O julgamento por equidade na Lei 9.307/96 (Arbitragem)

O julgamento por equidade na Lei 9.307/96 (Arbitragem)

Os problemas acerca da opção entre "julgamento por equidade" e "julgamento de direito" na Lei de Arbitragem. Aspectos conceituais e filosóficos.

A arbitragem, através da Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996, surgiu no direito brasileiro como uma alternativa ao sistema tradicional de solução dos conflitos, uma vez que o Poder Judiciário se encontra abarrotado de ações, com ritos e procedimentos complexos, problema que se soma ao da insuficiência de magistrados, promotores e defensores públicos.

Dispõe a citada lei, em seu artigo 2º, que as partes contratantes, ao optarem pela arbitragem, podem escolher ainda se ela será de direito ou de equidade. Prevê ainda o referido artigo, em seus dois parágrafos, que as partes podem convencionar sobre "as regras de direito" que serão aplicadas na arbitragem, bem como ainda estabelecer que o julgamento arbitral se realize com base nos "princípios gerais de direito, nos usos e costumes e nas regras internacionais de comércio".

Fica patente, com a referida lei, o intuito do legislador em oferecer às partes diversas possibilidades de julgamento dos seus conflitos. Tal fato, todavia, gera inúmeros problemas.

Vou me deter aqui, nos limites deste pequeno trabalho, em apenas um, de natureza conceitual. "Julgamentos de direito" todos os que lidam com o direito hodiernamente sabem que são os que se realizam todos os dias pelo Poder Judiciário, cujos juízes fundamentam suas decisões com sustento no ordenamento jurídico brasileiro. É o julgamento que se baseia em razões essencialmente jurídicas, em normas [1]. Mas o que significa "julgamento de equidade"? Melhor ainda: o que é equidade?

Inicialmente, é importante ressaltar que a palavra "equidade" é um termo polissêmico (possui diversos sentidos) e, por isso, apresenta maiores dificuldades para uma definição [2].

Seus diversos significados filosóficos, contudo, não devem ser levados em consideração, pois caso contrário seria impossível a aplicação do dispositivo legal em exame. Para uma possível aproximação do sentido (ou dos sentidos razoáveis) da expressão na Lei nº 9.307/96, é interessante uma brevíssima análise histórica de como foi a equidade tratada pelos juristas romanos e por dois grandes filósofos.

Aristóteles já se preocupara com o tema da equidade em uma de suas mais importantes obras, a Ética a Nicômaco. Para o Estagirita, a equidade era uma forma melhor de justiça, pois funcionava como uma adaptação da lei (abstrata) aos fatos reais, concretos. Como uma das características da lei é a generalidade, ela não pode prever todas as peculiaridades das situações cotidianas, devendo o juiz agir como o legislador agiria na previsão de tais situações. A equidade liga-se, assim, a mais importante das virtudes dianoéticas (da inteligência), a phrónesis, ou prudência, pois só um juiz prudente pode sanar uma lacuna legal de forma acertada e justa. Finalizando, Aristóteles compara a equidade a uma régua de medir pedras que conhecera quando de sua estadia na ilha de Lesbos: a régua era flexível, adaptando-se ao tamanho das rochas, possibilitando que todas fossem medidas. Assim também deve ser a equidade, a flexibilização da lei, que deve adaptar-se aos fatos concretos na medida das possibilidades.

Já os romanos ligavam o conceito de equidade ao de direito natural. Distinguiam, todavia, entre a aequitas naturalis e a aequitas civilis. A primeira definia uma forma de justiça absoluta, enquanto que a segunda colocava-se como parte integrante do direito, aplicada pelos pretores. Para Ráo, a "aequitas naturalis", segundo essa concepção, inspira o direito e em direito tende a transformar-se; a aequitas civilis, incorporada ao direito positivo, da natureza deste participa." [3]

Santo Tomás, na mesma linha de Aristóteles, afirmava:

    "os atos humanos, que a lei deve regular, são particulares e contingentes, e podem variar ao infinito. Por isso, não é possível criar qualquer lei que abranja todos os casos; os legisladores, pois, legislam tendo em vista o que sucede com maior freqüência. Seria, contudo, ir de encontro à igualdade e ao bem comum que a lei visa, observá-la em certos e determinados casos. Assim, a lei dispõe que os depósitos sejam restituídos, porque isto é justo na maioria dos casos; mas, em outros casos, pode ser nocivo. Por exemplo, se um louco, que deu em depósito uma espada, a exige em acesso de loucura, ou se alguém exige um depósito para lutar contra a pátria. Nesses e em outros casos semelhantes, seria um mal observar a lei estabelecida; nem seria, ao contrário (pondo de parte as suas palavras) observar o que reclamam a idéia de justiça e a utilidade comum. E com isso se harmoniza a Epieiqueia, que nós chamamos de equidade." [4]

Parece, todavia, não ter o legislador seguido a tradição aristotélico-tomista. De fato, o julgamento por equidade previsto na Lei 9.307 de 1996 não se refere à supressão de lacunas, nem à adaptação dos rigorismos legais aos casos concretos.

Não se trata de autorizar o juiz a decidir eqüitativamente, suavizando e harmonizando as normas jurídicas, mas sim a abandoná-las, decidindo os litígios com base apenas em sua consciência moral.

Nenhum julgamento é puramente "de direito". Pelo fato, já explicado, das leis serem sempre gerais, uma adaptação delas aos fatos concretos é sempre necessária. A equidade é sempre utilizada pelo juiz na formação e na conformação da norma judicial (sentença). [5] A proibição de se decidir por equidade no direito brasileiro [6] refere-se não à concepção de Aristóteles e Tomás de Aquino sobre a equidade, pois a adaptação da lei sempre é realizada, mas sim a não permitir que o juiz decida sem bases legais, sem justificar juridicamente suas sentenças, a não ser nos casos autorizados.

Os legisladores brasileiros entendem por "julgamento de equidade" não a adaptação do direito abstrato aos fatos concretos, mas sim o abandono completo do ordenamento jurídico por parte do juiz para que ele então decida "por equidade", ou seja, valendo-se apenas de sua consciência, talvez de um direito natural, ou ainda dos chamados "princípios gerais de direito".

A confusão é, portanto, patente. O que é equidade? Decidir não juridicamente, mas julgar valendo-se dos princípios gerais do direito? A questão complica-se ainda mais, uma vez que modernamente entende-se os princípios jurídicos como normas, ou seja, como pertencentes ao ordenamento jurídico [7]. O julgamento através dos princípios gerais de direito implica então em um julgamento "de direito", e não de equidade. Mas aí sairíamos de um problema de definição para outro talvez mais difícil, sem havermos resolvido o primeiro. Voltemos então, à equidade.

A questão aqui problematizada, embora dificílima, pois o legislador não definiu um conceito-chave da lei de arbitragem, parece para muitos bastante "tranqüila".

Antes de escrever esse pequeno texto, perguntei a alguns colegas o que eles entendiam pelo tal "julgamento de equidade". A resposta, invariável, foi a seguinte: "julgamento por bom-senso". Essa resposta, todavia, só transfere o problema. Bom-senso (embora seja algo bastante necessário; e que parece faltar a muitos juristas em determinadas situações) também é algo difícil de se definir. É, talvez, algo indefinível, pois sujeito a muitas variações.

Por exemplo: o "bom-senso" de um árbitro de formação conservadora, ao julgar determinado assunto controverso, será um tanto diferente do "bom-senso" de um árbitro reformador. Um juiz positivista vê as coisas de forma bastante diferente de um juiz que se inspira no realismo jurídico norte-americano, de caráter decisionista. Como, então, resolver o impasse?

Dirão alguns que isso é algo característico da função jurisdicional, e que tanto a decisão dos juízes quanto a dos árbitros, por mais que sejam fundamentadas juridicamente, guardam, no fundo, um pouco de subjetividade. Mas uma coisa é guardar resquícios de subjetividade, e outra bem diferente é abdicar (por lei!) completamente de qualquer recurso jurídico em um julgamento que terá força jurídica (pois a sentença arbitral pode, como título judicial, ser executada juridicamente). É, no mínimo, uma incoerência.

No fundo, a questão aqui discutida remete ao velho problema justiça versus segurança jurídica. O legislador, ao permitir a escolha pelo "julgamento de equidade", confiava no senso de justiça inerente às pessoas (no caso, os árbitros). Tal aposta, todavia, pode se frustrar, em face das discordâncias verificadas cotidianamente entre as pessoas sobre todos os assuntos onde alguma questão moral esteja implicada. Se a justiça é um valor caro ao Direito, a certeza e a segurança também o são.

Se nos "julgamentos de direito", como se pode facilmente observar, as discordâncias entre os juízes togados são muitas vezes radicais, embora sustentadas no mesmo ordenamento jurídico, é de se imaginar o que não aconteceria nos julgamentos onde os árbitros sejam expressamente autorizados a não justificarem juridicamente suas decisões. Talvez um árbitro interprete o mesmo caso de forma totalmente diversa de um colega seu. Não quero, com essa posição, negar valor às interpretações, nem assumir uma posição positivista. A interpretação, no entanto, possui limites no texto interpretado. Se não há texto, nem direito (incluído aqui o costumeiro), o que será objeto da interpretação? E, pior, como justificar a decisão adotada? É regra do discurso decisório jurídico contemporâneo que as decisões jurídicas devem ser fundamentadas juridicamente (são as razões justificativas, a que se refere Manuel Atienza).

Com efeito, fica difícil a justificação de uma decisão em um "julgamento de equidade". Tem razão Ronald Dworkin quando trata da problemática justiça versus segurança jurídica. Embora não possamos abrir mão da justiça das decisões jurisdicionais, também não podemos abrir mão de uma certa segurança jurídica, pois ela também é responsável pela garantia da justiça. Daí a tarefa do juiz (e, pode-se estender aqui, também a dos árbitros, pois se trata da mesma função, com as mesmas implicações) ser considerada hercúlea. Não há justiça apenas com preocupações com segurança jurídica; mas também não há justiça sem um mínimo de segurança. Sentenças com efeitos jurídicos devem sempre se fundamentar em normas jurídicas. Discordo aqui, portanto, da opção do legislador pelo "julgamento de equidade", incapaz de atender à proteção dos direitos (ainda que disponíveis) das pessoas capazes de contratar. Tal escolha tende muito mais a trazer novos problemas do que resolver os antigos, que motivaram inicialmente a publicação da lei nº 9.307/96.


[1] Conferir Manuel Atienza, As razões do direito, 2000.

[2] Ver, a respeito, Vicente Ráo, 1999, nota 23.

[3] Ráo, 1999, p. 88.

[4] Santo Tomás, Summa Theologica, II parte, 2ª, CXX, apud Ráo, nota 25.

[5] Conferir Mônica Sette Lopes, 1993.

[6] CPC, artigo 127: "O juiz só decidirá por equidade nos casos previstos em lei"

[7] Conferir Galuppo, 1999.


Bibliografia

ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Brasília: UNB, 1985. Tradução de Mário da Gama Kury.
ATIENZA, Manuel. As razões do direito. Teorias da argumentação jurídica. São Paulo: Landy, 2000.
CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e processo: um comentário à lei 9.307/96. São Paulo: Malheiros, 1998.
DWORKIN, Ronald. O império do direito. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. Técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 1987.
FIÚZA, César. Teoria geral da arbitragem. Belo Horizonte: Del Rey, 1995.
GALUPPO, Marcelo Campos. Os princípios jurídicos no estado democrático de direito. Ensaio sobre o modo de sua aplicação. São Paulo: Revista de Informação Legislativa, ano 36, nº 143, julho/setembro de 1999. p. 191 a 209.
LOPES, Mônica Sette. A equidade e os poderes do juiz. Belo Horizonte: Del Rey, 1993.
RÁO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999.

Sobre o(a) autor(a)
Bruno Amaro Lacerda
Professor
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