INDUSTRIA QUIMICA E
AGROPECUARIA S.A.
INTERES. : ADAMA BRASIL S/A
INTERES. : BANCO JOHN DEERE S.A
INTERES. : BAYER S/A
INTERES. : COOPERATIVA DOS COTONICULTORES DE CAMPO VERDE
INTERES. : WIDAL & MARCHIORETTO LTDA
INTERES. : SYNGENTA PROTEÇÃO DE CULTIVOS LTDA
INTERES. : SEMPRE SEMENTES EIRELI
INTERES. : METROPOLITAN LIFE INSURANCE COMPANY
INTERES. : LUXEMBOURG BRASIL COMERCIO DE PRODUTOS QUIMICOS
LTDA
ADVOGADO : SEM REPRESENTAÇÃO NOS AUTOS - SE000000M
INTERES. : FEDERAÇÃO BRASILEIRA DE BANCOS - "AMICUS CURIAE"
ADVOGADOS : JOSÉ MIGUEL GARCIA MEDINA E OUTRO(S) - PR021731
RAFAEL DE OLIVEIRA GUIMARÃES - PR035979
ANDRESSA SANTORO ANGELO FIGUEIREDO DE SOUSA E
SILVA E OUTRO(S) - SP273067
INTERES. : SOCIEDADE NACIONAL DE AGRICULTURA - "AMICUS
CURIAE"
ADVOGADOS : ANTÔNIO AUGUSTO DE SOUZA COELHO - SP100060
FREDERICO PRICE GRECHI - RJ097685
EMENTA
RECURSO ESPECIAL. CIVIL E EMPRESARIAL. EMPRESÁRIO
RURAL E RECUPERAÇÃO JUDICIAL. REGULARIDADE DO
EXERCÍCIO DA ATIVIDADE RURAL ANTERIOR AO REGISTRO
DO EMPREENDEDOR (CÓDIGO CIVIL, ARTS. 966, 967, 968, 970 E
971). EFEITOS EX TUNC DA INSCRIÇÃO DO PRODUTOR RURAL.
PEDIDO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL (LEI 11.101/2005, ART. 48).
CÔMPUTO DO PERÍODO DE EXERCÍCIO DA ATIVIDADE RURAL
ANTERIOR AO REGISTRO. POSSIBILIDADE. RECURSO
ESPECIAL PROVIDO.
1. O produtor rural, por não ser empresário sujeito a registro, está em
situação regular, mesmo ao exercer atividade econômica agrícola antes de
sua inscrição, por ser esta para ele facultativa.
2. Conforme os arts. 966, 967, 968, 970 e 971 do Código Civil, com a
inscrição, fica o produtor rural equiparado ao empresário comum, mas com
direito a "tratamento favorecido, diferenciado e simplificado (...),
quanto à inscrição e aos efeitos daí decorrentes".
3. Assim, os efeitos decorrentes da inscrição são distintos para as duas
espécies de empresário: o sujeito a registro e o não sujeito a registro. Para o
empreendedor rural, o registro, por ser facultativo, apenas o transfere do
regime do Código Civil para o regime empresarial, com o efeito constitutivo
de "equipará-lo, para todos os efeitos, ao empresário sujeito a
registro", sendo tal efeito constitutivo apto a retroagir (ex tunc), pois a
condição regular de empresário já existia antes mesmo do registro. Já para
o empresário comum, o registro, por ser obrigatório, somente pode operar
efeitos prospectivos, ex nunc, pois apenas com o registro é que ingressa na
regularidade e se constitui efetivamente, validamente, empresário.
4. Após obter o registro e passar ao regime empresarial, fazendo jus a
tratamento diferenciado, simplificado e favorecido quanto à inscrição e aos
efeitos desta decorrentes (CC, arts. 970 e 971), adquire o produtor rural a
condição de procedibilidade para requerer recuperação judicial, com base
no art. 48 da Lei 11.101/2005 (LRF), bastando que comprove, no momento
do pedido, que explora regularmente a atividade rural há mais de 2 (dois)
anos. Pode, portanto, para perfazer o tempo exigido por lei, computar
aquele período anterior ao registro, pois tratava-se, mesmo então, de
exercício regular da atividade empresarial.
5. Pelas mesmas razões, não se pode distinguir o regime jurídico aplicável
às obrigações anteriores ou posteriores à inscrição do empresário rural que
vem a pedir recuperação judicial, ficando também abrangidas na
recuperação aquelas obrigações e dívidas anteriormente contraídas e ainda
não adimplidas.
6. Recurso especial provido, com deferimento do processamento da
recuperação judicial dos recorrentes.
ACÓRDÃO
Após o voto-vista do Ministro Luis Felipe Salomão dando provimento ao
recurso especial, acompanhando a divergência, e o voto da Ministra Maria Isabel Gallotti negando
provimento ao recurso especial, acompanhando o relator, e o voto do Ministro Antonio Carlos
Ferreira no sentido da divergência, a Quarta Turma, por maioria, decide dar provimento ao recurso
especial, nos termos do voto divergente do Ministro Raul Araújo. Vencidos o relator e a Ministra
Maria Isabel Gallotti.
Brasília, 05 de novembro de 2019 (Data do Julgamento)
MINISTRO RAUL ARAÚJO
Relator