A constitucionalização do direito e sua influência no Direito Administrativo

A constitucionalização do direito e sua influência no Direito Administrativo

Análise sobre como o advento da Constituição de 1988 mudou os paradigmas do Direito Administrativo. A nova ordem constitucional impõe uma reinterpretação de todos os institutos do Direito Administrativo, à luz dos postulados constitucionais, a fim de que aqueles se adaptem à nova realidade.

O Estado Democrático de Direito representa a convergência entre constitucionalismo e democracia. Por isso, os direitos fundamentais e a democracia se apresentam como os elementos legitimadores e estruturantes do Estado Democrático de Direito, representando uma das maiores conquista políticas da história da humanidade.

A partir do postulado kantiano de que cada homem é um fim em sim mesmo – e a conseqüente reaproximação entre direito e ética – a idéia moral de dignidade da pessoa humana erige-se à condição de princípio jurídico, tornando-se alicerce dos direitos fundamentais. O centro axiológico do sistema jurídico passa a ser a dignidade da pessoa humana, em franca superação da tradicional teoria positivista (Hans Kelsen), que entendia o fenômeno jurídico como fato, e não como valor.

De outro lado, a democracia “consiste em um projeto moral de autogoverno coletivo, que pressupõe cidadãos que sejam não apenas os destinatários, mas também os autores das normas gerais de conduta e das estruturas jurídico-políticas do Estado”.[1] A democracia se funda no princípio da isonomia, do qual decorre o princípio majoritário como técnica de deliberação coletiva. Isso se dá porque o processo democrático, no qual prevalece a vontade da maioria, só é viável numa comunidade onde todas as pessoas são tratadas com igual respeito e dignidade.

É nesse contexto de harmonização entre direitos fundamentais e democracia que surge o Estado Democrático de Direito tal como o concebemos hoje. A Constituição, que outrora era considerada uma mera proclamação retórica de valores e diretrizes políticas, sem caráter vinculativo, hoje é, antes de tudo, verdadeira norma jurídica, que ocupa o topo da pirâmide normativa e decreta os fundamentos sobre os quais o Estado deve se erguer. Não por acaso o Texto Constitucional traz logo no seu artigo primeiro que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamento – dentre outros – a dignidade da pessoa humana.

INTERPRETEÇÃO JURÍDICA COMO SINÔNIMO DE INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL

Com a expansão da jurisdição constitucional, toda interpretação jurídica passa a ser também interpretação constitucional. Todo o ordenamento jurídico deve ser visto através da perspectiva da Constituição, a fim de não entrar em rota de colisão com seus valores e princípios fundamentais. Esse fenômeno é conhecido como filtragem constitucional. Assim, não há dúvidas de que a filtragem constitucional é de observância obrigatória pelo intérprete, que deverá realizar uma reinterpretação dos institutos e postulados de todos os ramos do Direito que não estejam em sintonia com o texto constitucional, do que não pode escapar o Direito Administrativo.

Repise-se: toda interpretação jurídica é também interpretação constitucional. Neste trilho, segundo a lição de Luís Roberto Barroso, aplica-se a Constituição:[2]

“a) Diretamente, quando uma pretensão se fundar em uma norma do próprio texto constitucional. Por exemplo: o pedido de reconhecimento de uma imunidade tributária (CF, art. 150, VI) ou o pedido de nulidade de uma prova obtida por meio ilícito (CF, art. 5º, LVI);

b) Indiretamente, quando uma pretensão se fundar em uma norma infraconstitucional, por duas razões:

(i) antes de aplicar a norma, o intérprete deverá verificar se ela é compatível com a Constituição, porque se não for, não deverá fazê-la incidir. Esta operação está sempre presente no raciocínio do operador do Direito, ainda que não seja por ele explicitada;

(ii) ao aplicar a norma, o intérprete deverá orientar seu sentido e alcance à realização dos fins constitucionais.”

Por conseguinte, a supremacia da Constituição impõe a irradiação de seus princípios e regras pelos institutos do Direito Administrativo, conferindo à Administração Pública uma roupagem constitucional. Toda a atividade administrativa encontrará seu fundamento e seus limites na Carta Magna, de modo que a todo tempo o administrador público trabalhará à luz da vontade constitucional. Não é a toa que o constituinte originário se preocupou em discorrer pormenorizadamente sobre a Administração Pública, levando em consideração o fato de que o país estava saindo de um regime autoritário para enfrentar, com certo nível de imaturidade, um regime democrático. Nada obstante, muitos juristas criticam a forma como a Constituição tratou da Administração Pública, “descendo a minúcias que exibem uma feição corporativa muito mais nítida do que qualquer preocupação garantística”[3]. Certo é que não se pode negar que existiram vários avanços na sua configuração, a exemplo dos princípios constitucionais administrativos elencados no caput do artigo 37 (legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência).

A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO ADMINISTRATIVO

Sob a égide do novo regime jurídico administrativo, o agente público agora se encontra diretamente vinculado à Constituição, restando superada a concepção tradicional de que o agente público só está vinculado à lei. Com a constitucionalização do Direito Administrativo, a Lei Maior tornou-se a principal fonte de interesses públicos, vale dizer, o administrador público agora deve trabalhar, antes de tudo, para realizar a vontade constitucional. Havendo confronto entre um ato normativo constitucional e um ato normativo infraconstitucional, o primeiro deve sempre prevalecer.

Além da reconstrução do princípio da supremacia do interesse público, essa evolução do Direito Administrativo trouxe também outros avanços, como a possibilidade do controle judicial do mérito administrativo nos atos discricionários, que será brevemente analisada em capitulo próprio. Mas o mais importante é constatar que a passagem do Brasil de um regime autoritário para um regime democrático tem sido vitoriosa, apesar das imperfeições. E essas transformações também têm se consagrado pela Administração Pública, que está ultrapassando os costumes tradicionais e se sintonizando com a nova conjuntura. Nas felizes palavras de Gustavo Binembojm:[4]

A passagem da Constituição para o centro do ordenamento jurídico representa a grande força motriz da mudança de paradigmas do direito administrativo na atualidade. A supremacia da Lei Maior propicia a impregnação da atividade administrativa pelos princípios e regras naquela previstos, ensejando uma releitura dos institutos e estruturas da disciplina pela ótica constitucional.

A PERSONALIZAÇÃO DO DIREITO ADMINISTRATIVO

Antes do advento da Constituição de 1988, o Estado Brasileiro ainda não havia se preocupado verdadeiramente com a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais, ou com a implementação de medidas concretas em relação às necessidades básicas do ser humano. A mudança de postura, nessa particular, propiciada pelo Estado Democrático de Direito é chamada por Marçal Justen Filho, no seu Curso de Direito Administrativo, de “personalização do direito administrativo”. Segundo o notável publicista, esse fenômeno:[5]

...propicia reconhecer que a administração pública não é um valor em si mesma. Também aqui a diretriz primeira é a democracia e o respeito aos direitos fundamentais. A atividade administrativa do Estado tem de nortear-se pela realização desses valores, inclusive (e especialmente) quando se trata de interesses de minorias. Não se admite que os titulares do poder político legitimem suas decisões invocando meramente a “conveniência” do interesse público e produzindo, concretamente, o sacrifício do valor fundamental (direitos fundamentais das minorias, por exemplo). O núcleo do direito administrativo não é o poder (e suas conveniências), mas a realização dos direitos fundamentais. Qualquer invocação genérica ao “interesse público” deve ser repudiada como incompatível com o Estado Democrático de Direito.

A personalização do Direito Administrativo revela a impossibilidade de se preterir um direito individual fundamental em favor de um direito coletivo não fundamental. Os direitos fundamentais são, por natureza, direitos de defesa, posições contramajoritárias que não autorizam o agente público a tolher o interesse das minorias sob o pretexto de estar agindo de acordo com a “conveniência pública”. De fato, o interesse de um grande número de indivíduos é, em princípio, digno de supremacia sobre o interesse de um número menor deles, contanto que esse interesse minoritário não possua preferência constitucional (não se pode olvidar que não somente a Constituição, mas também a própria lei pode fazer uma ponderação apriorística entre direitos em conflito). Em suma: o verdadeiro interesse público sempre deve coincidir com o interesse constitucional. Pensar de outra formar seria negar a existência de nosso Estado Democrático de Direito e representaria verdadeiro retrocesso, indo de encontro ao caminho percorrido pela ciência jurídica contemporânea, que tem lutado pela efetivação de um direito administrativo constitucional.

OS PRINCÍPIOS NO DIREITO ADMINISTRATIVO CONSTITUCIONAL

Questão essencial do Direito nos últimos anos residiu na relevância dos princípios jurídicos. Eles deixaram de ser propostas inócuas, sem força vinculante, e passaram a ter inegável caráter normativo. Atualmente, já se pode afirmar com tranquilidade que os princípios ocupam posição hierarquicamente superior às regras, admitindo-se até que estas sejam descumpridas em caso de colidência com aqueles.

Isso se deve ao fato de o princípio refletir uma manifestação axiológica. Os princípios revelam os valores mais importantes de uma sociedade, e que, por isso, servem de base para os direitos fundamentais. Enquanto as regras traduzem soluções concretas e determinadas, assentadas na regra do “tudo ou nada”,[6] os princípios indicam escolhas axiológicas, que podem resultar em diferentes alternativas concretas. Os princípios, na realidade, determinam quais as soluções que não podem ser tomadas no caso concreto, porém não determinam qual dentre as soluções possíveis deve ser adotada. Pelo exposto, pode-se inferir que a função primordial dos princípios consiste em impedir que as soluções sejam contraditórias com os valores nele sacramentados.

Os princípios possuem importância fundamental no Direito Administrativo. Com efeito, em inúmeras oportunidades o agente público irá se deparar com situações em que o Direito não predeterminou qual a conduta a ser utilizada. Isso não implica dizer que o agente terá liberdade para eleger qual a conduta mais adequada, porquanto ele está obrigado a agir em consonância com os princípios norteadores do Direito Administrativo. Os princípios sempre serão o instrumento através do qual o administrador evitará fazer escolhas inadequadas, mesmo quando lhe reste um mínimo de discricionariedade.

Nesse panorama, o princípio da supremacia do interesse público exsurge como vetor principal da atividade administrativa, que guiará o administrador no exercício do seu “dever-poder”. Qualquer ato emanado da Administração Pública que vá de encontro ao interesse público primário estará maculado pelo desvio de finalidade, devendo ser imediatamente anulado (retirado do ordenamento jurídico).

Atente-se para o fato de que a finalidade, um dos requisitos dos atos administrativos, também se vincula intimamente ao princípio da impessoalidade, expresso no caput do art. 37 da Constituição. É possível até aferir a existência de um princípio administrativo da finalidade implícito no texto constitucional, que seria nada mais que um dos desdobramentos do princípio expresso da impessoalidade. Ambos – finalidade e impessoalidade – estabelecem a exigência de que toda e qualquer atuação dos agentes públicos vise exclusivamente à tutela do interesse público, decorrente das disposições das regras e dos princípios, e não de suas opiniões ou conveniências.

CONCLUSÃO

1) O Estado Democrático de Direito surge devido à ascensão da Lei Maior ao centro do ordenamento jurídico, fato que impõe a conformação de todas as normas infraconstitucionais com os postulados constitucionais. Toda interpretação jurídica passa a ser também interpretação constitucional.

2) Com a consagração dos direitos fundamentais no epicentro axiológico da Carta Política, o Direito Administrativo sofre um processo de personalização, que consiste na impossibilidade de se preterir um direito individual fundamental em favor de um interesse coletivo não amparado constitucionalmente.

3) Os princípios jurídicos também passaram a ostentar caráter normativo, desempenhando papel fundamental no exercício da atividade administrativa. Com efeito, em inúmeras oportunidades o agente público irá se deparar com situações em que o Direito não predeterminou qual a conduta a ser utilizada, oportunidade em que deverá pautar sua conduta na observância dos princípios previstos no sistema jurídico, especialmente do princípio da supremacia do interesse público (primário). Como consectário, o agente não terá total liberdade para eleger qual a conduta mais adequada, porquanto ele está obrigado a agir em consonância com os princípios norteadores do Direito Administrativo.

REFERÊNCIAS

ÁVILA, Humberto. Interesses Públicos versus Interesses Privados: Desconstruindo o Princípio da Supremacia do Interesse Público. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2007.

BARROSO, Luís Roberto. Prefácio à obra Interesses Públicos versus Interesses Privados: Desconstruindo o Princípio da Supremacia do Interesse Público. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2007.

BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 1996.

BINEMBOJM, Gustavo. Interesses Públicos versus Interesses Privados: Desconstruindo o Princípio da Supremacia do Interesse Público. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2007.

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2001.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 10. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 16. ed. São Paulo: Atlas, 2003.

DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de Direito Administrativo. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1995.

FREITAS, Juarez. O Controle Dos Atos Administrativos e os Princípios Fundamentais. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2004.

JUSTEN FILHO, Marçal. Conceito de Interesse Público e a “Personalização” do Direito Administrativo. Revista Trimestral de Direito Público 26/1999, São Paulo: Malheiros, p. 115-136.

JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 17. ed. São Paulo: Malheiros, 2004

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional Administrativo. Ed. Atlas, 1ª edição. 2002.

SCHIER, Paulo Ricardo. Interesses Públicos versus Interesses Privados: Desconstruindo o Princípio da Supremacia do Interesse Público. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2007.

 [1]  BINEMBOJM, Gustavo. Uma Teoria do Direito Administrativo. Direitos Fundamentais, Democracia e Constitucionalização. 2006, p. 50.

 [2]  BARROSO, Luís Roberto, Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito (O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil).

[3]  BINEMBOJM, Gustavo. Uma Teoria do Direito Administrativo. Direitos Fundamentais, Democracia e Constitucionalização, 2006, p. 70.

[4]  BINEMBOJM, Gustavo. Uma Teoria do Direito Administrativo. Direitos Fundamentais, Democracia e Constitucionalização. 2006, p. 69.

[5]  JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 2006, p. 47.

[6] DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. 2000.

Sobre o(a) autor(a)
Carlos Roberto Silva Junior
Formado em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Servidor Público Federal em atuação na função de Oficial de Gabinete de Juiz Federal. Especialista em Direito Público pelo JusPODIVM.
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