Novamente se tenta discriminar o trabalhador doméstico

Novamente se tenta discriminar o trabalhador doméstico

Demonstra o processo histórico da discriminação do trabalhador doméstico e a importância da EC 72 que não pode ser inviabilizada pela regulamentação.

Infelizmente a discriminação do empregado doméstico para excluí-lo das normas de proteção aos demais trabalhadores não é novidade entre nós. Faz parte de um processo histórico que se poderia dizer teve início com a escravatura.

Ainda no século passado Orlando Gomes chamava a atenção para essa questão em sua festejada obra Curso de Direito do Trabalho2, o que evidencia que o problema vem de muito longe, pois até o advento da Lei 5.859/72 o Direito do Trabalho simplesmente ignorava essa categoria de trabalhadores tendo a Carta de 1988 lhes estendido alguns direitos.

Em que pese os expressos termos do art. 6º da Constituição de 1988, somente muito depois da promulgação da Carta (em 2006) é que foi reconhecida à doméstica a estabilidade no emprego em razão de gravidez como se o direito de proteção à maternidade fosse um privilégio do trabalhador não doméstico.

Outros direitos, entretanto, foram negados esses trabalhadores, inclusive por força do veto parcial do Presidente da República à Lei 11.324, de 19 de julho de 2006.

Em artigo publicado por ocasião da edição da Lei 11.324/2006, tive a oportunidade de chamar a atenção para questão da discriminação do trabalhador doméstico.

Naquela oportunidade afirmei3:

Infelizmente, e apesar dessa solene proclamação constitucional, a sociedade brasileira de um modo geral ainda discrimina, e discrimina inclusive em razão do trabalho, da profissão, do sexo, da origem, da cor, da orientação sexual e tantos outros motivos, muitas vezes por mero preconceito e desinformação, e isso acabamos de constatar pela injustificável forma como o Presidente da República tratou os empregados domésticos ao vetar parcialmente a Lei 11.324, de 19.07.2006, objeto do Projeto de Conversão da Medida Provisória 284 por ele editada em 06.03.06 e a 11.321/2006 que estendia o reajuste do salário mínimo aos aposentados que percebem valor superior a esse salário.

Parece evidente que a garantia ao trabalhador doméstico do direito ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço não abala em absoluto a confiança recíproca que deve existir entre empregado e empregador em toda e qualquer relação de emprego e não apenas na relação doméstica. Na verdade o que se esconde por de traz do veto presidencial é uma indisfarçável e histórica visão preconceituosa a respeito do empregado doméstico. Tanto assim, que Sua Excelência invoca razões sociológicas para distinguir, para poder negar direitos, o vínculo de trabalho doméstico dos demais, quando de acordo com os candentes termos do arts. 1º e 170 da Constituição da República que o Presidente jurou defender e fazer cumprir, o trabalho é um valor social não importando quem o preste.

É claro que não se pede a condição de cidadão ou de pessoa dotada de direitos e obrigações apenas porque se integra esta ou aquela categoria profissional como tenta convencer o veto presidencial. O trabalho como valor social e o trabalhador como ser humano encontram-se protegidos pelo Texto Maior e não podem ser discriminados porque aquele que o presta integra essa ou aquela categoria. A mera afirmação, não comprovada ou sequer justificada de forma concreta de que o reconhecimento do FGTS ao trabalhador doméstico poderia “tornar insustentável a manutenção do vínculo laboral” ou não se coadunaria “com a natureza jurídica e sociológica do vínculo de trabalho doméstico”, evidentemente não constitui motivo razoável para se tratar de forma discriminatória o trabalhador doméstico, pois este enquanto portador de uma dignidade como todos os demais trabalhadores, também merece respeito e é titular de direitos.

Na verdade a discriminação do doméstico entre nós é de tal forma grave, que não faz muito tempo a mídia discutia com sensacionalismo impressionante um episódio envolvendo uma trabalhadora doméstica agredida de forma covarde por “mauricinhos” integrantes da sociedade carioca.

Naquele episódio o que mais me impressionou, além da violência praticada contra uma pessoa humilde, decente e sem maiores defesas, foi a forma como alguns se referiam à pobre vítima que, além de ter sido violentamente agredida por bandidos integrantes da classe média (eram todos universitários, “filhos de papai”), é que ela perdeu o direito de ser chamada pelo nome passando a ser tratada apenas como “uma doméstica”, o que confirma a forma preconceituosa e discriminatória como a sociedade trata essa valorosa categoria de trabalhadores.

Felizmente, em 2011 a Organização do Trabalho editou uma Convenção que de forma expressa garante ao trabalhador doméstico vários direitos que entre nós, apenas agora com a Emenda 72 foram reconhecidos.

De acordo com o art. 3 daquela normativa internacional:

“1. Todo Miembro deberá adoptar medidas para asegurar la promoción y la protección efectivas de los derechos humanos de todos los trabajadores domésticos, en conformidad con las disposiciones del presente Convenio. 2. Todo Miembro deberá adoptar, en lo que respecta a los trabajadores domésticos, las medidas previstas en el presente Convenio para respetar, promover y hacer realidad los principios y derechos fundamentales en el trabajo, a saber: a) la libertad de asociación y la libertad sindical y el reconocimiento efectivo del derecho de negociación colectiva; b) la eliminación de todas las formas de trabajo forzoso u obligatorio; c) la abolición efectiva del trabajo infantil; y d) la eliminación de la discriminación en materia de empleo y ocupación”.

Embora referida normativa ainda possa levar anos para ser aprovada e incorporada ao ordenamento jurídico nacional, demonstra uma evidente preocupação da comunidade internacional em prevenir contra a discriminação dessa categoria de trabalhadores, pois trata entre outros temas, da tutela dos direitos fundamentais desses trabalhadores. Por conseguinte, deve servir de orientação ao intérprete das normas internas sobre a proteção dessa categoria profissional, especialmente aquelas constantes da novel Emenda Constitucional 72.

Com a recente promulgação da referia Emenda que vem provocando muita polêmica quanto ao verdadeiro alcance, se tenta romper com um triste e histórico processo de injustiça e de discriminação.

Mas apesar disso, já começam a surgir vozes, inclusive no Parlamento, defendendo a inexigibilidade de vários direitos previsto naquela Emenda que necessitariam de regulamentação, e alguns mais afoitos chegam mesmo a advogar a fixação do percentual de apenas 10% para a multa alusiva ao Fundo de Garantia em caso de dispensa imotivada do trabalhador doméstico.

Não parece correto esse posicionamento que, a par de afrontar de forma manifesta ao princípio vedatório da discriminação previsto não apenas no Texto Supremo, mas também em diversas Convenções internacionais das quais o Brasil é signatário, nomeadamente a Convenção 111 da Organização Internacional do Trabalho, que integra o bloco de constitucionalidade4.

Ademais, nenhuma norma infraconstitucional regulamentar de quaisquer dos direitos garantidos por força de Emenda à Constituição poderá reduzi-los, máxime quando se tratar de direitos sociais como aqueles previstos nos arts. 6º e 7º do Texto Maior, sob pena de agressão ao princípio vedatório do retrocesso social.

É preciso, pois, que ao regulamentar a Emenda 72 o legislador infraconstitucional tenha cautela de modo a evitar que a conquista não seja retirada. Mais que isso, torna-se indispensável uma mudança de mentalidade para que se possa romper com a inadmissível visão discriminatória ao doméstico que, como todos os trabalhadores, é dotado de dignidade, direitos e deveres que merecem tutela e respeito.

Como adverte com absoluta razão Jorge Luiz Souto Maior em recente artigo doutrinário5, “é essencial produzir uma racionalidade que possa servir à formulação teórica do sentido da condição humana, integrado a uma lógica sempre evolutiva. O que está em jogo não é simplesmente a possibilidade econômica dos patrões (ou patroas, como se diz) de suportarem os novos direitos das domésticas e sim a nossa capacidade de concebermos raciocínios que forneçam bases à consolidação de uma sociedade efetivamente justa, na qual o respeito à dignidade humana possa ser uma realidade para todos os cidadãos”.

Nesse contexto, precisamos entender, acima de tudo, que a Emenda Constitucional 72 representa o rompimento com um passado histórico de discriminação e de injustiça com essa categoria de trabalhadores que ao longo de séculos esteve à margem das normas de proteção do Direito do Trabalho.

1 Desembargador do TRT da 24ª Região. Mestre em Direito pela UNB. Mestre e doutorando em Direito Social pela UCLM – Espanha.

2 GOMES, Orlado et al. Direito do Trabalho. São Paulo: Forense, 1990, p. 103.

3 LIMA FILHO, Francisco das C. Presidente da República discrimina os trabalhadores domésticos e os aposentados. In: Informativo COAD. Doutrina e Jurisprudência. Brasília: n. 35, Ano XL, 03.09.06, p. 325-326.

4 Aliás, a própria Constituição de 1988 mesmo se dizendo “democrática” e condenando a “quaisquer formas de discriminação” discriminava o trabalhador doméstico ao lhe negar vários direitos garantidos aos demais trabalhadores, equivoco que apenas agora com a Emenda 72 foi corrigido.

5 SOUTO MAIOR, JORGE Luiz. De “pessoa da família” a “diarista”. Domésticas: a luta continua! Inédito.

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Francisco das C. Lima Filho
Francisco das C. Lima Filho
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