A teoria do adimplemento substancial e sua repercussão

A teoria do adimplemento substancial e sua repercussão

Abordagem acerca da teoria do adimplemento substancial, sua origem, as repercussões no direito estrangeiro e nacional, com ênfase no ordenamento jurídico brasileiro. Bem como os princípios, conceitos, aplicabilidade e jurisprudências.

Origem

substancial performance teve origem no direito inglês, especificamente na Inglaterra no século XVIII. Essa teoria foi concretizada com o caso Boone v. Eyre, de 1779, julgado por Lord Mansfield, em que se percebeu a necessidade da relativização da exigência do exato e estrito cumprimento dos contratos.

 De acordo com Elissane Omairi, Boone demandou contra Eyre, pois este atrasou o pagamento estipulado pelas partes no contrato. O contrato firmado propunha ao Eyre o pagamento de 500 libras e uma renda anual de 160 libras a Boone contanto que este transferisse a propriedade de uma plantação nas Antilhas, com os escravos que ali viviam, garantindo seu domínio e posse pacíficos. Eyre atrasou o pagamento e Boone estava cobrando o que tinha de direito em juízo (400 libras de renda atrasada) e Eyre alegava que a obrigação não tinha sido cumprida por Boone, pois não garantiu o domínio sobre os bens alienados não existindo mais escravos. Lord Mansfield julgou procedente, entendendo que o comprador não estava dispensado de pagar o convencionado, pois distinguia em um contrato as obrigações dependentes, chamadas de "conditions" e as obrigações independentes.

No caso em questão não configurava uma obrigação dependente, ou seja, não eram cláusulas essenciais, constituindo a própria substância do contrato, cujo cumprimento era imprescindível. Considerou uma obrigação secundária se resolvendo somente em perdas e danos e não cabendo a resolução do contrato.

A Teoria do Adimplemento Substancial no Direito Estrangeiro

Diferente do que ocorre em outros ordenamentos jurídicos, onde há expressa previsão legal da teoria do adimplemento substancial, no Brasil essa teoria é escassa de normas, mas já utilizada em para embasamentos jurisprudencial.

São exemplos de países, no qual podem ser encontradas normas que aludem a teoria do adimplemento, são no direito italiano, o art. 1.455 do Código Civil, no direito português, o art. 802, nº 2, do Código Civil, do Codici Civile italiano art. 1.455, a jurisprudência do direito francês, através da interpretação do art. 1.184 do Código Civil (Code)

Em síntese, em alguns ordenamentos é necessária a interpretação para a obtenção da teoria do adimplemento substancial, em outros já existe expressa previsão normativa.

A Teoria do Adimplemento Substancial no Direito Brasileiro

De acordo com o ministro Paulo de Tarso Sanseverino, da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), o instituto foi desenvolvido “para superar os exageros do formalismo exacerbado na execução dos contratos em geral”. 
Embora não seja expressamente prevista no CC, a teoria tem sido aplicada em muitos casos, inclusive pelo STJ, tendo como base, além do princípio da boa-fé, a função social dos contratos, a vedação ao abuso de direito e ao enriquecimento sem causa. 
De acordo com o ministro Luis Felipe Salomão, da Quarta Turma do STJ, “a insuficiência obrigacional poderá ser relativizada com vistas à preservação da relevância social do contrato e da boa-fé, desde que a resolução do pacto não responda satisfatoriamente a esses princípios”. Para ele, essa é a essência da doutrina do adimplemento substancial.

A jurisprudência tem reconhecido casos de adimplemento substancial, para não se extinguir o contrato e tão só cobrar o efetivo cumprimento da obrigação, após satisfeita boa parte do contratado. Trata-se da teoria do adimplemento substancial fundamentada nos princípios da boa-fé objetiva (art. 422), da função social dos contratos (art. 421), da vedação ao abuso de direito (art. 187) e ao enriquecimento sem causa (art. 884). Visa garantir aos devedores de boa-fé a esperança para saldar suas dívidas sem sofrer privações e medidas coercitivas no caso concreto.

Esta teoria tem sido bastante debatida nos tribunais, frequentemente impondo que nas hipóteses em que a extinção da obrigação pelo pagamento esteja muito próxima do final, exclua-se a possibilidade de resolução contratual, sendo coerente o credor procurar a tutela adequada à percepção da prestação faltante, por meio de uma ação de cobrança do saldo em aberto.

Em reforço, estabelece o Enunciado n. 361 – arts. 421, 422 e 475 - do Conselho de Justiça Federal que “O adimplemento substancial decorre dos princípios gerais contratuais, de modo a fazer ponderar a função social do contrato e o principio da boa-fé objetiva, balizando a aplicação do art. 475”.

Na lição de Flávio Tartuce pela teoria de adimplemento substancial “ em hipóteses em que o contrato tiver sido quase todo cumprido, não caberá a sua extinção, mas apenas outros efeitos jurídicos, visando sempre a manutenção da avença”. (Direito Civil, vol. 3, Ed. Método, 2011, p.251)

Em suma, o adimplemento substancial consiste em afastar a resolução do contrato tendo em vista os princípios que o fundamenta, quando o devedor não executa perfeitamente o contrato ou não atinge plenamente o fim proposto, mas aproxima-se consideravelmente do seu resultado final.

Princípios do Adimplemento Substancial

Essa teoria relaciona-se diretamente com quatro princípios: Vedação ao abuso de direito (art. 187), Função social dos contratos (art. 421), Princípios da boa-fé objetiva (art. 422) e enriquecimento sem causa (art. 884).

O principio da boa fé veda ao titular de um direito que, ao exercê‑lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa‑fé ou pelos bons costumes, sendo a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato. Os contratantes, portanto, são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato e nas negociações preliminares, como em sua execução, os princípios de probidade e boa‑fé. Sendo obrigado a restituir o indevidamente auferido aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, feita a atualização dos valores monetários.

Para Dario Silva, este tratamento não viola a isonomia contratual, pois a igualdade deve ser vista não no plano das liberdades formais, mas sim no campo das liberdades materiais. O que consiste em tratar desigualmente os desiguais, refletindo a evolução da doutrina contratual, na qual a liberdade de contratar submete-se aos limites do respeito mútuo, entre iguais, mais ainda, à superação do princípio pacta sunt servanda, toda vez que ficar comprovado o desequilíbrio entre as partes.

Exceção do contrato não cumprido

No julgamento do REsp 883.990, a Quarta Turma analisou um caso em que a teoria do adimplemento substancial foi afastada. Um casal ajuizou ação ordinária, visando a reintegração de posse de um imóvel, situado na Barra da Tijuca (RJ), e a consequente rescisão do contrato milionário. 

O casal de compradores havia deixado de pagar mais da metade do valor do imóvel, aproximadamente R$ 1 milhão, em razão de os vendedores não terem quitado parcela do IPTU, de R$ 37 mil. 

Para suspender o pagamento das prestações devidas, o casal invocou a norma disposta no artigo 470 do CC – exceção do contrato não cumprido –, argumentando que a responsabilidade pela quitação dos débitos fiscais incidentes sobre o bem era dos vendedores. 

De acordo com o relator do recurso especial, ministro Fernando Gonçalves (hoje aposentado), há uma flagrante desproporcionalidade entre o descumprimento parcial dos vendedores com a quitação dos débitos fiscais e a retenção das parcelas devidas pela compra do imóvel. 

Ele entendeu que a falta de pagamento do IPTU não acarretou diminuição patrimonial para os compradores, o que serviria de justificativa para que estes deixassem de cumprir sua obrigação. Mencionou que o valor das prestações supera em muito o quantitativo referente ao imposto, que, inclusive, poderia ser abatido do valor devido. 

Para o ministro, a exceção do contrato não cumprido favoreceu os vendedores. “Há flagrante mora dos recorridos [compradores], porque, por uma escassa importância, suspenderam o pagamento de aproximadamente R$ 1 milhão, já na posse do imóvel até hoje mantida”, concluiu. 

No mesmo sentido Ação de Reintegração de Posse. Arrendamento Mercantil. Pagamento de 71,66% do contrato (43 parcelas de 60). Réu que alega a aplicação da teoria do adimplemento substancial. Impossibilidade. Débito que alcança valor significante ante as peculiaridades do contrato (R$ 8.649,94). Recurso desprovido. (81424320118260281 SP 0008142-43.2011.8.26.0281, Relator: Pedro Baccarat, Data de Julgamento: 28/06/2012, 36ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 29/06/2012)

Com base nesses julgados percebe-se que tal direito deverá ser exercido de forma proporcional como instrumento de equidade diante da situação fático-jurídica subjacente, permitindo soluções razoáveis e sensatas, conforme as peculiaridades de cada caso. E que a “boa parte do contrato” mencionada por juristas ou doutrinadores não poderá ser um valor considerável ou exorbitante, mesmo que já tenha sido executada 85% do contrato, devendo ser um valor irrisório ou insignificante diante do todo obrigacional.

Aplicabilidade

O adimplemento substancial aplica-se aos contratos em geral, como compra e venda, locação, leasing, arrendamentos mercantis etc. Assim, para Tatiane Tamanaka, “a aplicação é preciso que o descumprimento seja insignificante em relação à parte que já foi cumprida e, além disso, que o devedor tenha agido com boa-fé durante a execução do contrato, com clara demonstração de seu empenho no sentido de saldar a dívida, demonstrando-se merecedor de confiança por parte do credor. É preciso, também, avaliar o interesse do credor na manutenção do pacto, uma vez que, de nada adianta a prova da boa-fé se, com o inadimplemento, o contrato não mais atinge sua finalidade principal, tornando-se inútil ao credor”.

Casos práticos julgados pelo STJ

Carreta

Caso semelhante foi analisado também pela Terceira Turma, em junho deste ano. Inconformada com o débito de seis parcelas, do total de 36, correspondentes a contrato cujo objeto eram 135 carretas, a empresa Equatorial Transportes da Amazônia ajuizou ação de reintegração de posse contra Costeira Transportes e Serviços. 

No REsp 1.200.105, a Equatorial pediu a extinção do contrato, sustentando que o fato de faltar apenas um quinto do valor a ser quitado não servia de justificativa para o inadimplemento da outra contratante. 

O ministro Paulo de Tarso Sanseverino, relator do recurso especial, deu razão à Costeira e aplicou a teoria do adimplemento substancial. “Tendo ocorrido um adimplemento parcial da dívida muito próximo do resultado final, limita-se esse direito do credor, pois a resolução direta do contrato mostrar-se-ia um exagero, uma iniquidade”, disse. 

Ele afirmou que, atualmente, o fundamento para aplicação da teoria é o artigo 187 do CC. De acordo com o dispositivo, o titular de um direito que o exerce de forma a exceder os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes, comete ato ilícito.Na hipótese, Sanseverino explicou que o credor poderá exigir seu crédito e até indenização, mas não a extinção do contrato.

Imóvel rural

Em agosto deste ano, a Terceira Turma reconheceu o adimplemento substancial de um contrato de compra e venda, cujo objeto era um imóvel rural. Do valor da dívida, R$ 268.261, o comprador deixou de pagar, à época do vencimento, apenas três parcelas anuais, que totalizavam R$ 26.640.

Esse valor foi quitado posteriormente. “Se o saldo devedor for considerado extremamente reduzido em relação à obrigação total, é perfeitamente aplicável a teoria do adimplemento substancial, impedindo a resolução por parte do credor, em favor da preservação do contrato”, afirmou o ministro Massami Uyeda (AREsp 155.885). 

Contrato de previdência 

“Para a resolução do contrato, inclusive pela via judicial, há de se considerar não só a inadimplência em si, mas também o adimplemento da avença durante a normalidade contratual”, disse o ministro Luis Felipe Salomão, no julgamento do REsp 877.965 

Após a morte do cônjuge, uma beneficiária de contrato de previdência privada, firmado com o Bradesco Vida e Previdência, foi informada de que o acordo havia sido cancelado administrativamente, devido à inadimplência de três parcelas. Conforme acordado, a beneficiária deveria receber pecúlio em razão de morte, no valor de R$ 42 mil. 

Entretanto, seis dias após o cancelamento pela instituição financeira, antes de ter ocorrido a morte do cônjuge, as três mensalidades devidas foram pagas. Em razão do cancelamento, a empresa devolveu o valor pago em atraso. Diante disso, a beneficiária ajuizou ação de cobrança. 

No recurso especial, ela alegou nulidade da cláusula contratual que autorizou o cancelamento do contrato de seguro devido ao inadimplemento de parcelas, sem que tenha ocorrido a interpelação judicial ou extrajudicial para alertar o devedor a respeito do cancelamento ou rescisão do contrato. 

Para o ministro Salomão, a conduta da beneficiária “está inequivocamente revestida de boa-fé, a mora – que não foi causada exclusivamente pelo consumidor – é de pequena importância, e a resolução do contrato não era absolutamente necessária, mostrando-se também interessante a ambas as partes a manutenção do pacto”.

Segundo o ministro, o inadimplemento é “relativamente desimportante em face do substancial adimplemento verificado durante todo o período anterior”, além disso, “decorreu essencialmente do arbítrio injustificável da recorrida – entidade de previdência e seguros – em não receber as parcelas em atraso, antes mesmo da ocorrência do sinistro, não agindo assim com a boa-fé e cooperação recíproca, essenciais à harmonização das relações civis”.

Referências

FARIAS, Cristiano Chaves de e ROSENVALD, Nelson. CURSO DE DIREITO CIVIL: CONTRATOS . 2.ed.rev, ampl. e atual. Bahia: Editora JusPodivm, 2012, vol.4.

OMAIRI,Elissane Leila. A DOUTRINA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL E SUA RECEPÇÃO PELO DIREITO BRASILEIRO. Direito Net, publicado em 25/maio/2005 . Disponível em:http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/2064/A-doutrina-do-adimplemento-substancial-e-sua-recepcao-pelo-Direito-brasileiro

PARIZ.  Ângelo Aurélio Gonçalves. A TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL. Revista Fonte do Direito, Porto Alegre : www.fontedodireito.com.br.  Ano I, n. 1, Mar./Abr. 2010, p. 18.

SILVA, Dario Florindo da. Teoria do Adimplemento Substancial. Jurisprudência Comentada. Disponível em: http://www.murilomaciel.com.br/blog/teoria-do-adimplemento-substancial-jurisprudencia-comentada/

TAMANAKA, Tatiane Harumi. A teoria do adimplemento substancial e os direitos dos credores. Rayes e Fagundes: informe nº61. Disponível em: http://www.rfaa.com.br/Cmi/Pagina.aspx?1933

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Myquelangela dos Santos Oliveira
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