A nova reforma da previdência e o desrespeito ao princípio da igualdade

A nova reforma da previdência e o desrespeito ao princípio da igualdade

O tema é controverso e precisa ser debatido com imparcialidade, pois como acontece na maioria das vezes, o pobre e o empregado em geral é que arcam com o ônus nesse país.

Uma nova proposta para a previdência social do Brasil que está para ser encaminhada em breve ao congresso Nacional pelo palácio do Planalto tende desrespeitar o princípio da igualdade no tocante às suas regras de transição.

A Constituição da República Federativa do Brasil, Carta Magna do Estado brasileiro, Lei suprema ou como definia Themístocles Cavalcanti,  ex -ministro do STF no Governo Costa e Silva, no período de 1967 a 1969, além de ter sido Procurador Geral da República, ocupando tantos outros cargos importantes no governo na seara jurídica: “Constituição é a lei de todas as leis”.[1].

O preâmbulo da Lei Suprema do Brasil, promulgada em 05 de outubro de 1988, tem a seguinte declaração: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte, para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil". [2].

Havia discussão na doutrina se o preâmbulo era parte integrante da Constituição tendo o mesmo valor das normas constitucionais inseridas em seu corpo. Mas no julgamento da ADIN (Ação direta de inconstitucionalidade) 2076, o Supremo Tribunal Federal pacificou o entendimento, adotando a tese da irrelevância jurídica do preâmbulo, considerando a sua natureza política e não jurídica. [3]. Mas mesmo não tendo força normativa, representa a corrente ideológica adotada pelo legislador, ou seja, os caminhos que serão adotados e servirão de parâmetro para consubstanciar suas normas e princípios. 

Assim, quando o legislador escreve no preâmbulo que, como representante do povo brasileiro, instituirá um Estado Democrático e que assegurará a igualdade e a justiça, dentre outros valores, como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, é categórico em afirmar que primará pela justiça em primeira instância. 

Seguindo a mesma concepção ideológica do preâmbulo, e aí sim, fixando de forma relevante o princípio da igualdade, dando a ele força normativa e vinculante ao legislador infraconstitucional, assim como ao aplicador do direito no julgamento dos conflitos a ele submetidos, a Constituição, no seu artigo 5º, título 2, “Dos direitos e Garantias Fundamentais”, determina de forma clara e precisa, que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza...”.

Uadi Lamego Bulos destaca que, a igualdade constitucional mais do que um direito é um princípio, uma regra de ouro, que serve de diretriz interpretativa para as demais normas constitucionais. Aponta o tríplice objetivo direito à igualdade, ilustrado pela decisão do STF no MI( Mandado de Injunção)58/DF, publicado no DJ de 19/04/1991, p. 4580 : limitar o legislador, a autoridade pública e o particular.

Como limite ao legislador, a isonomia impede que ele crie normas veiculadoras de desequiparações ilícitas e inconstitucionais.

Enquanto limite à autoridade pública, os Presidentes da República não podem praticar ações discriminatórias e os membros do Poder Judiciário não devem dar azo, em suas sentenças ao cancro da desigualdade. Daí os mecanismos de uniformização da jurisprudência, tanto na órbita constitucional (recursos extraordinário e ordinário) como na infraconstitucional (leis processuais).

No posto de limite à conduta do particular, a isonomia não se coaduna com atos discriminatórios, eivados de preconceito, racismo, maledicências diversas, propiciando a responsabilização civil ou criminal dos infratores. (Bulos, Uadi Lamego, Curso de Direito Constitucional, 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014. P 559,560) [4].

Diante de tais assertivas, o legislador não pode permitir que construção legislativa alguma, esbarre e colida com o princípio da igualdade e isonomia. Mas como observar a igualdade nesse contexto social atual repleto de complexidade e desigualdades? Rui Barbosa definia com sabedoria como deveria ser o caminho trilhado pelo legislador na tentativa de alcançar e premiar a igualdade: “A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade... Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real.” [5].

Quando uma norma desrespeita o princípio da igualdade, deve ser declarada inconstitucional. O STF(Supremo Tribunal Federal), guardião maior da Constituição deve zelar para que suas normas sejam respeitadas e que nenhuma norma infraconstitucional ou que eventuais propostas de emenda à Constituição colidam com seus preceitos e princípios, pautando também pela obediência aos direitos fundamentais.

As Casas Legislativas Federais, formadas pela Câmara dos Deputados e pelo Senado, possuem suas Comissões de Constituição e Justiça, com a finalidade precípua de barrar, no início de todo processo legislativo, eventual norma que já nasça com o vício de inconstitucionalidade. Muitas vezes, por interesse político ou mesmo por divergentes interpretações, uma norma flagrantemente inconstitucional pode vir a tramitar e a ser aprovada. 

O Palácio do Planalto está para enviar ao Congresso Nacional uma proposta de Emenda à Constitucional visando promover uma Reforma da previdência social. [6]. Um tema polêmico que precisa ser enfrentado pelo Brasil tendo-se em vista que com o aumento da expectativa de vida dos brasileiros e do ser humano em geral, o país pode enfrentar um caos para arcar com os compromissos de pagamento dos benefícios previdenciários num futuro próximo.

O tema é controverso e precisa ser debatido com imparcialidade, pois como acontece na maioria das vezes, o pobre e o empregado em geral é que arcam com o ônus nesse país.

No início, falava-se em unificar a previdência. Os militares se manifestaram com posição contrária e foram excluídos da reforma. Agora, pretendem atingir os empregados e servidores públicos do menor escalão, pois os parlamentares nem sequer foram citados. Essa questão precisa ser discutida e enfrentada sem corporativismo. Todos têm de dar sua parcela de contribuição para que o sistema previdenciário se mantenha eficaz e equilibrado.

Há de se ressaltar que é preciso cuidado para que qualquer construção legislativa que vise alterar a Constituição não vá de encontro com os direitos e garantias fundamentais, assim como a outros princípios e normas insculpidas em seu texto. A previdência é tratada dentro do capítulo da seguridade social, conforme reza o caput do art. 194 da CF: “A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade,  destinados a assegurar os direito relativos à saúde, à previdência e à assistência social. Parágrafo único. Compete ao Poder Público, nos termos da lei, organizar a seguridade social, com base nos seguintes objetivos: ... V – equidade na forma de participação no custeio;”  [7].

Conforme se pode inferir do texto constitucional acima exposto, a equidade deve ser mantida na forma de participação e custeio. Assim, em respeito ao princípio da igualdade, não deve se admitir tratamento diferenciado aos segurados  que se encontram na mesma situação fática, não devendo, portanto, outros critérios, como idade, serem considerados de forma isolada, provocando distorções gritantes que venham a prejudicar e tratar de forma desigual os segurados do sistema previdenciário.

Uma grave afronta à Constituição, no que diz respeito ao princípio da igualdade, está flagrantemente presente nas ditas regras de transição presente no corpo do texto da proposta a ser apresentada pelo Executivo.

As regras de transição são criadas com o objetivo de fazerem uma ligação entre as duas leis, a nova e a velha, no tocante aos segurados que já estão contribuindo para o sistema previdenciário e que possuem expectativa de direito de virem a se aposentar em condições mais favoráveis do que a que será discutida, que normalmente prevê normas menos benéficas.

Dessa forma, essas regras visam adequar a condição dos contribuintes do antigo regime para o novo regime previdenciário. O governo quer que os trabalhadores que já estão contribuindo para o atual regime e que tenham menos de cinquenta anos de idade na data da publicação da lei, sejam atingidos plenamente pelas regras do novo regime, sem levar seque em consideração o tempo que já contribuíram, devendo, então, contribuírem até completar sessenta e cinco anos de idade. Os que têm mais de cinquenta pagariam um pedágio, tendo que trabalhar um período de quarenta por cento ou cinquenta por cento a mais em relação ao tempo que falta para se aposentarem.

A injustiça se fará presente de forma notória. 

Podemos exemplificar essa disparidade citando uma estorinha plausível e verossímil, que demonstra a situação de desigualdade em que muitos cidadãos se verão enquadrados:

“Numa certa cidade, dois irmãos gêmeos nasceram com diferença de  tempo de um para o outro de apenas três minutos. Acontece que um nasceu às vinte três horas e cinquenta e oito minutos de um dia. O outro, só veio ao mundo no primeiro minuto do dia seguinte. Os pais, com os documentos que receberam do hospital providenciaram o registro de nascimento dos filhos. Assim, apesar de gêmeos, foram registrados em dias diferentes.

Cresceram juntos e outras coincidências aconteceram na vida dos dois. Começaram a trabalhar no mesmo dia e tiveram suas carteiras de trabalho assinadas na mesma data, quando contavam com dezoito anos.

Depois de uma vida trabalhando lado a lado, quando estavam com quarenta e nove anos, já haviam contribuído com trinta e um anos para o regime previdenciário, dessa forma, faltavam quatro anos para se aposentar de acordo com as normas vigentes. Com uma grande expectativa de direito e já fazendo planos para um futuro com mais liberdade, com o recebimento de um salário certo, escutaram o anúncio de uma reforma previdenciária. Ficaram sabendo que haveria um pedágio que os obrigaria a trabalhar um pouco mais. Como bons e honestos cidadãos, não se importaram de dar sua parcela de contribuição para o governo, entendendo que a previdência necessitava de ajustes.

Acontece que a lei fui publicada no diário da união no dia em que o irmão mais novo três minutos, completava cinquenta anos. E a lei previa que só quem tivesse cinquenta anos até aquela data, não seria atingido pela obrigatoriedade de trabalhar até completar sessenta e cinco anos, pagaria um pedágio de quarenta por cento do tempo que restasse para se aposentar. 

Assim, os gêmeos, que nasceram com diferença de três minutos, que trabalharam por toda uma vida de forma exatamente igual, contribuindo por trinta e um anos para a previdência, seriam atingidos de forma completamente diferente pela nova norma. Um deles teria que trabalhar mais cinco anos e sete meses, mais ou menos, para poder se aposentar.  O outro, registrado no dia seguinte, teria que trabalhar por mais quinze anos contribuindo bem mais que o primeiro, sendo tratado  portanto, de forma desigual.” 

O que se pode observar com a ilustração da estória acima, é que essa PEC(Proposta de emenda à Constituição), se aprovada com o texto na forma como foi proposta, arranhará visceralmente o princípio da igualdade, uma vez que é desproporcional e injusta. Muitos cidadãos entre 45 a 49 anos de idade, com tempo de contribuição, às vezes, maior do que muitos contribuintes com mais de cinquenta anos, terão que pagar, de forma injusta, pelo desequilíbrio das contas da previdência. 

As regras de transição devem existir para adequar a todos dentro do novo regime previdenciário que se propõe. A previdência precisa ser reformada sim. Isso é fato. Mas deve atingir a todos de forma justa. O que não pode acontecer é de serem elaboradas regras com um tamanho despropósito e descompromisso com a população trabalhadora. Deve ser levado em consideração o tempo de contribuição e não a idade para se ajustar a condição dos contribuintes atuais às novas regras.

As regras de transição precisam ser revistas a fim de que as distorções que se fazem presentes sejam ajustadas. É imperioso que se estabeleça uma fórmula mais justa. Poderia se pensar, por exemplo, em um pedágio de quarenta por cento em relação ao tempo que falta para o contribuinte alcançar a aposentadoria na regra antiga, até o limite em que o contribuinte complete sessenta e cinco anos de idade. Assim, se dois contribuintes contam com quarenta e nove anos de idade e contribuíram para a previdência, um durante trinta anos e o outro durante vinte e cinco anos, o primeiro ainda contribuiria por mais sete anos (dois anos de pedágio), o segundo por mais nove anos (quatro anos de pedágio), e assim sucessivamente. É uma fórmula mais equânime, portanto mais coerente.

Essa suposição respeitaria não só o princípio da igualdade e isonomia de tratamento, mas também o princípio da proporcionalidade, não se aplicando dois pesos e duas medidas a cidadãos que se encontram na mesma condição. Evitaria assim uma aplicação jurídica dessemelhante a duas situações fáticas idênticas.

Dessa forma, o fator idade não deve ser o balizador para se ajustar a condição jurídica dos atuais contribuintes às novas regras propostas pela reforma da previdência. Espera-se que possa haver um debate inteligente, cauteloso e que a CCJ (Comissão de constituição, Justiça e cidadania), que tem a função precípua de analisar qualquer proposição legislativa, verificando se é dotada de constitucionalidade, assim como se encontra em conformidade com os princípios do sistema jurídico, possa identificar de pronto que as regras de transição, da forma como estão sendo propostas, ferem flagrantemente o princípio da igualdade, inserido na constituição da República Federativa do Brasil, em seu artigo 5º, uma vez que tratam os cidadãos de forma não isonômica.

E se isso não vier a suceder, se os legisladores não se mostrarem coerentes com os princípios basilares de um Estado Democrático de Direito, que o Supremo Tribunal Federal possa enfrentar essa questão como guardião maior da Carta Magna da República Federativa do Brasil, não permitindo que uma reforma empurrada às pressas venha ferir de forma translúcida o princípio da igualdade e da isonomia, direitos fundamentais do ser humano e de todo cidadão, gravados na Constituição da República Federativa do Brasil pelo constituinte originário, e que não podem e não devem ser vilipendiados.

FONTES

[1] http://www.stf.jus.br/portal/ministro/verMinistro.asp?periodo=stf&id=105; 

[2] Constituição Federal, 1988;

[3] http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp? docTP=AC&docID=  375324;

[4] Bulos, Uadi Lamego, Curso de Direito Constitucional, 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014;

[5] https://pensador.uol.com.br/frase/MTIwMzQ3/;

[6] http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,proposta-de-reforma-da-previdencia-preve-idade-minima-de-65-anos,10000073606 (01/09/2016);

[7] Id. 2. 

       

       

Sobre o(a) autor(a)
Adyr Toledo Alves Filho
Adyr Toledo Alves Filho graduado em direito pela Universidade de Itaúna/MG e com especialização em direito Processual civil pela Faculdades Integradas de Jacarepaguá/RJ.
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