A isenção parcial do ICMS e a síndrome de São Tomé

A isenção parcial do ICMS e a síndrome de São Tomé

A jurisprudência tem admitido a figura da isenção parcial para justificar a imposição das Secretarias de Fazenda de determinar o estorno parcial do crédito fiscal de ICMS quando a saída dos produtos tem base de cálculo reduzida do referido imposto, porém tal benefício não encontra amparo na lei.

A jurisprudência tem admitido a figura da isenção parcial para justificar a imposição das Secretarias de Fazenda de determinar o estorno parcial do crédito fiscal de ICMS quando a saída dos produtos tem base de cálculo reduzida do referido imposto.

A medida parece justificável, pois se a saída terá débito parcial a entrada também deve ter. A problemática surge, mais uma vez, na justificativa frágil (eu diria até inexistente) do STF ao definir a jurisprudência.

A Constituição Federal, ao optar pela obrigatoriedade de estorno do crédito, escolheu determinar o estorno apenas para duas hipóteses de saídas sem ICMS: 1) a saída isenta e 2) a saída com a chamada “não-incidência”, benefício fiscal que retira do legislador a faculdade de instituir o imposto nas hipóteses fáticas escolhidas.

Vamos tratar especificamente do caso da erva-mate, produto tradicional no Rio Grande do Sul, que faz parte dos produtos básicos de consumo do gaúcho, e que tem uma indústria forte no estado.

No caso em exame a jurisprudência parece ter encontrado um jeitinho bem brasileiro para solucionar o caso, sem deixar claro onde encontrou o tal critério utilizado.

1. A base de cálculo reduzida

A erva-mate tem base reduzida nas operações internas no RS.

O produto está na relação de produtos que compõe a cesta básica do trabalhador, conforme definido pelo art. 10 da Lei n. 8.820 de 1989 (Lei Básica do ICMS no RS), combinado com a listagem de produtos do Apêndice I da mesma lei. A erva-mate está no item XI do referido Apêndice I.

O Regulamento do ICMS do RS – Decreto 37.699/97, também traz uma lista dos produtos na cesta básica, conforme o seu Apêndice IV.

Porém, o Estado do RS retirou este produto da cesta básica na listagem do Regulamento do ICMS – Decreto n. 37.699/97, através do Decreto n.º 48.840 de 01/02/2012 (com efeitos a partir de 03/02/2012), e criou outra hipótese de base de cálculo reduzida só para a erva-mate, pelo mesmo Decreto n. 48.840 de 2012 (efeitos a partir de 03/02/2012), segue abaixo a nova previsão:

Livro I, art. 23, inciso LX:

LX - os percentuais a seguir indicados, nas saídas internas de erva-mate, inclusive com adição de açúcar, espécies vegetais ou aromas naturais: (Acrescentado pelo art. 1º (Alteração 3593) do Decreto 48.840, de 01/02/12. (DOE 03/02/12) - Efeitos a partir de 03/02/12.)

NOTA - Ver hipótese de exclusão da responsabilidade pelo pagamento do imposto diferido, Livro III, art. 3º, III, "l". (Acrescentado pelo art. 1º (Alteração 3650) do Decreto 49.204, de 11/06/12. (DOE 12/06/12) - Efeitos a partir de 03/02/12.)

a) 41,176% (quarenta e um inteiros e cento e setenta e seis milésimos por cento), quando a alíquota aplicável for 17% (dezessete por cento); (Acrescentado pelo art. 1º (Alteração 3593) do Decreto 48.840, de 01/02/12. (DOE 03/02/12) - Efeitos a partir de 03/02/12.)

b) 58,333% (cinquenta e oito inteiros e trezentos e trinta e três milésimos por cento), quando a alíquota aplicável for 12% (doze por cento). (Acrescentado pelo art. 1º (Alteração 3593) do Decreto 48.840, de 01/02/12. (DOE 03/02/12) - Efeitos a partir de 03/02/12.)

Destarte, mesmo sem manter o produto na cesta básica do RICMS, o estado mantém a base reduzida.

Tudo tem uma razão de ser!

A manutenção da base reduzida, mas a retirada estratégica da relação de produtos da cesta básica do Regulamento tem razão de ser, totalmente de má-fé, mas tem razão, pois toda a discussão judicial sobre o não-estorno se deu em cima dos produtos da cesta básica.

O argumento do contribuinte está calcado no Princípio da Seletividade inerente à cesta básica, que impõe um tratamento diferenciado para produtos essenciais, como é a erva-mate para o consumidor do sul do Brasil.

O que choca neste ponto (e mais uma vez, pois a legislação fiscal é repleta de conteúdo jocoso), é a manutenção na listagem da Lei Básica do RS (Lei n. 8.820 de 1989), pois para alterar a lei é necessária outra e a SEFAZ sabe que tal projeto não passa na Assembleia Legislativa gaúcha, afinal, qual deputado vai querer ficar conhecido como o político que tirou a erva-mate da cesta básica?!

Destarte, a erva-mate está na cesta básica no RS pela Lei 8.820/89, mas não está pelo RICMS – Dec. 37.699/97, acredite!

Não obstante, entendemos que tal fato não altera em nada a discussão.

Vamos ao dia a dia. Na prática ocorre o seguinte: quando o contribuinte (indústria ou comércio) adquire erva-mate dentro do Estado, não há dificuldade uma vez que o produto virá de outra indústria ou comércio com base reduzida e alíquota de 12%, já que no RS a erva-mate tem alíquota interna de 12% conforme Livro I, art. 27, inc. I do RICMS/RS, combinado com o Apêndice I, Seção II, Item XXXIII que refere a lista dos produtos com 12% nas operações internas.

O problema surge nas aquisições de fora do Estado do RS, pois a alíquota do ICMS interestadual aplicável quando o destino é o RS será de 12% (Livro I, art. 26 do RICMS), mas com base de cálculo integral, ou seja, na compra de fora do RS não há base reduzida. Neste ponto surge a controvérsia: pode o contribuinte do RS se creditar de todo o imposto destacado na nota fiscal do fornecedor de fora do RS (12% * base cheia)? Ou deverá fazer o estorno parcial do crédito para chegar na base reduzida da saída interna no RS?

Posta a questão.

2. O estorno do crédito fiscal

A Constituição Federal no seu art. 155, §2º, II, b determina que o aproveitamento da saída com isenção ou com não-incidência do imposto obriga à anulação do crédito pela entrada:

Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:

(...)

II - operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior;

(...)

§ 2.º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte:

I - será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal;

II - a isenção ou não-incidência, salvo determinação em contrário da legislação:

a) não implicará crédito para compensação com o montante devido nas operações ou prestações seguintes;

b) acarretará a anulação do crédito relativo às operações anteriores;

Mas a CF nada refere quanto à base reduzida, ou melhor, a não implicação de crédito quando o produto tiver base de cálculo reduzida. Aliás, nenhuma legislação traz esta previsão, mas o Decreto 37.699/97 – RICMS/RS traz.

Porém, a determinação do estorno acarreta em tributo a recolher, pode a SEFAZ criar tributo por Decreto? (Esta é outra discussão na qual não vamos adentrar neste momento).

Porém, a SEFAZ/RS, amparada na jurisprudência, entende que a base de cálculo reduzida é uma espécie de “isenção parcial”, e assim editou §2º do art. 23 do Livro I do RICMS determinando que, para utilizar o benefício da base reduzida nas operações internas o contribuinte deverá proceder ao estorno parcial do crédito pela entrada, quando a entrada tiver base cheia:

§ 2º - A fruição dos benefícios de redução de base de cálculo previstos neste artigo fica condicionada a não-apropriação proporcional dos créditos fiscais relativos à mercadoria entrada no estabelecimento ou à prestação de serviços a ele feita, para comercialização ou integração em processo de industrialização ou produção rural, quando a saída subsequente da mercadoria ou do produto resultante for beneficiada com a redução;

Seria mais ou menos assim (trago o dia a dia para explicitar o imbróglio):

Compra de R$ 100,00 de erva-mate de SC. Base de cálculo: R$ 100,00. Alíquota do ICMS: 12% (operação interestadual com destino ao RS). ICMS destacado na nota: R$ 12,00.

Para vender dentro com RS com base de 58,333% (redução das operações internas – L. I, art. 23, LX), o contribuinte teria que aplicar esta base na compra: R$ 100,00 * 0,5833 = R$ 58,333 (base com redução) e aplicar a alíquota: R$ 58,333 * 12% = R$ 7,00. O crédito seria de R$ 7,00.

Na venda interna o produto poderia ser vendido por R$ 120,00 (exemplo de margem de lucro do estabelecimento do RS) e calcularia o ICMS da seguinte forma: R$ 120,00 * 0,58333 = R$ 70,00 * 12% = R$ 8,40.

Como a empresa fez o crédito de R$ 7,00, vai recolher R$ 1,40 ao Estado, enquanto que, se fizer o crédito integral que veio na nota de R$ 12,00, terá saldo credor a acumular de R$ 3,60.

Ocorre que, nem a Constituição Federal, nem a Lei Complementar n. 87 de 1996 (Lei Kandir) que regulamente o imposto em âmbito nacional, nem a Constituição Estadual do RS e nem mesmo a Lei Básica do ICMS no RS – Lei n. 8.820 de 1989 autorizam a SEFAZ, através de Decreto a instituir um regramento de oneração do ICMS. “E o Princípio da Legalidade” gritaria um tributarista desavisado!

Esta imposição do estorno parcial por Decreto acaba por ferir os princípios da legalidade, além de atentar contra o art. 155 da Constituição Federal, pois cria imposto a ser recolhido, conforme o exemplo prático acima.

Por esta razão, o Ministro Eros Grau, ao julgar o tema no recurso extraordinário interposto pela Ervateira Vier de Santa Rosa/RS, decidiu pela ilegalidade da determinação do estorno parcial por Decreto, eis a decisão:

DECISÃO: A controvérsia dos autos refere-se acerca da possibilidade ou não da compensação do crédito do ICMS, tendo o contribuinte realizado a opção pela redução de base de cálculo, em conformidade com a Lei 8.820/89 e com o convênio ICMS 38/89.2.Aplica-se ao caso em análise o entendimento firmado nos RE 161031 e 240395, verbis:“ICMS – PRINCÍPIO DA NÃO CUMULATIVIDADE – MERCADORIA USADA – BASE DE INCIDÊNCIA MENOR – PROIBIÇÃO DE CRÉDITO – INCONSTITUCIONALIDADE. Conflita com o princípio da não-cumulatividade norma vedadora da compensação do valor recolhido na operação anterior. O fato de ter-se a diminuição valorativa da base de incidência não autoriza, sob o ângulo constitucional. Os preceitos das alíneas “d” e “e” do Inciso II do § 2º do artigo 155 da Constituição Federal somente tem pertinência em caso de isenção ou não-incidência, no que voltados à totalidade do tributo, institutos inconfundíveis com o benefício em questão.”(RE 161031, Marco Aurélio, Pleno, DJU de 06.06.98) “EMENTA. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. TRIBUTÁRIO. LEI ESTADUAL. REDUÇÃO DA BASE DE CÁLCULO. BENEFÍCIO FISCAL. CRÉDITO. VEDAÇÃO. PRINCÍPIO DA NÃO CUMULÇATIVIDADE. OBSERVÂNCIA. Lei Estadual. Benefício Fiscal outorgado ao contribuinte. Crédito decorrente da redução da base de cálculo do tributo. Vedação. Impossibilidade. A Constituição Federal somente não admite o lançamento do crédito nas hipóteses de isenção ou não incidência. Precedente do Tribunal Pleno. Agravo Regimental não provido”. (RE(AgR) 240395, Maurício Corrêa, 2ª Turma, DJU de 02.08.02)3. Ademais, anoto que a Constituição do Brasil, no que concerne ao ICMS, consagra o principio da não-cumulatividade, devendo o ente federado observar os parâmetros nela inseridos.4. Conforme preceitua o art. 155, § 2º, II, “a”, da Carta da República, somente nos casos de isenção ou não incidência “não implicará crédito para compensação com o montante devido nas operações ou prestações seguintes”, não inserida nesta vedação a hipótese de redução da base de cálculo. Ante o exposto, com base no artigo 21, § 1º, do RISTF, dou provimento ao recurso.

Publique-se

Brasília, 18 de outubro de 2004

Ministro Eros Grau – Relator

Publicado no DJU, de 26/11/2004 – pág. 118

(grifo nosso)

Aqui evocamos a “síndrome de São Tomé”.

Síndrome, por que a dúvida, a obscuridade na legislação fiscal é recorrente.

São Tomé (ou Tomás) foi o discípulo que rogou para que o seu senhor aparecesse e provasse a ressurreição, conforme intepretação do evangelho de João da Bíblia dos católicos. Nossa intenção não é provocar interpretações religiosas ou de textos bíblicos, mas fazer um comparativo com o “só acredito vendo”.

A jurisprudência do TJRS sobre o tema é taxativa: havendo saída com base de cálculo reduzida, é necessário o estorno proporcional do crédito fiscal em razão da “isenção parcial”.

Podemos citar inúmeros julgados: 70028149961, 70016549479, 70013344015, 70013640248, 70013556659, entre vários.

No STJ a inconstitucionalidade do estorno parcial encontra eco na posição do agora Ministro do Supremo Luiz Fux, que quando Ministro do STJ se manifestou várias vezes pela inconstitucionalidade de exigir-se o estorno proporcional se a CF só exige estorno para isenção e não-incidência: REsp 539626 / RS, REsp 615365 / RS, REsp 738254 / RS.

Mas encontramos posicionamentos contrários também no STJ: REsp 343800 / MG, entre outros.

No STF, apesar da decisão acima do Ministro Eros Grau, a jurisprudência majoritária e já consolidada é no sentido do reconhecimento da “isenção parcial” como nos depreendemos dos julgamentos dos recursos extraordinários 174.478, 445.065, 653.688, 584.946, entre outros.

Com relação ao último recurso antes citado (RE 584.946), trouxemos a ementa:

TRIBUTÁRIO. ICMS. BASE DE CÁLCULO REDUZIDA. ISENÇÃO PARCIAL. CRÉDITO PROPORCIONAL. AGRAVO IMPROVIDO.

I - A Corte reformulou seu entendimento quanto à matéria em debate e passou a equiparar a redução da base de cálculo do ICMS à isenção parcial do imposto, para fins de aplicação da vedação ao crédito prevista no art. 155, §2º, II, b, da Constituição Federal (RE 174.478/SP, Redator para o acórdão Min. Cezar Peluso).

II - Ressalvada a existência de legislação dispondo que o crédito será maior, o direito ao crédito de ICMS deverá ser proporcional à base de cálculo reduzida. Precedentes.

III - Agravo regimental improvido.

3. Conclusão

Quando o contribuinte do Rio Grande do Sul adquirir erva-mate de fora do estado com alíquota de 12% e base cheia, não poderá se creditar integralmente do imposto destacado na nota caso utilize a base de cálculo reduzida nas saídas internas do produto, pois o Poder Judiciário, através da sua corte máxima, definiu que incide na espécie a vedação ao creditamento integral por incidir o benefício fiscal da “isenção parcial”, com base no art. 155, §2º, II, b da CF.

Eis o texto do artigo (preciso repeti-lo):

Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:

I - transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens ou direitos;

II - operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior;

III - propriedade de veículos automotores. 

(...)

§ 2.º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte:

I - será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal;

II - a isenção ou não-incidência, salvo determinação em contrário da legislação:

a) não implicará crédito para compensação com o montante devido nas operações ou prestações seguintes;

b) acarretará a anulação do crédito relativo às operações anteriores;

(grifo meu)

Agora, como São Tomé, eu lhes pergunto (jamais querendo me comparar ao nobre discípulo): onde está escrito “isenção parcial” ou base de cálculo reduzida no art. 155, §2º, II, b) da CF?

Será que realmente existe na legislação tributária a figura da “isenção parcial”?

Se em três dias o benefício aparecer, passo a crer!

Sobre o(a) autor(a)
Francisco Laranja
Advogado tributarista, contabilista, pós-graduado em Direito Tributário, professor de Direito Tributário e Contabilidade Fiscal, atuante em Porto Alegre/RS. Fones: 51 3391-8523 / 9999-4481.
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