A dignidade da pessoa humana como princípio absoluto

A dignidade da pessoa humana como princípio absoluto

Trata do valor absoluto da dignidade da pessoa humana na qualidade de princípio fundamental e sua possibilidade de realitivização.

Têm a sua fonte ética na dignidade da pessoa humana os direitos, liberdades e garantias pessoais e os direitos econômicos, sociais e culturais comuns a todas as pessoas. (MIRANDA apud SIQUEIRA CASTRO, p.174)

Mais precisamente, várias são as passagens na Constituição Federal que denotam a dignidade da pessoa humana, como no artigo 5º, incisos III (não submissão a tortura), VI (inviolabilidade da liberdade de consciência e de crença), VIII (não privação de direitos por motivo de crença ou convicção), X ( inviolabilidade da vida privada, honra e imagem), XI (inviolabilidade de domicílio), XII (inviolabilidade do sigilo de correspondência), XLVII (vedação de penas indignas), XLIX (proteção da integridade do preso) etc.

Ingo Wolfgang Sarlet bem define a dignidade da pessoa humana (2001, p.60):

Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão dos demais seres humanos.

A dignidade da pessoa humana, prevista no artigo 1º, inciso III da Constituição Federal, constitui um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, inerente à República Federativa do Brasil. Sua finalidade, na qualidade de princípio fundamental, é assegurar ao homem um mínimo de direitos que devem ser respeitados pela sociedade e pelo poder público, de forma a preservar a valorização do ser humano.

Sendo a dignidade da pessoa humana um fundamento da República, a essa categoria erigido por ser um valor central do direito ocidental que preserva a liberdade individual e a personalidade, portanto, um princípio fundamental alicerce de todo o ordenamento jurídico pátrio, não há como ser mitigado ou relativizado, sob pena de gerar a instabilidade do regime democrático, o que confere ao dito fundamento caráter absoluto.

Nesse sentido, Flávia Piovesan diz que (2000, p. 54):

A dignidade da pessoa humana, (...) está erigida como princípio matriz da Constituição, imprimindo-lhe unidade de sentido, condicionando a interpretação das suas normas e revelando-se, ao lado dos Direitos e Garantias Fundamentais, como cânone constitucional que incorpora “as exigências de justiça e dos valores éticos, conferindo suporte axiológico a todo o sistema jurídico brasileiro.

Diz ainda a autora que (2004, p. 92):

É no valor da dignidade da pessoa humana que a ordem jurídica encontra seu próprio sentido, sendo seu ponto de partida e seu ponto de chegada, na tarefa de interpretação normativa. Consagra-se, assim, dignidade da pessoa humana como verdadeiro super princípio a orientar o Direito Internacional e o Interno.

Ainda nesse contexto de conferir à dignidade da pessoa humana um status de princípio fundamental, essencial, fonte de todo ordenamento jurídico brasileiro, manifesta-se o STF:

(...) o postulado da dignidade da pessoa humana, que representa - considerada a centralidade desse princípio essencial (CF, art. 1º, III) - significativo vetor interpretativo, verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente em nosso País e que traduz, de modo expressivo, um dos fundamentos em que se assenta, entre nós, a ordem republicana e democrática consagrada pelo sistema de direito constitucional positivo (...). (HC 95464, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 03/02/2009, DJe-048 DIVULG 12-03-2009 PUBLIC 13-03-2009 EMENT VOL-02352-03 PP-00466)

Logo, a dignidade da pessoa humana, se tomada como fundamento da República, princípio fundamental do ordenamento pátrio, norte constitucional, mínimo de direitos que garantem uma existência digna, não pode ser relativizada por constituir valor absoluto, vez que, nessa hipótese, o indivíduo é protegido por ser colocado em contraposição à sociedade ou ao Poder Público, portanto, em situação de vulnerabilidade.

Ocorre que, com a interpenetração dos Direitos Público e Privado e a constitucionalização do Direito Civil, o princípio da dignidade da pessoa humana deve ser aplicado não apenas às relações do indivíduo com a sociedade e o Poder Público, mas também às relações interindividuais de cunho civil e comercial, e é aí que surge a ideia de relativização da dignidade da pessoa humana, pois, em se tratando de indivíduos em situação de igualdade, a dignidade de um indivíduo encontra-se em contraposição à igual dignidade do outro. (SARMENTO, 2006, p.140)

Assim, em se tratando de choque entre princípios individuais, ainda que tenham como vetor a dignidade da pessoa humana (subprincípios), dela derivando, não há como afastar a necessária relativização do princípio em si, cabendo ao aplicador do direito o bom senso de atribuir a importância, peso ou valor à dignidade de um em detrimento da dignidade do outro na busca da solução mais adequada para o caso concreto.

Como exemplo prático, é a decisão do TJ/RS:

EXECUÇÃO DE ALIMENTOS. INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA DO DEVEDOR DE ALIMENTOS. CABIMENTO. Tentada a localização do executado de todas as formas, residindo este em outro Estado e arrastando-se a execução por quase dois anos, mostra-se cabível a interceptação telefônica do devedor de alimentos. Se por um lado a Carta Magna protege o direto à intimidade, também abarcou o princípio da proteção integral a crianças e adolescentes. Assim, ponderando-se os dois princípios sobrepõe-se o direito à vida dos alimentados. A própria possibilidade da prisão civil no caso de dívida alimentar evidencia tal assertiva. Tal medida dispõe inclusive de cunho pedagógico para que outros devedores de alimentos não mais se utilizem se subterfúgios para safarem-se da obrigação. Agravo provido. (SEGREDO DE JUSTIÇA) (Agravo de Instrumento Nº 70018683508, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Maria Berenice Dias, Julgado em 28/03/2007)

Na ementa supra, colocados em confronto a intimidade do executado, princípio inerente à sua dignidade, e a proteção da criança e do adolescente, ambos princípios de mesma hierarquia porque constitucionais, a dignidade de um foi mitigada pela dignidade do outro, sopesando-se a proporcionalidade na prevalência de um princípio individual sobre o outro. Nesse caso, em se tratando de relações entre particulares e havendo choque entre princípios distintos que têm como vetor comum a dignidade da pessoa humana, há que se aplicar a ponderação, técnica utilizada para solucionar conflitos entre princípios, segundo a qual é “estabelecida uma relação de preferência condicionada que diz sob quais condições um princípio precede ao outro”. (NOVELINO, 2010, p.145)

É evidente que os princípios constitucionais, como no caso do princípio da dignidade da pessoa humana devem prevalecer sobre os princípios infraconstitucionais, na medida em que aqueles servem de fundamento de validade para estes.

O princípio da dignidade da pessoa humana em si também pode entrar em conflito com outros princípios constitucionais distintos que não derivem diretamente do valor da dignidade da pessoa humana, exempli gratia, o princípio da livre concorrência, caso em que deve ser mantida a aplicação do mesmo procedimento da ponderação para equilibrar a relação entre o indivíduo e a empresa, de forma a evitar que o princípio da dignidade da pessoa humana aniquile a liberdade econômica ou liberdade da empresa.

Portanto, o limite de uma dignidade passa a ser a igual dignidade ou direito do outro, não se podendo privilegiar um em detrimento de outro com igual dignidade ou direito, sendo o princípio em si relativo no que tange às relações individuais entre particulares com a aplicação do justo juízo de ponderação para mitigação ou relativização dos princípios envolvidos. Por outro lado, o valor contido na dignidade da pessoa humana como fundamento da República é absoluto, inafastável, não podendo inclusive ser renunciado, porque consiste no respeito à integridade do homem e deve sempre ser levado em conta por constituir a essência e o fim maior do Estado Democrático de Direito.




Bibliografia

CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. Dignidade da Pessoa Humana: o princípio dos princípios constitucionais: in SARMENTO, Daniel. GALDINO, Flávio (Org). Direitos Fundamentais: Estudos em homenagem ao professor Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p.135-179.

NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. São Paulo: Editora Método, 2010.

PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 4ed. São Paulo: Max Limonad, 2000.

PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos, O Princípio da dignidade da pessoa humana e a Constituição de 1988, 2004.

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.

Sobre o(a) autor(a)
Raquel Santos de Santana
Bacharela em Direito pela Universidade Tiradentes em Sergipe desde 2006. Aprovada na OAB-SE/ em 2006. Especialista em Direito Público pela UNIDERP desde 2010. Servidora Pública Estadual (TJ/SE).
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