O porte de arma de fogo desmuniciada

O porte de arma de fogo desmuniciada

O assunto, sem dúvida, vem sendo alvo de debates no mundo jurídico, uma vez que uma arma sem capacidade de realização de disparos não opõe risco penalmente ofensivo à sociedade, sendo certo que uma condenação sob a égide da incerteza da lesão ou do potencial de lesão da conduta.

O presente estudo tem por escopo uma revisão sucinta acerca dos questionamentos que permeiam a punição do agente pelo crime de porte ilegal de arma desmuniciada.

De acordo com o artigo 14, da Lei nº. 10.826/03, o crime de porte ilegal de arma de fogo, pune aquele que portar, deter, adquirir, receber, ter em depósito, transportar, ceder, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, sem a autorização e em desacordo com determinação legal regulamentar.

Desta forma, podemos afirmar que pela exegese legal que o fato de que o fato de portar arma desmuniciada também constitui crime, porquanto trata-se de um crime de perigo abstrato, onde não há a necessidade efetiva de ocorrer uma lesão ao bem jurídico tutelado, bastando, para tanto, a potencialidade de uma lesão inerente a conduta perpetrada pelo agente.

O assunto, sem dúvida, vem sendo alvo de debates no mundo jurídico, uma vez que uma arma sem capacidade de realização de disparos não opõe risco penalmente ofensivo à sociedade, sendo certo que uma condenação sob a égide da incerteza da lesão ou do potencial de lesão de uma conduta acarreta em violação ao princípio da ofensividade.

Por óbvio, é certo que se uma arma está desprovida de munição, certamente não contém qualquer potencialidade lesiva, haja vista que nos chamados “crimes de posse”, a constatação da idoneidade do objeto possuído é necessária, sob pena de ser considerada inoperável, certamente por não representar qualquer lesão ou perigo efetivo à objetividade jurídica.

Comungando desse entendimento, Fernando Capez elucida que “a arma de fogo sem potencialidade lesiva, ou seja, absolutamente ineficaz para detonar projéteis, não pode ser considerada como arma, para configurar a elementar do tipo[1]”. No mesmo norte, assevera Damásio de Jesus que “desmuniciada a arma, inexiste tipicidade do fato, pois não há afetação ao bem jurídico, quer na forma de lesão efetiva ou potencial. Diante da lei penal, trata-se de crime impossível: o meio é inidôneo para lesão à objetividade jurídica[2]”.

O Supremo Tribunal Federal já posicionou-se anteriormente no sentido de que o porte de arma desmuniciada não pode ser considerado crime, em obediência ao Princípio da Ofensividade, também conhecido como princípio do fato ou da exclusiva proteção de bem jurídico, consagrado pela Constituição Federal, tendo decidido anteriormente que em caso de arma de fogo desmuniciada, e não houvendo nenhum projétil ao alcance do seu portador, não haverá crime, sendo a conduta atípica, conforme RHC nº 81057:

“ATIPICIDADE, CONDUTA, PORTE, ARMA DE FOGO, AUSÊNCIA, MUNIÇÃO ADEQUADA, PROXIMIDADE, AGENTE, INDISPONIBILIDADE, ARMA. AUSÊNCIA, POTENCIALIDADE, LESÃO, BEM JURÍDICO, INCOLUMIDADE PÚBLICA. EMENTA: Arma de fogo: porte de arma de fogo, no entanto, desmuniciada e sem que o agente tivesse, nas circunstâncias, a pronta disponibilidade de munição: inteligência do art. 10 da L. 9437/97: atipicidade do fato: 1. Para a teoria moderna - que dá realce primacial aos princípios da necessidade da incriminação e da lesividade do fato criminoso - o cuidar-se de crime de mera conduta - no sentido de não se exigir à sua configuração um resultado material exterior à ação - não implica admitir sua existência independentemente de lesão efetiva ou potencial ao bem jurídico tutelado pela incriminação da hipótese de fato. 2. É raciocínio que se funda em axiomas da moderna teoria geral do Direito Penal; para o seu acolhimento, convém frisar, não é necessário, de logo, acatar a tese mais radical que erige à exigência da ofensividade a limitação de raiz constitucional ao legislador, de forma a proscrever a legitimidade da criação por lei de crimes de perigo abstrato ou presumido: basta, por ora, aceitá-los como princípios gerais contemporâneos da interpretação da lei penal, que hão de prevalecer sempre que a regra incriminadora os comporte. 3. Na figura criminal cogitada, os princípios bastam, de logo, para elidir a incriminação do porte da arma de fogo inidônea para a produção de disparos: aqui, falta à incriminação da conduta o objeto material do tipo. 4. Não importa que a arma verdadeira, mas incapaz de disparar, ou a arma de brinquedo possam servir de instrumento de intimidação para a prática de outros crimes, particularmente, os praticáveis mediante ameaça - pois é certo que, como tal, também se podem utilizar outros objetos - da faca à pedra e ao caco de vidro -, cujo porte não constitui crime autônomo e cuja utilização não se erigiu em causa especial de aumento de pena. 5. No porte de arma de fogo desmuniciada, é preciso distinguir duas situações, à luz do princípio de disponibilidade: (1) se o agente traz consigo a arma desmuniciada, mas tem a munição adequada à mão, de modo a viabilizar sem demora significativa o municiamento e, em conseqüência, o eventual disparo, tem-se arma disponível e o fato realiza o tipo; (2) ao contrário, se a munição não existe ou está em lugar inacessível de imediato, não há a imprescindível disponibilidade da arma de fogo, como tal - isto é, como artefato idôneo a produzir disparo - e, por isso, não se realiza a figura típica[3].”

Todavia, a última decisão da Suprema Corte, alterou seu entendimento, conforme julgado abaixo transcrito, aliando-se ao posicionamento adotado pelo STJ[4].

EMENTA: PENAL. HABEAS CORPUS. PORTE DE ARMA DE FOGO DESMUNICIADA. INTELIGÊNCIA DO ART. 14 da Lei 10.826/2003. TIPICIDADE RECONHECIDA. CRIME DE PERIGO ABSTRATO. ORDEM DENEGADA. I. A objetividade jurídica da norma penal transcende a mera proteção da incolumidade pessoal, para alcançar também a tutela da liberdade individual e do corpo social como um todo, asseguradas ambas pelo incremento dos níveis de segurança coletiva que a lei propicia. II. Mostra-se irrelevante, no caso, cogitar-se da eficácia da arma para a configuração do tipo penal em comento, isto é, se ela está ou não municiada ou se a munição está ou não ao alcance das mãos, porque a hipótese é de crime de perigo abstrato, para cuja caracterização não importa o resultado concreto da ação. III - Habeas corpus denegado[5].

Desta forma, podemos observar que o tema ainda é extremamente controvertido na doutrina e jurisprudência dos tribunais superiores, não havendo uma solução pacífica acerca da questão.

Diante de todo o exposto, acreditamos que a posição que mais se coaduna com a vigência do atual Estado Democrático de Direito segue a diretriz de que não há delito diante de uma conduta que não importa em uma lesão efetiva ou real perigo de lesão ao bem jurídico tutelado, ou seja, não implique em um perigo concreto e real, recaindo tal conduta no campo da atipicidade. Partindo-se desta premissa, devemos limitar a pretensão punitiva estatal, porquanto serão consideradas atípicas todas as condutas sem conteúdo ofensivo, exaltando o conteúdo fragmentário e subsidiário do Direito Penal, o qual só deve ser aplicado quando estritamente necessário, intervindo no caso concreto apenas quando houver intolerável e relevante lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico tutelado.

Referências Bibliográficas:

AGUIAR, Alexandre Magno Fernandes Moreira. O crime de porte ilegal de arma sem munição: Quando o desejo tenta desbancar a realidade. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1577, 26 out. 2007. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=10575>. Acesso em: 09.03.2011.

CAPEZ, Fernando. Estatuto do Desarmamento: Comentários à Lei nº 10.826/2003. 4ª Ed. SP: Saraiva, 2006.

JESUS, Damásio E. de. Direito Penal do Desarmamento. 5ª Ed. SP: Saraiva, 2005.

FERRAJOLI, Luigi, Derecho y Razón. Teoria Del Garantismo Penal. Madrid: Editora Trotta, 2000.

GOMES, Luiz Flavio. Arma desmuniciada versus Munição Desarmada. http://www.wiki-iuspedia.com.br/article.php?story=20040705160036824, texto publicado em 05/07/2004.

GOMES, Luiz Flavio. Súmula do  STF sobre porte de arma desmuniciada. Disponível em: <http://www.oquintopoder.com.br/informativo/ed29_IV.php>. Acesso em: 09.03.2011.

GOMES, Luiz Flávio; OLIVEIRA, Willian Terra de. Arma de Fogo Desmuniciada Configura Crime?. Disponível em <http://www.mundojuridico.adv.br/sis_artigos/artigos.asp?codigo=14>. Acesso em: 09.03.2011.

[1] CAPEZ, Fernando. Estatuto do Desarmamento: Comentários à Lei nº 10.826/2003. 4ª Ed. SP: Saraiva, 2006, p. 17.

[2] JESUS, Damásio E. de. Direito Penal do Desarmamento. 5ª Ed. SP: Saraiva, 2005, p. 54.

[3] STF, RHC nº 81057 – 1ª Turma. Rel:  Min. Ellen Gracie, Rel. p/ Acórdão:  Min. Sepúlveda Pertence. DJ: 25/05/2004, DJ 29-04-2005 PP-00030 EMENT VOL-02189-02 PP-00257 RTJ VOL-00193-03 PP-00984.

[4] Confira: STJ: REsp nº 1121671 / SP. DJ 21.06.2010.

[5] STF. HC nº 96072. 1ª Turma/RJ. Rel. Min. Ricardo Lewandowski. DJ: 16.03.2010.

Sobre o(a) autor(a)
Gabrieli Cristina Capelli Goes
ADVOGADA.Bacharel em Direito pela FACULDADE DE DIREITO DA ALTA PAULISTA – FADAP. Pós-Graduada em Ciências Penais, com formação Mercado de Trabalho e Magistério Superior, pela UNIVERSIDADE ANHANGUERA-UNIDERP, em parceria com a...
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