Quotas raciais

Quotas raciais

Muito em breve o Supremo Tribunal Federal emitirá um pronunciamento sobre a constitucionalidade das quotas raciais em sede de controle concentrado, o que talvez encerre o debate que se alastra nos demais tribunais brasileiros.

I. Introdução

Muito em breve o Supremo Tribunal Federal emitirá um pronunciamento sobre a constitucionalidade das quotas raciais em sede de controle concentrado, o que talvez encerre o debate que se alastra nos demais tribunais brasileiros.

O DEM – Partido Democratas, ajuizou uma ação [1] para suspender e declarar a inconstitucionalidade da discriminação positiva na Universidade de Brasília - UnB. No final das contas, a iniciativa também servirá de orientação aos trabalhos do Estatuto da Igualdade Racial, em trâmite na Câmara dos Deputados (PL 6264/05).

O tema das quotas é polêmico e ainda suscita controvérsias no seio da opinião pública, embora a jurisprudência – com algum delineamento no próprio STF [2] - venha sendo sedimentada de modo favorável.

No caso específico, tanto o Ministério Público Federal quanto a Advocacia-Geral da União emitiram pareceres de concordância. O Min. Gilmar Mendes indeferiu o pedido de liminar, por ausência de urgência.

Nos pareceu um bom momento para, sem defesas intransigentes, convidar à reflexão.

II. As quotas raciais e o princípio da igualdade

Argumentos lançados às quotas raciais são muitos, tão variados quanto os matizes de pele que, se pretende, sejam discriminados por lei. Todos os posicionamentos têm lá sua coerência. E mais. Os jurídicos que se opõe partem, curiosamente, de um radical comum: o princípio da igualdade, inscrito no art. 5°, caput da Constituição Federal.

O legislador, dentro de seu campo (constitucional) de atribuições, detém ampla discricionariedade e oportunidade para perceber um dado fato social - a desigualdade - e materializá-lo um preceito de lei compensatório.

Outros compreendem que o princípio da igualdade não autoriza edição de lei de segregação. O preceito bastaria para assegurar medidas de natureza judicial contra o preconceito, como a reparação ou cominação civil e a prisão do autor do crime respectivo.

Em apertada síntese, são as principais teses em voga.

III. As quotas raciais e o princípio democrático

Constitucionalistas como Dalmo de Abreu Dallari, Lênio Streck e Clémerson Merlin Clève, já alertaram para a crise de legitimidade democrática que assola o Congresso Nacional. Entre as principais razões, estariam a ausência (ou desprestígio) da identidade partidária, e certa apatia política do eleitor, fundada em entraves de natureza cultural e legal. [3]

O descompasso é grave, na medida em que exorta representatividade deficiente, e por conseqüência, incoerência legislativa. Foi o que se pôde perceber na rejeição ao referendo da vedação ao porte de armas, bem como na manutenção do regime presidencialista.

Também leva a crer que o processo legislativo – ainda - marginaliza setores sem lobby no Congresso Nacional, mesmo que, numericamente, representem maioria.

Este risco de legitimidade democrática não é menor em se tratando do processo judicial, porque a representação de interesses é feita – tanto quanto – por amostragem. Caso o Supremo Tribunal Federal perceba algum desconforto neste sentido poderá eventualmente extinguir a ação sem julgamento de mérito.

Na mesma linha de raciocínio, a casa revisora poderá submeter o projeto de lei a referendo, nos termos da Lei 9.709, de 18 de novembro de 1998. [4]

A superveniência desta hipótese é remota, mas certamente contribuiria para diminuir a tensão havida entre o pensamento pretório, parlamentar e da sociedade.

IV. As quotas raciais e o direito penal

O preconceito admite diversas leituras. Etimologicamente - pre conceito - definição que antecede. O senso comum indica que se trata de uma discriminação sobre alguém, o que se confirma na letra do art. 20 da Lei 7.716/89, “praticar, induzir ou incitar a discriminação de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”.

Como se vê, o preconceito racial segue criminalizado no ordenamento. Não é propósito do artigo adentrar à dogmática penal, mas convém chamar a atenção para a possibilidade do surgimento de graves discussões acerca da exclusão de ilicitude pelo exercício regular de um direito, caso o STF pronuncie a constitucionalidade da discriminação sem reservas de interpretação.

V. As quotas raciais e a política educacional brasileira

A Convenção Internacional sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial, ratificada e promulgada pelo Decreto n° 65.810, de 08 de dezembro de 1969, é o marco normativo que introduz o sistema de quotas de discriminação positiva no Brasil. Vide:

Artigo I.

1. Nesta Convenção, a expressão discriminação racial significará qualquer distinção, exclusão restrição ou preferência baseadas em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tem por objetivo ou efeito anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício num mesmo plano, (em igualdade de condição), de direitos humanos e liberdades fundamentais no domínio político econômico, social, cultural ou em qualquer outro domínio de vida pública. [...]

4. Não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais tomadas com o único objetivo de assegurar progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem da proteção que possa ser necessária para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais, contando que, tais medidas não conduzam, em conseqüência, à manutenção de direitos separados para diferentes grupos raciais e não prossigam após terem sidos alcançados os seus objetivos.

Daí caírem por terra os argumentos fundados na premissa de ausência de arcabouço normativo para sustentar a política de quotas. Pelo contrário, o Brasil poderia até ser denunciado pela violação do tratado internacional, caso não as implementasse (art.1°).

O art. 207, caput da Constituição Federal estipulou a autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira das Universidades, o que fôra regulado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei n° 9.394/96), impondo a observância das normas gerais editadas pela União e pelo Sistema de Ensino (art. 57, inc. I), bem como atribuíndo margem de discricionariedade para a fixação do número de vagas em razão da capacidade institucional e das exigências do meio (inc. IV).

A Presidência da República editou as Medidas Provisórias n°s 63/02 e 111/03, convertidas na Lei 10.558/02, e Lei 10.678/03, a primeira criando o “Programa Diversidade na Universidade”, para “implementar e avaliar estratégias para a promoção do acesso ao ensino superior de pessoas pertencentes a grupos socialmente desfavorecidos, especialmente aos afrodescendentes e dos indígenas brasileiros.”; a segunda a “Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial” para a “formulação, coordenação e avaliação das políticas públicas afirmativas de promoção da igualdade e da proteção dos direitos de indivíduos e grupos raciais e étnicos, com ênfase na população negra, afetados por discriminação racial e demais formas de intolerância”.

A redação não deixa dúvidas de que o preconceito racial foi reconhecido pelo Estado brasileiro como um fenômeno social, devendo ser combatido - além da educação - pelos instrumentos públicos de discriminação, até que os índices oficiais demonstrem sua dispensabilidade.

Note-se que a aplicação do chamado princípio constitucional da isonomia ou igualdade material já vem ocorrendo à longa data, p.ex, na proteção do mercado de trabalho da mulher (art. 7°, XX, CF) e dos portadores de deficiência (art. 37, VIII); na exigência mínima de 20% para candidatura de mulheres (Lei 9.100/95) e; na reserva de 5% a 20% do total das vagas em concursos públicos (Lei 8.112/90).

O voto proferido pelo Ministro Nelson Jobim na ADI 1.946-5 consignou um primeiro tirocínio passível de ser chancelado pelo STF: “a discriminação positiva introduz tratamento desigual para produzir, no futuro e em concreto, a igualdade.”

VI. Discriminando o preconceito

Enquanto enclausulado na mente, o pensamento não atinge qualquer bem jurídico. É a manifestação da discriminação sobre a qualidade ou atributo de outrem, o fato gerador que torna a conduta repreensível pelo Estado.

Ao contrário do que se possa imaginar, a manifestação do preconceito não agride apenas o conjunto de valores individuais atinente à personalidade. Casos recentes como o do professor afro-americano, preso por forçar a fechadura da própria residência, sugerem que a manifestação do preconceito ofende valores culturais a serem preservados.

A polêmica das quotas reside, justamente, na adoção de uma premissa de política pública não fundada em valores individuais, mais facilmente apreensíveis, mas de conteúdo nitidamente difuso, de maior complexidade experimental.

O risco desta atividade é conhecido. A afirmação de que a sociedade brasileira é racista não é mais nem menos verdadeira do que a afirmação de que ela não é. Trata-se de um esteriótipo, verdade inexoravelmente parcial que poderia lançar dúvida sobre a legitimidade das quotas.

De qualquer sorte, não nos parece que o governo tenha sido desatento ao risco. Estatísticas demonstram que a população negra, por exemplo, representa cerca de 5% do total da nação brasileira, mas, nos bancos universitários não alcança 1%. [5]

Já em 2006 a Coordenação-Geral de Diversidade e Inclusão Educacional, vinculada ao Ministério da Educação, promoveu a realização de diversas pesquisas sobre acesso e permanência da população afrodescendente e indígena no ensino superior público federal, com ênfase na análise de experiências dos estudantes. Os resultados comporam os insumos preliminares da política de quotas e vêm sendo periodicamente confrontados com novas informações. [6]

Os indicativos não refletem apenas a influência de fatores sociais, econômicos, históricos e culturais no acesso ao ensino superior. A grande desproporção observada entre as raças minoritárias e majoritárias sugere o fenótipo como fator determinante do nível de escolarização dos brasileiros.

Num mundo ditado pela devoção ao ser, vem bem a calhar a lição de que o direito (ainda) deve ser, instrumento de redução de desigualdades e emancipação social.

Notas e Referências

[1] Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n° 186.

[2] Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 1946-5, Rel. Min. Nelson Jobin; RMS 26.071/DF, Rel. Min. Ayres Britto, 13-11-2007, Informativo 488.

[3] Art. 61. § 2º, CF. A iniciativa popular pode ser exercida pela apresentação à Câmara dos Deputados de projeto de lei subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles.

[4] Art. 3°. Nas questões de relevância nacional, de competência do Poder Legislativo ou do Poder Executivo, e no caso no § 3° do art. 18 da Constituição Federal, o plebiscito e o referendo são convocados mediante decreto legislativo, por proposta de um terço, no mínimo, dos membros que compõe qualquer das Casas do Congresso Nacional, de conformidade com esta Lei.

[5] Pesquisa nacional por amostra de domicílios 1999: Brasil, grandes regiões, unidades da federação e regiões metropolitanas. Síntese de indicadores 1999: Brasil e grandes regiões. Rio de Janeiro: IBGE, 2000. 1 CD-ROM.

[6] http://www.scribd.com/doc/6679413/Acesso-e-Permanencia-Da-Populacao-Negra-No-Ensino-Superior

Sobre o(a) autor(a)
Alexandre Rocha Pintal
Advogado, pós-graduado em Direito Público, do Trabalho e Previdenciário, autor e articulista de sites especializados.
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