A dignidade da pessoa humana como fundamento de relativização do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado

A dignidade da pessoa humana como fundamento de relativização do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado

A tutela da dignidade da pessoa humana ganhou relevante reconhecimento na órbita internacional após a Segunda Guerra Mundial. Após esse fato, os ordenamentos jurídicos internos passaram a contemplar esse vetor interpretativo em seus textos.

A tutela da dignidade da pessoa humana ganhou relevante reconhecimento no Direito Internacional dos Direitos Humanos após a Segunda Guerra Mundial e, especialmente, após as atrocidades ocorridas durante o Nazismo, onde foram mortas, cruelmente, milhares de pessoas.

Diante disso, os ordenamentos jurídicos internos passaram a contemplar esse valor já reconhecido na órbita internacional, principalmente, nos documentos internacionais.

Seguindo essa nova linha de analisar não somente a pessoa como mero objeto, mas sim como sujeito de direitos, o nosso texto Constitucional contemplou a tutela da dignidade da pessoa humana não apenas como um princípio ou direito fundamental, mas sim como um fundamento da República Federativa do Brasil, conformeo seu artigo 1°, inciso III.

Insta consignar que há quem defina o fundamento da dignidade da pessoa humana como superprincípio ou supraprincípio[1] ou, ainda, vetor máximo de interpretação.

É importante registrar que a nossa Constituição Federal de 1988 apresenta, já no início do seu texto, os valores fundamentais que deverão ser observados para a aplicação e interpretação das demais normas constitucionais. Assim, temos que a Carta Maior não mais contemplou como tema inicial divisões orgânicas administrativas, mas sim uma sistemática de valores inerentes à pessoa humana que devem nortear a aplicação das suas normas, como a busca pela cidadania, valores do trabalho e da livre iniciativa e a dignidade da pessoa humana.

De acordo com a teoria de Robert Alexy[2] e com o neopositivismo, as normas se subdividem em regras e princípios, sendo os conflitos entre as regras solucionados no campo da validade e os conflitos entre os princípios no campo da valoração, nos termos dos critérios apresentados por Norberto Bobbio[3] para a solução das antinomias solúveis, sejam elas próprias ou impróprias.

Portanto, o Poder Constituinte tratou a dignidade da pessoa humana como vetor de interpretação de todo o texto Constitucional, sendo assim, esse fundamento deve ter maior carga na ponderação entre valores.

Sobre o tema, cumpre ressaltar que não há hierarquia entre normas constitucionais e, sequer, inconstitucionalidade entre normas oriundas do Poder Constituinte Originário. Dessa forma, o texto Constitucional admite diversas interpretações, principalmente por termos um grande número de dispositivos, já que a nossa Constituição Federal é classificada como analítica ou prolixa[4]. Contudo, é inquestionável que o aplicador do direito deve se pautar sempre pela busca da unidade do seu texto, a fim de evitar interpretações contraditórias.

Ocorre que, diante dessa nova visão Constitucional, a pessoa humana e, por consequência, a sua dignidade, não pode ser reduzida. No entanto, de acordo com a técnica da ponderação, diante do caso concreto, é possível que determinado valor seja relativizado, haja vista que nenhum direito é absoluto.

Diante desse contexto, a dignidade da pessoa humana, como fundamento da República Federativa do Brasil, exige que todos os ramos do Direito, para aqueles que acreditam que ainda existe essa divisão, seja ele público ou privado, sejam analisados ou revistos com um enfoque constitucional, partindo desse valor para todos os outros princípios fundamentais.

Foi isso que ocorreu com o Direito Civil. Com o advento do Código Civil de 2002, os civilistas analisaram esse ramo do Direito sob o prisma de um Direito Civil Constitucional, solucionando todas as questões, ainda que privadas, à luz de nossas normas constitucionais. Neste sentido, o doutrinador Paulo Luiz Netto Lôbo esclarece[5]:

Na atualidade, não se cuida de buscar a demarcação dos espaços distintos e até contrapostos. Antes havia uma disjunção: hoje, a unidade hermenêutica, tendo a Constituição como ápice conformador da elaboração e aplicação da legislação civil. A mudança de atitude é substancial: deve o jurista interpretar o Código Civil segundo a Constituição e não a Constituição segundo o Código, como ocorria com frequência (e ainda ocorre). A mudança de atitude também envolve certa dose de humildade epistemológica.

Em conclusão sobre o tema, cumpre transcrever a lição de Flávio Tartuce[6]:

E, sendo assim, Direito Constitucional e Direito Civil são interpretados dentro de um todo e não isoladamente. Há, assim, não uma invasão do Direito Constitucional sobre o Civil, mas sim uma interpretação simbiótica entre eles, funcionando ambos para melhor servir o todo Estado + Sociedade, dando as garantias para o desenvolvimento social, econômico e político, mas respeitadas determinadas premissas que nos identificam como seres coletivos.

Por conseguinte, como fruto dessa unidade interpretativa, temos o surgimento de um Direito Civil voltado aos princípios da eticidade, da operabilidade e da socialidade, abandonando a sua antiga visão patrimonialista e egoística.

Com base no aqui exposto, necessário se faz analisar o Direito Administrativo sob o enfoque Constitucional, contudo, o tema é demasiadamente extenso o que não seria possível esgotá-lo apenas neste artigo.

Esse ramo do Direito tem como pilar dois princípios, quais sejam: a supremacia do interesse público sobre o privado e a indisponibilidade do interesse público. Analisaremos neste trabalho apenas a supremacia do interesse público sobre o privado e a sua relativização frente à dignidade da pessoa humana.

Inicialmente, insta consignar que o interesse público que se sobrepõe ao privado, segundo a doutrina de Fernando Ferreira Baltar Neto e Ronny Charles Lopes de Torres[7], trata-se apenas do interesse público primário, reconhecido como o interesse da coletividade, visto que o interesse público secundário, interesse do Estado enquanto sujeito de direitos, não possui supremacia alguma em relação ao interesse privado.

Essa supremacia do interesse público sobre o privado deve existir para que o Estado atinja os fins buscados pelo Direito Administrativo, isto é, a satisfação do interesse público e de toda a coletividade.Ocorre que, essa supremacia não pode ser usada sem freios, ou seja, calcada apenas na prevalência do interesse público sobre o privado, mas deve encontrar como limite o fundamento da dignidade da pessoa humana, uma vez que não há como o Estado atender os anseios e necessidades da coletividade sem antes assegurar a tutela da dignidade da pessoa humana.

Ademais, com o surgimento do neoconstitucionalismo, embasado na ideia de que a Constituição não pode ser apenas um instrumento que limita o Poder Estatal, separa os poderes e concede direitos fundamentais, mas que deve conceder maior efetividade a esses direitos, cria-se uma nova hermenêutica constitucional que amplia a jurisdição constitucional, ou seja, garante o acesso ao Poder Judiciário para a concretização desses direitos, conforme o princípio da máxima efetividade das normas constitucionais.

Atualmente, como exemplo dessa relativização da supremacia do interesse público, temos o instituto da concessão especial de uso para fins de moradia, instituída pela Medida Provisória 2.220/2001, que assegura a ocupação de bens públicos em favor dos particulares menos favorecidos economicamente, concretizando a vertente da dignidade da pessoa humana.

Por meio deste mecanismo, o Estado flexibiliza a ideia de que os bens públicos são “intocáveis” pela coletividade, e, embora continue impedindo a sua aquisição por meio da usucapião, assegura o direito fundamental à moradia àqueles que preencham os requisitos legais. Sobre o tema, Flávio Tartuce explica[8]:

Pelo que consta da MP, fica a dúvida: porque não se trata de usucapião? A resposta é simples: porque o imóvel público não pode ser objeto de usucapião, nos termos da Constituição Federal e do Código Civil. De qualquer forma, a MP cria um ônus real sobre o bem público, qual seja a concessão de uso. O instituto acaba sendo um caminho para a regularização de áreas públicas invadidas por favelas.

Ademais, temos a concessão de medicamentos e tratamentos pelo Poder Judiciário[9], ainda que de alto custo, efetivando-se assim o direito à saúde, que compõe o mínimo existencial, ainda que tal medida ocasione enormes custos ao Estado, restando claro a efetivação da dignidade da pessoa humana em detrimento de toda a coletividade.

Recentemente, o Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por meio do desembargador Luiz Sérgio de Souza[10], aplicou essa nova visão:

MANDADO DE SEGURANÇA - Pedido de licença para o exercício da atividade de mototaxista. Lei Municipal nº 8.802/02, que estabelece como condição para a prestação do serviço de mototáxi a inexistência de antecedentes criminais por parte do permissionário. Consideração dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da valorização da dimensão social do trabalho e da construção de uma sociedade justa e solidária em nome dos quais se há de conceder oportunidade de trabalho à pessoa condenada criminalmente - Princípio da supremacia do interesse público sobre o particular interpretado à luz do princípio da dignidade humana. Recurso provido.

Posto isso, temos que a dignidade da pessoa humana trata-se de um fundamento da República Federativa do Brasil que deve remodelar nosso ordenamento jurídico e, por consequência, relativizar um dos pilares do Direito Administrativo, qual seja, a supremacia do interesse público primário sobre o privado, efetivando-se assim, uma personalização desse ramo do direito.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BALTAR NETO, Fernando Ferreira; TORRES, Ronny Charles Lopes de; GARCIA, Leonardo de Medeiros (Coord.). Coleção Sinopse para Concurso. Vol. 9. Salvador: JusPODIVM, 2011.

BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento. São Paulo: Edipro, 2011.

LOBO, Paulo Luiz Netto. Teoria geral das obrigações. São Paulo: Saraiva, 2005.

NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. São Paulo: Método, 2010.

TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Lei de introdução e parte geral. Vol. 1. 6 ed. São Paulo: Método, 2010.

[1] TRT 23ª Região - RO 2026201003623007 - 1ª Turma. Rel. Desembargador Edson Bueno - D.J 05.07.2011.

[2] NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. São Paulo: Método, 2010, p. 36.

[3] BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento. São Paulo: Edipro, 2011.

[4] Temos esta classificação já que a Constituição Federal de 1988 dispõe sobre as mais diversas matérias em seu corpo, abrangendo temas que poderiam ser objeto de leis infraconstitucionais.

[5] LOBO, Paulo Luiz Netto. Teoria geral das obrigações. São Paulo: Saraiva, 2005, p.2.

[6]Tartuce, Flávio. Direito Civil: Lei de introdução e parte geral. Vol. 1. 6 ed. São Paulo: Método, 2010, p. 122.

[7]BALTAR NETO, Fernando Ferreira;TORRES, Ronny Charles Lopes de; GARCIA, Leonardo de Medeiros (Coord.).Coleção Sinopse para Concurso. Vol. 9. Salvador: JusPODIVM, 2011.

[8] Op. cit., p. 387.

[9]TJSP - AGR 5625555020108260000 - 10ª Câmara de Direito Público. Rel. Desembargadora Teresa Ramos Marques – D.J 14.03.2011.

[10] TJSP – APELAÇÃO 449108720108260576 - 7ª Câmara de Direito Público. Rel. Desembargador Luiz Sérgio de Souza – D.J 05.09.2011.

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Júlio César Valese
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