A efetividade do princípio da dignidade da pessoa humana nas relações de trabalho

A efetividade do princípio da dignidade da pessoa humana nas relações de trabalho

Estudo acerca da possibilidade de se aplicar o princípio da dignidade da pessoa humana como forma de sanar as lacunas da lei e proteger o trabalhador em situações que carecem de regulamentação específica sobre a matéria, como é o caso do trabalho penoso.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O Direito do Trabalho, nas palavras da professora Maria do Rosário Palma Ramalho, “é usualmente qualificado como um dos mais jovens – e, para muitos, ainda imaturo – ramos jurídicos, sobretudo se comparado com a tradição milenar das áreas clássicas do direito privado. A sua origem é quase unanimemente fixada pela doutrina no final do século XIX e é corrente a sua caracterização como produto da Revolução Industrial e da massificação de processo produtivos que lhe correspondeu”[1].

O Direito do Trabalho surge na história como uma ciência jurídica que tem como objetivo primordial regular e proteger os interesses do trabalhador, sendo certo que o trabalho, dada sua característica de subsistência, torna-se, por excelência, o objeto de maior preocupação de tal ciência.

O objetivo do Direito do Trabalho “é a relação de trabalho clássica, com origem em um contrato livremente celebrado por sujeitos de direito postos em pé de igualdade formal. A debilidade econômico-social do trabalho é compensada por uma superioridade jurídica emergente de uma rede de proteção legislativa tão completa quanto possível, cuja violação enseja o rápido restabelecimento pela enérgica ação da Justiça do Trabalho, sempre pronta a estender o seu manto protetor sobre o desvalido social”[2].

Por óbvio, a função central do Direito do Trabalho, que é a melhoria das condições sociais do trabalhador, não pode ser apreendida sob uma ótica meramente individualista, mas sim através da adoção de princípios fundamentais e normas jurídicas gerais que norteiam todo o contexto do universo jurídico contemporâneo.

No entanto, exatamente por ser um ramo novo, o Direito do Trabalho possui inúmeras situações previstas, mas que carecem de regulamentação específica. Cite-se como exemplo o trabalho penoso, cujo adicional encontra-se previsto no artigo 7º, inciso XXIII, da CF como sendo um direito do trabalhador à melhoria de sua condição social, mas que carece de regulamentação ordinária no que se refere às hipóteses de caracterização, base de cálculo e percentagem. Ou ainda, cite-se o exemplo da proteção contra a despedida arbitrária ou sem justa causa previsto no artigo 7º, inciso I, da CF, cuja indenização compensatória aguarda, até o presente momento, lei complementar que disponha sobre o assunto.

O que fazer em casos como este? Será possível atribuir aos trabalhadores direitos sociais que visem à melhoria da sua condição social, mas que ainda dependam de regulamentação específica?

É o que veremos a seguir.

1 – PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Do ponto de vista jurídico, os princípios constituem formulações genéricas, de caráter normativo, destinadas não apenas a tornar logicamente compreensível a ordem jurídica e a justificar ideologicamente essa mesma ordem, mas, também, a servir como fundamento para a interpretação ou para a própria criação de normas legais[3].

Em outras palavras, princípio é o alicerce de determinada ciência, é a estrutura sobre a qual a ciência é criada e se desenvolve. É onde os sistemas jurídicos encontram coerência e é sobre eles que se organizam (Carla Teresa Martins Romar, 2008, p. 4).

O princípio da dignidade da pessoa humana está previsto na Constituição Federal de 1988, em seu art. 1º, inciso III, que dentro outros fundamentos (soberania, cidadania, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e pluralismo político), declaram-no como sendo um princípio fundamental.

Como princípio fundamental, o princípio da dignidade da pessoa humana é e deve ser considerado como princípio supremo de que todos os demais princípios derivam e que norteia todas as regras jurídicas.

Mas, qual o significado do termo “dignidade da pessoa humana”? O que é ser digno? O que é viver com dignidade nos dias de hoje?

Estabelecer os contornos para o conceito de dignidade da pessoa humana não é tarefa fácil, haja vista que envolve valores intrínsecos de cada ser humano.

Enquanto na antiguidade clássica a dignidade da pessoa humana tinha relação com a posição social do indivíduo dentro da sociedade, atualmente a dignidade da pessoa humana está relacionada a moral e a ética, valores que não podem ser quantificados e nem objetos de renúncia, posto que fazem parte da própria natureza humana.

Kant concebe a dignidade da pessoa como parte da autonomia ética e da natureza racional do ser humano. Para ele, o homem existe como um fim em si mesmo e, portanto, não pode ser tratado como objeto[4].

No mesmo sentido, Oscar Vilhena Vieira, defende que: “o papel fundamental da razão é habilitar o ser humano a construir parâmetros morais, como a concepção de que as pessoas devem ser tratadas com dignidade pelo simples fato de serem pessoas; de que não podem ser tratadas como meios ou meros instrumentos na realização de nossos desejos, mas que têm desejos e anseios próprios, que devem ser respeitados”[5].

Sob tal aspecto, tem-se que “o ser humano não pode ser tratado como objeto. É o sujeito de toda a relação social e nunca pode ser sacrificada em homenagem a alguma necessidade circunstancial ou, mesmo, a propósito da realização de fins últimos de outros seres humanos ou de uma coletividade indeterminada. Ressalta, ainda, que o fim primeiro e último do poder político é o ser humano, ente supremo sobre todas as circunstâncias. Não há valor que possa equiparar-se ou sobrepor-se à pessoa humana, que é reconhecida como integridade, abrangendo aspectos físicos como também seus aspectos imateriais”. (In: Justen Filho, Marçal. Conceito de interesse público e a personalização do direito administrativo. Revista Trimestral de Direito Público, São Paulo, n° 26, 1999, p. 125)[6].

Por ser um valor tão supremo, a dignidade humana necessita de proteção do Estado que, através de seus poderes de atuação, deve criar mecanismos para a sua promoção e inclusão social.

Nessa linha de idéias, o princípio da dignidade da pessoa humana serve como fundamento para todos os tipos de relações jurídicas, inclusive para as relações que se desenvolvem na esfera laboral.

2 – A EFETIVIDADE DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NAS RELAÇÕES DE TRABALHO

O contrato de trabalho possui natureza jurídica e características próprias, o que o torna tão diverso das demais espécies de contratos, a ponto de merecer um ramo do direito especializado na sua regulamentação.

A especificidade das relações de trabalho se verifica na ocorrência de 02 (duas) obrigações recíprocas: de um lado a obrigação do empregado, que tem por objeto a prestação de serviços e, de outro, a obrigação do empregador, que se perfaz no pagamento da remuneração.

O trabalho é a prestação; o salário, a contraprestação.

A vida depende do trabalho. O trabalhador depende do trabalho para sobreviver e ter uma existência digna. Dessa forma, sem o trabalho não há dignidade.

Sem perder de vista a importância do trabalho para a vida humana, o fato é que, conforme já comentado, o Direito do Trabalho é um ramo novo do Direito e, por essa razão, possui várias situações que carecem de regulamentação. O mais grave é que em muitas destas situações o que falta é exatamente a regulamentação de normas destinadas a proteger à vida do trabalhador.

Em virtude disso, é que o princípio da dignidade da pessoa humana pode e deve ser aplicado no âmbito da relação laboral não só para suprir as lacunas da lei, mas também como forma de proteger o trabalhador contra atos que afrontem sua integridade e dignidade, de forma a lhe garantir condições laborais saudáveis e dignas.

Neste momento, o desafio maior é identificar em cada situação carecedora de regulamentação, se o direito ali tratado advém de um direito fundamental ou não, para que possamos atrelá-lo ao princípio da dignidade da pessoa humana.

Tomando por base os exemplos citados (trabalho penoso e indenização por dispensa arbitrária e sem justa causa), entendemos que, por estarem previstos no artigo 7º, da Constituição Federal, no Capítulo dos Direitos Sociais e Título dos Direitos e Garantias Fundamentais, tais direitos repousam na idéia de dignidade da pessoa humana.

Nesse sentido, Scarlet afirma que “os direitos e garantias fundamentais podem, com efeito, ainda que de modo e intensidades variáveis, ser reconduzidos de alguma forma à noção de dignidade da pessoa humana, já que todos remontam à idéia de proteção e desenvolvimento das pessoas, de todas as pessoas”[7].

O mesmo autor ressalva a necessidade de cautela, pois tudo o que consta do texto constitucional pode ser reconduzido ao princípio/valor da dignidade da pessoa com algum esforço argumentativo. Contudo, não é assim que o princípio deve ser visto e interpretado, porque, se assim fosse, toda e qualquer posição jurídica estranha ao catálogo poderia ser guindada à condição de direito fundamental, o que viria a esvaziar a própria noção de dignidade da pessoa humana[8].

Entendemos, portanto, que em casos como estes se faz necessária a análise de cada caso concreto.

3 – CONCLUSÃO – UMA PONDERAÇÃO PRÁTICA

Tomemos como exemplo o trabalhador responsável pela limpeza e drenagem das estradas de rodagem, os cortadores de cana-de-açúcar e os carteiros que, a nosso ver, são submetidos à condições de penosidade, posto que expostos a condições climáticas adversas, o que acarreta um grande esforço e desgaste acentuado.

Considerando o próprio conceito advindo do termo “penoso” que significa tudo aquilo que causa dor, dificuldades, que incomoda; considerando “as atividades penosas” como sendo aquelas que submetem o empregado a um desgaste físico maior, seja em decorrência do emprego de intensa força física, seja pela continuidade do trabalho que, nas condições peculiares de sua prestação, traz maior cansaço, dor e sofrimento; considerando a previsão contida no artigo 7°, inciso XXIII, da Constituição Federal, de que o adicional de penosidade define-se como sendo “o pagamento acrescido à remuneração ou ao salário do empregado para indenizar-lhe a prestação do trabalho em condições pessoalmente nocivas ao seu organismo ou à sua integridade física, não enquadrada no conceito legal de insalubridade ou periculosidade”[9]; tal direito, a nosso ver, constitui como direito fundamental e como tal deve ter a proteção que merece.

Porém, considerando a ausência de regulamentação específica sobre a matéria; mas, por outro lado, considerando a efetividade dos direitos fundamentais (princípio da dignidade da pessoa humana) nas relações de trabalho; considerando a previsão contida no artigo 8°, parágrafo único, da CLT, de que o direito comum será fonte subsidiária do direito do trabalho naquilo que não for incompatível com os princípios fundamentais deste; considerando que o Código Civil em seus artigos 186 e 927 determinam que aquele que causar dano a outrem fica obrigado a repará-lo; em síntese, a ausência de regulamentação neste tocante não pode servir como fato impeditivo para proteção de tais trabalhadores.

Forçoso concluir, portanto, que o empregador que submete o seu empregado a condições penosas no ambiente de trabalho pode e deve ser responsabilizado, até como medida de coibição e ressarcimento para novas práticas.

Soma-se a isto, o fato de que o próprio legislador constitucional previu o adicional de penosidade como um direito à melhoria das condições do trabalhador (art. 7º, inciso XXIII). E, por ser um direito social e previsto no rol das garantias e direitos fundamentais (e que tem como princípio basilar o princípio da dignidade da pessoa humana), o aplicador da lei poderá buscar, diante do caso concreto, com fundamento no princípio da dignidade da pessoa humana outorgar algum tipo de proteção a tais trabalhadores.

Resta claro, portanto, que mesmo diante da ausência de norma legal neste sentido para sua concretização prática, é possível precisar-lhe a natureza de adicional de risco, que o alinha com os de insalubridade e periculosidade e o paraleliza aos adicionais de dano (por horas extraordinárias, trabalho noturno e transferência), com os quais está identificado pela função ressarcitiva e distinguido quanto à natureza do fato gerado do pagamento[10]. É neste ponto que se verifica o elemento fático para a caracterização da responsabilidade do empregador.

Todavia, em que pese a efetividade do princípio da dignidade da pessoa humana nas relações de trabalho com possibilidade, inclusive hábil a ensejar a responsabilização por danos morais do empregador que submete seu empregado ao labor em condições de penosidade, a questão que se coloca em discussão recai também sobre os parâmetros para a caracterização das “atividades penosas” e, ainda, sobre os limites de fixação e base de cálculo desta indenização (deverá o Julgador fixar a indenização com base nos percentuais regulamentados por lei ou deverá fixar a indenização com base nas condições das partes, de tal forma a coibir novas práticas pelo empregador e impedir o enriquecimento sem causa do empregado).

  É neste pressuposto que, humildemente, a proposta deste trabalho de pesquisa defende a necessidade de uma efetiva regulação de determinados tratamentos em relação aos trabalhadores, perpetrada por meio de uma atuação cuidadosa do Poder Legislativo Pátrio, fielmente embasado na realidade nacional das relações de emprego e na humanização das relações no mundo do trabalho.

BIBLIOGRAFIA

AMARAL, Júlio Ricardo de Paula. Eficácia dos Direitos Fundamentais nas Relações Trabalhistas. 1ª edição. São Paulo: LTr, 2007.

ESPADA, Cinthia Maria da Fonseca. O princípio protetor do empregado e a efetividade da dignidade da pessoa humana. São Paulo: Ed. LTr, 2008.

FILHO, Manoel Antonio Teixeira. Princípios Constitucionais do Processo do Trabalho. Ed. LTr. São Paulo, 1998.

RAMALHO, Maria do Rosário Palma. Da Autonomia Dogmática do Direito do Trabalho. 1ª ed. Coimbra: Almedina.

RODRIGUES PINTO, José Augusto e PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Repertórios de Conceitos Trabalhistas. São Paulo. Ed. LTr. 2000.

ROMITA, ArionSayão. A Terceirização e o Direito do Trabalho –in Revista LTR, vol. 56, nº 03, março de 1992.

SCARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Livraria dos Advogados: Porto Alegre, 2002.

VIEIRA, Oscar Vilhena. Direitos Fundamentais. Uma leitura da jurisprudência do STF. São Paulo: Ed. Malheiros, 2006.

[1] RAMALHO, Maria do Rosário Palma. Da Autonomia Dogmática do Direito do Trabalho. 1ª ed. Coimbra: Almedina, p. 2.

[2] ROMITA, ArionSayão. A Terceirização e o Direito do Trabalho –in Revista LTR, vol. 56, nº 03, março de 1992, p. 275.

[3] FILHO, Manoel Antonio Teixeira. Princípios Constitucionais do Processo do Trabalho. Ed. LTr. São Paulo, 1998. p. 5.

[4] ESPADA, Cinthia Maria da Fonseca. O princípio protetor do empregado e a efetividade da dignidade da pessoa humana. São Paulo: Ed. LTr, 2008. p. 93.

[5] VIEIRA, Oscar Vilhena. Direitos Fundamentais. Uma leitura da jurisprudência do STF. São Paulo: Ed. Malheiros, 2006. p. 67.

[6]AMARAL, Júlio Ricardo de Paula. Eficácia dos Direitos Fundamentais nas Relações Trabalhistas. 1ª edição. São Paulo: LTr, 2007. 26.

[7] SCARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Livraria dos Advogados: Porto Alegre, 2002. p. 84.

[8] ESPADA, Cinthia Maria da Fonseca. O princípio protetor do empregado e a efetividade da dignidade da pessoa humana. São Paulo: Ed. LTr, 2008. p. 101.

[9] RODRIGUES PINTO, José Augusto e PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Repertórios de Conceitos Trabalhistas. São Paulo. Ed. LTr. 2000. Vol. I. p. 50.

[10] RODRIGUES PINTO, José Augusto e PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Repertórios de Conceitos Trabalhistas. São Paulo. Ed. LTr. 2000. Vol. I. p. 51.

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Maira Ceschin Nicolau
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