A antinomia entre o Novo Código de Processo Civil e a proteção do consumidor de serviços notariais e registrais

A antinomia entre o Novo Código de Processo Civil e a proteção do consumidor de serviços notariais e registrais

Se confrontadas as regras de competência dos referidos diplomas legais e suas especificidades, denota-se a prevalência da liberdade de o consumidor escolher o foro para ajuizar ação acerca de prestação de serviços notariais e registrais.

1. INTRODUÇÃO

O novo Código de Processo Civil, instituído pela Lei 13.105/2015, apresenta uma nova sistemática que promove diversas modificações de procedimentos e questões pré-processuais.

Houve, por exemplo, a revogação parcial da Lei de Justiça Gratuita, Lei nº 1.060/50; Lei dos Juizados Especiais Cíveis, Lei nº. 9.099/95 e até mesmo do Código Civil.

Tais mudanças, certamente, objetivaram a melhora processual. Entretanto, uma destas mudanças consiste em um retrocesso aos direitos do consumidor.

2. A ANTINOMIA

Trata-se do art. 53 que dispõe sobre a competência territorial.

O referido dispositivo legal aduz em seu inciso III, alínea f, que é competente o foro do lugar da sede da serventia notarial ou de registro, para a ação de reparação de dano por ato praticado em razão do ofício:

Art. 53.  É competente o foro:

III - do lugar:

f) da sede da serventia notarial ou de registro, para a ação de reparação de dano por ato praticado em razão do ofício; (BRASIL, 2015)

Vale dizer, se um cartório cometer causar dano a uma pessoa, uma eventual demanda reparatória ou compensatória deverá ser ajuizada na comarca da sede da serventia, não sendo competente o foro do domicílio da pessoa tomadora dos serviços prestados.

Ocorre que, há muito a jurisprudência majoritária sedimentou o entendimento de que os serviços notariais e registrais são consumeristas e, portanto, amparados pela militância protecionista do Código de Defesa do Consumidor, nos termos dos arts. 2º, 3º e 22 da referida lei.

Cita-se, a título de exemplo, o julgamento do Recurso Especial nº. 1.163.652/PE, de relatoria do Ministro Herman Benjamin, cujo voto foi expresso: “(...) 5. O Código de Defesa do Consumidor aplica-se à atividade notarial”. (SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 2010)

No mesmo sentido, votou a ministra Eliana Calmon, no julgamento do Recurso Especial 609.332/SC:

Os serviços públicos impróprios ou UTI SINGULI prestados por órgãos da administração pública indireta ou, modernamente, por delegação a concessionários, como previsto na CF (art. 175), são remunerados por tarifa, sendo aplicáveis aos respectivos contratos o Código de Defesa do Consumidor. (SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 2005)

E por fim, a ministra Nancy Andrighi, em relatora no julgamento do Recurso Especial nº.  625.144/SP:

Desta forma, se até mesmo os serviços públicos prestados por órgãos da administração pública indireta estão submetidos ao CDC, conforme o precedente acima citado, quanto mais os serviços notariais, que são prestados por delegatários do Poder Público, que exercem suas atividades em caráter privado, como é o caso dos tabeliães.

Ademais, a atividade notarial, embora constitua serviço público, exercido em caráter privado por delegação do Poder Público, não deixa de ser serviço comum e remunerado, que, acrescido à habitualidade da prestação e à profissionalidade da atividade, fornecem os elementos essenciais à caracterização da atividade de fornecimento de serviços. Saliente-se que, o próprio dispositivo considerado (3º, caput e § 2º do CDC) abrange expressamente o fornecedor público. Não poderia, pois, ficar de fora o serviço público delegado prestado em caráter privado, como é o caso daquele especificamente aqui retratado, sob pena de desvirtuamento tanto da literalidade da lei quanto da finalidade destinada ao Estado através do artigo 5º, XXXII da Constituição, qual seja, promover a defesa do consumidor.

Assim, os serviços notariais, destinados a garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos, revestem-se da mesma natureza que caracterizam as relações de consumo, porquanto, se há prestação remunerada, haverá aí uma relação de consumo. (SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 2006)

Desta forma, as pessoas que sejam destinatárias finais dos serviços notariais e registrais são consumidores e, consequentemente, gozam da prerrogativa de foro facultativo, consubstanciada no art. 101, inciso I, do código de Defesa do Consumidor, podendo optar por ajuizar a ação no domicílio da sede do serviço notarial ou na comarca onde eventualmente resida:

Art. 101. Na ação de responsabilidade civil do fornecedor de produtos e serviços, sem prejuízo do disposto nos Capítulos I e II deste título, serão observadas as seguintes normas:

I - a ação pode ser proposta no domicílio do autor; (BRASIL, 1990)

Percebe-se, portanto, que a regra consubstanciada no art. 53, inciso III, alínea f do novo Código de Processo Civil é antitética ao direito do consumidor de escolher o foro em que irá ajuizar uma ação reparatória de falha na prestação de serviço notarial ou registral conforme o art. 101, I do Código de Defesa do Consumidor.

2.1. DA SOLUÇÃO À REFERIDA ANTINOMIA

Neste momento, cumpre-nos observar os critérios solucionadores do referido dilema fim de determinar qual regra deve prevalecer.

Preteritamente a tudo, cumpre-nos observar que o art. 53, III, f do Código de Processo Civil não pode revogar a regra do art. 101, I do Código de Defesa do Consumidor.

Por um lado o §1º do art. 2º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro dispõe que a lei posterior revoga a anterior quando dispuser de algo que seja com ela incompatível (BRASIL, 1942).

Em que pese, em contrapartida, paira sobre o ordenamento jurídico a máxima lex specialis derogat legi generali, consagrada pelo Princípio da Especialidade ou Especificidade, que implica dizer que uma lei que trate de uma matéria específica prevaleça sobre uma lei geral que mencione algo sobre a referida matéria. (DINIZ, 2003, p. 34)

Neste diapasão, imperiosa é a lição de Flávio Tartuce (online, 2005), acerca dos critérios de prevalência de leis conflitantes, donde se extrai que prevalece a norma específica sobre a geral, mesmo que esta seja posterior àquela:

Na realidade, o critério da especialidade é de suma importância, pois também está previsto na Constituição Federal de 1988. O art. 5º do Texto Maior consagra o princípio da isonomia ou igualdade lato sensu, reconhecido como cláusula pétrea, pelo qual a lei deve tratar de maneira igual os iguais, e de maneira desigual os desiguais.

Na parte destacada está o princípio da especialidade, que deverá sempre prevalecer sobre o cronológico, estando justificado esse domínio. Mesmo quanto ao critério da hierarquia, discute-se se o critério da especialidade deve mesmo sucumbir.

Assim, ao passo que os serviços notariais e registrais consubstanciam-se em uma relação de consumo, parece cristalino que prevalece a regra de opção de foro do Código de Defesa do Consumidor que regula especificamente deste modal de negócio jurídico, deve prevalecer sobre a disposição do novo Código de Processo Civil que trás disposições gerais de competência de foro, mesmo que posterior.

2.2. DA TUTELA DO CONSUMIDOR

Outro argumento em prol da supremacia da lei consumerista é a tutela implícita na Constituição da República no art. 5º, XXXII, elevada caráter de direito fundamental: “XXXII - o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”. (BRASIL, 1988)

Isto porque, como ensinam Finkelstein e Sacco Neto (2010, p. 189), a opção conferida ao consumidor, de poder litigar em seu domicílio, se diverso do domicílio do consumidor, é uma medida que está em consonância com a facilitação de sua defesa, pois o consumidor é sempre vulnerável e, na maioria das vezes, hipossuficiente.

Ademais disto, o próprio Código de Defesa do Consumidor elege a facilitação da defesa do consumidor como um direito básico:

Art. 6º São direitos básicos do consumidor:

VIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências;

Desta forma, conclui-se que a opção de foro disposta pelo Código de Defesa do Consumidor é a que melhor coaduna com o direito constitucional e fundamental de proteção ao consumidor.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

À luz de todo o exposto, perceptível que há uma antinomia em relação ao art. 53, III, f do novo Código de Processo Civil com o art. 101, I do Código de Defesa do Consumidor, no que se refere à competência territorial do foro do domicílio do consumidor de serviços notariais e registrais.

Inobstante, se confrontadas as regras de competência dos referidos diplomas legais e suas especificidades, denota-se a prevalência da liberdade de o consumidor escolher o foro para ajuizar ação acerca de prestação de serviços notariais e registrais, ou seja, a prevalência da norma insculpida no Código de Defesa do Consumidor em detrimento do novo Código de Processo Civil.

Portanto, há dois possíveis destinos ao art. 53, inciso III, alínea f do novo Código de Processo Civil: representar um retrocesso ao direito do consumidor ou ser uma lei natimorta.

4. REFERÊNCIAS

BRASIL. Código de Defesa  Consumidor. 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/leis/L8078.htm>. Acesso em 22 jul. 2015.

______. Código de Processo Civil. 2015. Disponível em: < http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13105.htm>. Acesso em 22 jul. 2015.

______. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em 22 jul. 2015.

______. Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del4657compilado.htm>. Acesso em 22 jul. 2015.

DINIZ, MARIA HELENA. Conflito de Normas. São Paulo: Editora Saraiva, 2003.

FILKELSTEIN, Maria Eugênia Reis; Sacco Neto, Fernando. Manual de Direito do Consumidor. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp. 1.163.652. Rel. Min. Herman Benjamin. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/
mediado/?componente=ATC&sequencial=9994566&num_registro=200902077065&data=20100701&tipo=5&formato=PDF> Acesso em 23 jul. 2015.

______. REsp. 609.332. Rel. Min Eliana Calmon. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=1877759&num_registro=200302088008&data=20050905&tipo=5&formato=PDF> Acesso em 23 jul. 2015.

______. Resp. 625.144. Rel. Min. Nancy Andrighi. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=2221686&num_registro=200302389572&data=20060529&tipo=5&formato=PDF>Acesso em 23 jul. 2015.

TARTUCE, Flávio. Breve Estudo Das Antinomias Ou Lacunas De Conflito. Revista Jus Navigandi. Teresina, ano 10, n. 879, 29 nov. 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/7585>. Acesso em: 23 jul. 2015.

Sobre o(a) autor(a)
Elias Tisato
Elias Tisato. Advogado. Graduado em Direito pela Fundação de Estudos Sociais do Paraná - FESP
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