Reflexos da constitucionalização do direito à moradia sobre as exceções à impenhorabilidade do bem de família

Reflexos da constitucionalização do direito à moradia sobre as exceções à impenhorabilidade do bem de família

Apesar da constitucionalização do direito de moradia, com a Emenda Constitucional nº 26/2000, permanece intacta a exceção à impenhorabilidade do bem de família constante no inciso V, do art. 3º da Lei nº 8009/90.

INTRODUÇÃO

A Lei que instituiu o bem de família legal, nos idos de 1990, buscou resguardar a funcionalidade do lar e a paz familiar, assegurando aos membros da entidade familiar uma existência digna, pondo seu imóvel residencial a salvo de execução por dívidas.

Tal lei é, notadamente, norma de ordem pública, vez que a impenhorabilidade do único imóvel residencial da família se dá ope legis; independentemente de manifestação de vontade de seu proprietário, apresentando-se bastante elucidativa a afirmação de Álvaro Vilaça de Azevedo ao mencionar que neste caso “o instituidor é o próprio Estado, que impõe o bem de família, por norma de ordem pública, em defesa da célula familial. Nessa lei emergencial, não fica a família à mercê de proteção, por seus integrantes, mas é defendida pelo próprio Estado, de que é fundamento.” (AZEVEDO, Álvaro Vilaça. Bem de família internacional. Jus Navigandi, Teresina, a. 5, n.51, out. 2001. Disponível em: http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=2257).

Todavia, ainda que o escopo da lei tenha sido o de proteger a família, não o fez de maneira absoluta. A própria lei que previu a impenhorabilidade do bem de família, incluindo neste conceito “o imóvel sobre o qual se assentam a construção, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e todos os equipamentos, inclusive os de uso profissional, ou móveis que guarneçam a casa, desde que quitados” (art.1º, parágrafo único), previu também exceções à impenhorabilidade em sete incisos do seu art.3º.

Dentre as exceções enumeradas pela lei, restringir-se-á o presente trabalho a abordar com mais minúcia aquela elencada no inciso V, do art.3º da Lei, assim redigido: “para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar”.

O texto do excerto transcrito deixa cristalinamente claro que, embora a lei tenha tornado impenhorável o imóvel residencial da família, não o tornou indisponível, inalienável, permitindo que o mesmo seja oferecido, validamente, como garantia hipotecária de débito, pelo casal ou pela entidade familiar.

Permitindo a lei que o bem seja dado em hipoteca, permite, como consectário lógico, que o mesmo seja ulteriormente penhorado, para satisfação da dívida hipotecariamente garantida, em se operando o inadimplemento da obrigação.

Este entendimento foi sufragado diversas vezes pelo Superior Tribunal de Justiça, que já firmou entendimento no sentido de que são penhoráveis os imóveis dados em garantia hipotecária da dívida exeqüenda (REsp 142.761/RS, REsp 34.813/RO, REsp 79.215/RS, dentre outros).


2 - EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 26/2000 E SEUS REFLEXOS SOBRE O BEM DE FAMÍLIA

A constitucionalização do direito à moradia, e sua inclusão dentre os direitos sociais, abriu uma discussão acerca da validade de algumas exceções à impenhorabilidade do imóvel residencial, previstas na Lei n.8009/90.

Não há dúvida de que a inclusão do direito à moradia no rol dos direitos sociais traz repercussões ao mundo fático que não podem ser olvidadas pelos juristas.

Considerando que os direitos sociais são também uma expressão dos direitos fundamentais do ser humano, tem-se, como decorrência, que eles subordinam-se à regra da auto-aplicabilidade e sujeitam-se ao ajuizamento de mandado de injunção, em havendo omissão do poder público que inviabilize o exercício do direito, como bem lembrado por ALEXANDRE DE MORAES, em Direito Constitucional, Ed. Jurídico Atlas, 13ª edição, pgs.202/203.

Partindo deste pressuposto, tem aumentado o número de simpatizantes à tese de que não foi recepcionado, pela Emenda Constitucional n.26/2000, o inciso VII, do art.3º da Lei n.8009/90, por ferir frontalmente o direito constitucional de moradia do fiador executado, já havendo julgados de Tribunais Estaduais neste sentido.

Nestes casos, tem-se reconhecido o direito à moradia em benefício exclusivo do fiador, como se constata na decisão do TJDFT:

PROCESSUAL CIVIL - CIVIL - CONSTITUCIONAL - AÇÃO DE EXECUÇÃO - PENHORA - FIADOR - DESCONSTITUIÇÃO DA CONSTRIÇÃO JUDICIAL DOS BENS - IMPENHORABILIDADE DO BEM DE FAMÍLIA - EXCEÇÃO PREVISTA NO ART. 3º, VII, DA LEI Nº 8.009/90, ACRESCIDO PELO ART. 82 DA LEI Nº 8.245/91 - NORMA NÃO RECEPCIONADA PELA EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 26/2000 - ELEVAÇÃO DA MORADIA COMO DIREITO SOCIAL - AGRAVO IMPROVIDO - MAIORIA. A NOVA ORDEM CONSTITUCIONAL, EMANADA PELA EMENDA Nº 26/2000, MERECE A REFLEXÃO DADA PELO IL. MAGISTRADO A QUO, AO CONSIDERAR COMO NÃO RECEPCIONADOS OS PRECEITOS INFRACONSTITUCIONAIS QUE CUIDAM SOBRE A EXCLUSÃO DO BENEFÍCIO DA IMPENHORABILIDADE DO IMÓVEL RESIDENCIAL DO FIADOR E DOS BENS QUE GUARNECEM A CASA. COM EFEITO, AO ALÇAR A MORADIA A DIREITO SOCIAL DO CIDADÃO, CONSIDEROU O LEGISLADOR CONSTITUINTE AS ATUAIS CONDIÇÕES DE MORADIA DE MILHÕES DE BRASILEIROS, QUE VIVEM EM SITUAÇÃO DEPRIMENTE E QUE CONFIGURAM VERDADEIRA "CHAGA SOCIAL" PARA GRANDE PARTE DAS METRÓPOLES DO PAÍS. Decisão

NEGAR PROVIMENTO. MAIORIA.

AI 20000020030532 AGI DF- Relator LECIR MANOEL DA LUZ- 4ª Turma Cível- 13/11/2000.

O tema está longe de ser pacificado, não havendo, ainda, um posicionamento expresso neste sentido do Supremo Tribunal Federal.


3 - OFERECIMENTO DE IMÓVEL RESIDENCIAL COMO GARANTIA HIPOTECÁRIA DE DÉBITO

Após o advento da Emenda Constitucional nº26/2000, que incluiu o direito à moradia dentre os direitos sociais, aproveitando-se da turbulência jurisprudencial que se instalou em nossos tribunais, vem-se tentando construir a tese da não recepção também do art.3º, inciso V, da lei n.8009/90, desde que presentes alguns requisitos.

Teses mirabolantes têm sido criadas, por causídicos de todo o país, buscando desconstituir hipotecas voluntariamente concedidas para concessão de financiamentos perante instituições financeiras, sob o argumento de que o direito constitucional de moradia não poderia sucumbir diante das exceções previstas pela Lei nº 8.009/90.

É prática corrente no mercado financeiro a concessão de empréstimos/financiamentos a empresas, por bancos comerciais ou agências de fomento, para implemento de suas atividades, operações estas garantidas por fianças, avais, alienações fiduciárias ou hipotecas, a depender do caso concreto.

Especificamente no caso do empréstimo garantido por hipoteca, o mais comum é que o imóvel hipotecado seja aquele onde esteja instalada a empresa, ou, não o sendo, recaindo a hipoteca sobre imóvel diverso, incida ela sobre bem de propriedade da empresa ou de seu sócio.

Esgotando-se essas possibilidades sem êxito, admite-se que o imóvel a ser hipotecado, seja ele comercial ou residencial, pertença a terceiro, que não tenha qualquer relação direta com a empresa beneficiada na operação de crédito, respeitados os requisitos legais de sua constituição.

Os motivos que levarem o terceiro a funcionar como dador hipotecante na negociação são alheios às tratativas, cabendo-lhe, exclusivamente, decidir entre intervir ou não.

Desta forma, no que tange ao imóvel residencial pertencente a terceiro, completamente alheio à operação de crédito, tem-se sustentado que, não havendo comprovação de que o crédito reverteu em proveito da família e havendo prova de que o imóvel lhe serve de residência efetiva, sendo o único de sua propriedade, seriam cabíveis os embargos de terceiro para desconstituir a hipoteca validamente constituída, numa eventual excussão judicial do bem.

Sustentam que o direito de moradia, recentemente elevado à categoria de direito constitucional social, justamente por se encontrar no ápice da pirâmide kelseniana, prevaleceria diante da norma infralegal.

Tal raciocínio estaria perfeito se existisse um conflito real e concreto entre a norma infralegal e o texto da constituição, caso em que se deveria dar prevalência ao dispositivo constitucional, sacrificando a lei que dispusesse de forma contrária.

Mas não é essa a situação que se lhe apresenta na hipótese sob comento.

Os dois dispositivos coexistem harmonicamente em nosso sistema jurídico, não havendo revogação ou não recepção da norma infralegal, mas tão-somente, aparente antinomia a ser solucionada pelos princípios de hermenêutica.

A Lei n.8009/90, desde a sua edição, quando o direito à moradia ainda não havia sido erigido a status constitucional, já protegia o direito à moradia, direito este associado ao bem-estar da família, ressalvando as exceções trazidas também no bojo da lei.

Como não existem direitos absolutos, sendo máxima da experiência que o direito de um termina onde começa o direito do outro, há que se criar regras de compatibilização dos direitos, de molde a não dotar um direito de força irrestrita, que inviabilize o exercício de outro direito.

Assim é que a Lei n.8009/90, ao prever a impenhorabilidade do bem de família, tutelando o direito a uma existência digna do núcleo familiar, previu também exceções à impenhorabilidade, nas hipóteses em que entendeu ser necessário sacrificar tais direitos, em prol de direitos outros considerados mais relevantes num confronto direto.

Excepcionou, dentre outras hipóteses, a impenhorabilidade nos casos em que o casal ou entidade familiar, por livre e espontânea vontade, oferecesse o bem como garantia hipotecária. Desta forma, embora tenha estabelecido a impenhorabilidade do imóvel, deu ao casal (ou entidade familiar) o poder de dispor do bem da maneira que se lhe afigurasse mais conveniente.

E não poderia ser diferente. Não poderia o Estado intervir nas relações privadas de tal forma a dirigir o destino dos bens dos cidadãos, impedindo-os de administrá-los, da forma que considerasse mais acertada, sob o argumento de estar tutelando o seu direito à moradia. Tal conduta seria como presumir a incapacidade do casal, ou entidade familiar, de gerir seus próprios negócios.

A desconstituição de hipotecas, voluntariamente constituídas pelo casal ou entidade familiar, seria como permitir ao torpe beneficiar-se da própria torpeza, lesando aquele que tivera sua conduta pautada nos perfeitos contornos legais.

Diferente seria caso se comprovasse a presença de vícios de consentimento no momento de entrega do bem para ser hipotecado, hipótese em que o ato jurídico estaria sujeito a ação anulatória, respeitado o prazo prescricional.

Mas, verificando-se a regularidade nos requisitos de existência e validade do ato, não se há de falar em desconstituição da hipoteca, sob pena de desequilibrar a relação jurídica validamente constituída, criar restrições ao crédito daquele que só possua em seu patrimônio um imóvel residencial e beneficiar a torpeza em detrimento da legalidade.


4 - CONCLUSÃO

Assim, não pode prosperar a fabulosa tese sustentada por causídicos de nosso País, de manter a impenhorabilidade do bem de família mesmo diante de ato voluntário de oferecimento do bem em hipoteca, sob o argumento de resguardar o direito constitucional de moradia, deixando os créditos garantidos sem qualquer perspectiva de solvência.

A aceitação desta tese por nossos magistrados romperia drasticamente com o princípio da boa-fé objetiva, de observância obrigatória nas relações contratuais, em ambos os pólos, apresentando-se como um atraente convite à fraude, subvertendo perigosamente a ordem jurídica e financeira do País.

Sobre o(a) autor(a)
Janaina Mascarenhas
Advogado
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