Ainda sobre a privação da liberdade após a confirmação de condenação em segunda instância

Ainda sobre a privação da liberdade após a confirmação de condenação em segunda instância

Há necessidade de maior ônus argumentativo pelo Supremo Tribunal Federal para dar sentido diverso e profundamente modificativo de norma legal a partir de sua leitura constitucional, especialmente quando se trata de garantia individual.

Em 1951, no caso Magor and St Mellons RDC vs. Newport Corporation, que envolvia interpretação da Lei Empresarial da Inglaterra, Lord Simonds proferiu o seguinte enunciado, que se tornaria célebre no direito inglês :

“o dever das cortes é interpretar as palavras que o legislador utilizou.  Essas palavras podem ser ambíguas, mas mesmo se o forem, o poder e o dever das cortes de se lançarem para além delas, em uma viagem de descoberta, devem ser estritamente limitados. Se uma lacuna é revelada, o remédio reside na edição de nova lei reparadora (...) e não na usurpação da função legislativa sob o fino disfarce da interpretação”[1].

A conhecida tensão entre a necessária deferência ao princípio da separação de poderes, um dos pilares do regime democrático, de um lado, e a salvaguarda dos direitos fundamentais e dos princípios republicanos pela Poder Judiciário, de outro, é bastante conhecida.

Quando o Brasil encerrou o período ditatorial no fim da década de 80, cuja Constituição Federal foi o coroamento normativo da nova ordem democrática, verificou-se um difícil período de transição no respeitante à afirmação dos direitos, deveres e princípios fundamentais elencados na novel Carta da República.  Grandes juristas do País debruçaram-se sobre a tarefa de oferecer subsídios teóricos para que o Judiciário pudesse encontrar decisões compatíveis com a expectativa jurídico-democrática instalada no seio da sociedade e com o novo sistema deontológico estabelecido na recém-promulgada Constituição.  Muitos denominaram o inestimável labor deste grupo de notáveis juristas - alguns dos quais atualmente ocupando, outros já havendo ocupado o Supremo Tribunal Federal - de doutrina da efetividade.

De posse deste importante acervo doutrinário, Juízes e Tribunais do País inovaram ao julgar e criaram ao decidir.  Como ocorreu também com os países do leste europeu e da África ex-colonial, foram “eles, os juízes” que assumiram o necessário papel de afirmadores dos novos direitos no momento histórico de transição.  Foi assim, inicialmente, em matéria de direitos e liberdades individuais e de assuntos pertinentes à organização federativa, à ordem econômica e à atuação do Estado; e, mais recentemente, no âmbito dos direitos sociais e culturais.

Talvez, olhando-se para trás, possa-se afirmar que foi um período de intenso labor político, jurídico e acadêmico seguido de vitória, pois, com efeito, muito se caminhou em um País de enorme déficit democrático e repleto de desigualdades extremas.  E o Judiciário ocupou posição de protagonismo, necessário e relevante; de certo modo, como muita coragem e denodo.

O pêndulo da história do direito nacional se desprendeu, portanto, do extremo em que se encontrava, vinculado a concepções anacrônicas de direito e do Direito, de ausência de hierarquia entre normas constitucionais e leis ordinárias, de técnicas exegéticas que manobravam os serôdios princípios gerais de direito e da pretensão de onipotência do direito posto, e iniciou seu deslocamento em direção a uma constituição com força normativa plena, resguardada por um Judiciário independente e atuante, e materializante dos direitos e princípios tidos por fundamentais, oscilando para algo próximo ao que se convencionou denominar de pós-positivismo. 

Mas, como todo remédio aplicado em doses excessivas, logo vieram os distúrbios e efeitos colaterais no sistema.  Entre eles, o mais grave, a vontade de moralização da sociedade e da resolução de seus males a partir da mundivisão dos ativos julgadores.  Advieram a patológica profusão de pseudoprincípios, as justificações pensadas a posteriori das decisões já (pré)adotadas, e o distanciamento da doutrina como subsidiária da inteligência jurídica.  Deu-se vez a um sistema bastante deformado e distorcido do case law e abandonou-se o ensino teórico-jurídico da lógica, epistemologia, metodologia, ontologia e história em favor de um recital cego de resumos de decisões.  Tão disforme que, enquanto no common law, alunos e juristas estudam a fundo as obiter dicta dos votos e holdings, entre nós, decoram-se e citam-se ementas insuficientes e muitas vezes mal transcritas de julgados.  E, o que é pior, com a instalação de um estrangeirismo deturpado a partir do precedente vinculante (stare decisis - apoiado fundamentalmente na ratio iuris), corrompido durante a interiorização em nosso sistema, dando ensejo a súmulas criadoras de normas novas, que também padecem de déficit democrático.

E, nesta manifestação de difícil definição – já que multifacetada –, mas comumente denominada de ativismo judicial, não se vislumbra algo semelhante a uma conspiração coletiva do Poder Judiciário em desfavor do necessário equilíbrio entre os Poderes.  Antes, aquilo que se observa hoje mais se assemelha, como afirmado acima, a um efeito colateral da terapia que foi durante algum tempo utilizada na construção da nova ordem político-social. Aquele pêndulo correu para o lado oposto, de certo modo. 

E é bem provável que muitas das manifestações judiciais de hoje estejam repletas de boas intenções na construção de uma sociedade melhor.  Mas, o problema reside precisamente na definição do que seja “o melhor”.  E é certo que, tal qual a radiação terapêutica, a aplicação contínua e cada vez mais intensa do tratamento inicialmente utilizado poderá extirpar a doença inicial, mas também acabará por destruir o tecido vital. 

Estes efeitos têm sido nefastos para a democracia.  No afã de construir “uma” (a sua, naturalmente) solução “boa” para uma sociedade “ideal”, o Judiciário cedeu à perigosa tentação de buscar moralizar o Direito.  Sem dúvida que a moral participa da gênese da norma.  Entretanto, isto pertence ao mundo da prática política. 

Contudo, no regime democrático, parafraseando o título da famosa obra de Jeremy Waldron, a dignidade do legislador advém, por um lado, de mandamento constitucional lastreado na soberania popular e, de outro, na insuperável relevância da atividade política na construção de consensos abrangentes entre as diversas “vontades” presentes nas sociedades complexas.  Logo, a moralização do Direito[2] por agentes não-eleitos viola a soberania popular e certamente deixa de contemplar interesses de alguns em favor de interesses de outros, dando azo a situações de baixa teor de legitimidade e reconhecimento, em virtude da ausência do virtuoso e imprescindível diálogo político: vão aqui questões envolventes de amplo espectro temático, do aborto ao sistema carcerário, das uniões homo e poliafetivas aos balances do regime federativo.

Como alertou Lord Simonds há mais de meio século, as cortes hão de exercer enorme contenção ao ingressar na seara da política.  Ao efetuar opções e escolhas lastreadas em preferências morais, utilitárias ou pragmáticas, o Judiciário produz efeitos incontroláveis e a maior vítima é justamente aquela que é, a um só tempo, autora e destinatária do Direito: a sociedade.  Isto porque a consequência mais nítida deste vil processo é a completa ausência de integridade do Direito, traduzindo-se isto em enorme insegurança jurídica na interpretação/aplicação da lei. 

Sob deturpações como o pamprincipiologismo[3], produzem-se, aqui e acolá, decisões diametralmente opostas, ao talante de cada julgador, muitas vezes sem responsabilidade política perante o jurisdicionado, que, atônito, sofre e resigna-se com a loteria dos julgados.

E, repise-se, não por culpa exclusiva do Judiciário.  Mas, talvez, como têm alertado atentos juristas, de forma reiterada, isto se se dá em virtude de uma apatia generalizada da comunidade jurídica.  Este setor arguto da doutrina, todavia, vêm acompanhando cautelosa e detidamente este novo fenômeno que lhe passou a desafiar, procurando analisá-lo e oferecer subsídios teóricos para uma melhor compreensão situacional, junto com reflexões sobre os cuidados que se deve ter.

Entre eles, o alerta recorrente de que o texto legal é inexoravelmente o ponto de partida da intepretação judicial.   Na intepretação, ocorre simultaneidade de revelação de sentido da norma no momento da aplicação.  É um processo intelectual dinâmico, à luz do contexto, mas a partir e de acordo com o texto.  E não há um sentido apriorístico da norma, seja na lei in re ipsa, seja na consciência do intérprete.  O que há é um sentido compartilhado, intersubjetivo, produzido em virtude dos debates argumentativos incessantes levados a cabo pela comunidade jurídica, pela tal “sociedade dos intérpretes”.  Por isso se fala em "interpretação/aplicação" e "texto/contexto". 

Assim, se por um lado, pode-se dizer que é impossível uma interpretação "distante" do texto, já que inúmeras interpretações são, de fato, possíveis, por outro, o texto traz cargas semânticas que necessariamente comungamos pela prática da língua: por exemplo, a palavra famigerada não quer dizer algo ruim; significa algo famoso; mas comungamos um sentido negativo para o termo. E este sentido é "compartilhado".  Há, sim, ruídos, incertezas e ambiguidades, próprios da inexatidão da linguagem. Mas há pontos de concordância, que vão se sedimentando com o aprofundamento da teoria e da prática.

Para aquém e além do princípio da presunção de inocência e da ampla defesa: no caso da recente decisão do STF, a respeito do possível recolhimento à prisão após a confirmação da sentença condenatória em 2a instância, a comunidade jurídica pareceu, de longas datas, comungar de um determinado sentido do dispositivo constitucional que afirma só se considerar o indivíduo (indivíduo = contrário da palavra “ninguém”) culpado após sentença que transitar em julgado.

CF, art. 5°, inc. LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;

Mas, observe-se que o texto constitucional não fala em prisão; fala-se em "considerado culpado".  Mas, mesmo assim - por sua correlação de texto, contexto histórico, taxonomia, anais da constituinte, aplicações nas primeiras experiências de vida da norma e uso pelos intérpretes- o texto deste dispositivo passou a significar (isto é, o significante ganhou significado), algo (norma) mais ou menos assim:  

"ninguém será recolhido preso até que a sentença condenatória transite em julgado".

Assim passou a entender o STF a partir de 2009, que, a propósito, ensejou a subsequente alteração legislativa no CPP para incluir o novo art. 283, que assim dispõe:

Art. 283.  Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva

E não parece haver dúvidas, entre nós, a respeito da acepção da expressão “trânsito em julgado”.

É claro que no Direito as ambiguidades são, assim, muitas, o que é natural já que o Direito nada mais é do que um discurso social com pretensão de cientificidade.  Entretanto, por isto mesmo, há a necessidade de se assumir como ponto de partida algumas “hipóteses”, isto é, proposições iniciais.  E no rule of law, o ponto de partida há de ser o texto, sob pena de ausência de balizas epistêmicas mínimas necessárias ao diálogo entre os membros da comunidade das Ciências Jurídicas. Pois não se pode jogar uma partida de futebol sem que se saibam quais as linhas de fundo e laterais.  

É o que ocorre, e.g., com termos (enunciados) como "culpado" e "trânsito em julgado", cujo significado reconhecido e compartilhado não é ato de vontade de um ou alguns, mas resultado do cotejamento com milhares de dissertações, estudos, pesquisas, petições, decisões, acórdãos etc., que exploraram diferentes ângulos e visões, desafiando sua racionalidade extrínseca e intrínseca.  E, neste transcurso epistemológico, racional e histórico, sedimentou-se um sentido de que nenhum indivíduo poderia ser recolhido preso até o exaurimento dos recursos internos. 

O leitor-intérprete (e isto é muito relevante) nunca está sozinho no mundo e precisa convencer seus interlocutores de que esse ou aquele sentido é compatível ou não com todo o edifício jurídico brasileiro. Isto, o Supremo esqueceu de fazer.

O que salta aos olhos, portanto, com a “inovação” do STF, é este repentino rompimento com o significado que se dava, até aqui, ao dispositivo, dando-lhe sentido completamente distinto, e fazendo nascer uma nova "norma". Que, a princípio, é prerrogativa do Legislativo.  Tal norma, direito novo, portanto, teria um enunciado semelhante a:

“Confirmada a sentença condenatória de primeira instância por instância superior, o réu poderá ser recolhido preso”.

Mas, não é aí que reside o maior problema, pois, mudanças cognitivas podem ocorrer e, com efeito, espera-se que ocorram.  Entretanto, porque a intepretação jurídica não é conversa de botequim, há parâmetros estabelecidos pela e para a comunidade científica, que debate pressupostos e condições de validade de assertivas como esta que se pretende inovar.  De outro modo: se alguém aparece amanhã dizendo que descobriu a cura para a Aids, não basta alegá-lo pura e simplesmente.  A menos que, pela força ou pela vontade, ou pela força da vontade, se imponha como certeza algo que é mera opinião.  Há caminhos no rito metodológico científico.  Aliás, é esta mesma a etimologia de meta + hodos = reflexão, caminho.

O pecado interpretativo aqui, portanto, parece ser a radical mudança na atribuição do significado daquele enunciado constitucional de modo incompatível com o regime democrático, isto é, pela imposição de ou do P(p)oder, já que distanciada foi da doutrina, de milhares de julgados, de discussões acadêmicas, de livros, textos, pesquisas, monografias, teses e dissertações.  Afinal, o que a comunidade quer no fundo perguntar é: de onde veio isto?

E se veio da intenção (possível e provavelmente bem direcionada) de "moralizar" o direito ou o nosso sistema criminal, o pecado é ainda mais grave, pois trocamos a vontade da sociedade (democracia) pelo voluntarismo de 11 servidores públicos não-eleitos (arbítrio).  Fosse assim, a inovação poderia até mesmo permitir a prisão após a decisão em 1a instância, já que o duplo grau de jurisdição também não integra explicitamente, em nosso texto magno, a ampla defesa.  Mas, isto não é assim exatamente porque a comunidade jurídica já "acordou" que existe um princípio constitucional implícito (e, portanto, que sequer tem um texto) derivado de outro explícito neste sentido.

Há finalmente, uma reflexão igualmente importante, que foi suscitada por Dworkin acerca do papel de criação de direito novo pelas Cortes e sua interpretação, com muita pertinência à questão em tela.  Dizia Dworkin que há duas objeções à criação de norma nova pelo Judiciário.  A primeira nos é conhecida e diz respeito à separação de poderes e falta de legitimidade democrática aos juízes.  A segunda, todavia, é interessante e colocada pelo festejado autor nos seguintes termos:

“Se um juiz constitui direito novo e o aplica retroativamente ao caso que lhe é submetido, a parte sucumbente na ação será punida, não porque violou um dever legal, mas porque violou um dever criado após o evento”[4].

No nosso sistema, isto é grave. Sobretudo em matéria de garantias individuais.  E pode-se concordar ou discordar dos efeitos desta decisão do Supremo.  Não é sobre isto que trata a presente discussão.  É sobre os perigos sempre latentes de se abrir a Caixa de Pandora.

Notas

[1] Apud Kanti, Tushar. Textbook on Legal Methods, Legal System and Research. New Delhi: Universal Law Publishing Co., 2010, p.124 et seq.; v. Magor and St Mellons Rural District Council v. Newport Corporation [1952] UKHL AC 189.

[2] Sobre este tema, consulte-se, entre outros: Struchiner, Noel e Shecaira, Fábio Perin, A Distinção entre Direito e Moral e A Distinção Moral do Direito. In: Revista de Direito do Estado – RDE, Ano 7, n.22, ps. 131-145. Rio de Janeiro: Renovar, 2012; Streck, Lênio, O Direito como um Conceito Interpretativo. In: Pensar – Revista de Ciências Jurídicas, v.15, n.2, 2010, disponível em: http://ojs.unifor.br/index.php/rpen/article/view/2138. Acesso em 25.mai.16; e Barroso, Luis Roberto, Os Princípios Jurídicos e sua Densidade Normativa. In: Revista Justiça e Cidadania. Edição 145. Rio de Janeiro: Editora JC, Set. 2013, p. 20

[3] Termo usualmente utilizado pelo Prof. Lênio Streck, em diversos textos de sua autoria, para indicar a profusão incontrolável da utilização teoricamente fraudulenta de meros tópicos de argumentação ao “status” de princípios, com o propósito  sofismático exclusivo de sustentar meras preferências/opiniões nas decisões judiciárias que, via de regra, não encontram sustentação no Direito.

[4] Dworkin, Ronald.  Hard Cases. In: Nino, Carlos Santiago (ed.).  Rights.  New York: NY University Press, Reference Collection, 1992, p. 114

Sobre o(a) autor(a)
Paulo Calazans
Advogado. Sócio de Leonardo Lobo Advogados. Mestre em Direito Constitucional e Teoria do Estado pela PUC-RJ. Pós-Graduado em Direito e Processo do Trabalho pela UCAM-RJ.
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