Vedação "in abstracto" da concessão de liberdade provisória no tráfico de drogas. Um retorno ao passado à luz das recentes reformas no processo penal

Vedação "in abstracto" da concessão de liberdade provisória no tráfico de drogas. Um retorno ao passado à luz das recentes reformas no processo penal

Faz um paralelo entre a vedação da liberdade provisória pelo art. 44 da Lei de Drogas e o que seria o retorno da chamada "prisão preventiva obrigatória" prevista no primitivo art. 312 da Lei Instrumental Penal, levando-se em conta, ademais, as alterações sofridas pelo processo penal em 2008.

Nada obstante as violações aos princípios constitucionais reconhecidas incidenter tantum pelo Min. CELSO DE MELLO no HC 96.715 /SP, a interdição legal in abstrato da concessão de liberdade provisória no tráfico de drogas (art. 44 da Lei 11.343/06), inserida dentro do contexto do movimento da “Law and Order” nem ao menos se compatibiliza, em termos infraconstitucionais, com as características inerentes à prisão preventiva stricto sensu e, ademais, com as reformas no processo penal de agosto de 2008.

Como é de conhecimento comum, a Lei Instrumental Penal previa, em seu art. 312 primitivo, a chamada “prisão preventiva obrigatória” de quem fosse denunciado pela prática de crime para o qual fosse prevista pena máxima igual ou superior a dez anos; bastava a simples imputação por parte do Ministério Público para que se tivesse presente (em tese) a necessidade do recolhimento imediato do réu.

Esse nefasto panorama, no entanto, foi redimensionado pela chamada “Lei Fleury” (Lei nº 5.941/73) que, em plena ditadura, estabeleceu: ““réu primário e de bons antecedentes não precisa ir pra cadeia”; foi o primeiro golpe que o Diploma de 1941 tomou, pois, antes, se condenado, o réu iria automaticamente para cadeia.

Por sua vez, a novel Lei nº 11.689, de 2008, talvez influenciada pela declaração de inconstitucionalidade da “prisão ex lege” no Leading Case da ADIn nº 3.112/DF julgada pelo Pleno do STF, extinguiu qualquer possibilidade de prisão ex vi legis na sistemática processual penal pátria dos dias atuais. Um dos principais motivos dessa aludida extinção foi que a presunção do periculum libertatis do acusado consubstanciava, pois, violação ao princípio constitucional da presunção de inocência.

Portanto, contrastando com aquele mare magnum de violações principiológicas destacadas pelo eminente Min. CELSO DE MELLO e reconhecidas, também, pelo Min. EROS GRAU, a questão que se suscita é, para um penalista, primária e inarredável, sendo necessário, para um maior esclarecimento, um “retorno ao passado” (à época da prisão preventiva compulsória) à luz das recentes reformas no diploma processual repressivo.

POLÍTICA CRIMINAL TEMERÁRIA

A Lei de Drogas (Lei nº 11.343/06), em que pese tratar-se de lex specialis em relação ao diploma processual penal, ao não admitir a liberdade provisória, o indulto, o sursis, o recurso em liberdade e nem a substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos (em seu art.44), demonstra a existência de uma política criminal de drogas inconsistente, temerária, reprodutora de violência; uma política criminal flexibilizadora dos direitosi e das garantias processuais, seletiva e de controle social.

Ora, quem vive em um Estado Democrático de Direito não tem outra opção a não ser aceitar, aplaudir e estimular o garantismo penal. Ler BECCARIA ou FERRAJOLI e não concordar com os seus argumentos é muito difícil. E mais: é praticamente impossível ler os textos que defendem o direito penal do inimigo e não ficar assustado com aquela nefasta doutrina, inserida no contexto do movimento da “Lei e da Ordem” ii.

No entanto, com as alterações trazidas à baila pela Lei nº 11.464/07 não resta dúvida de que o juiz poderá conceder ao réu liberdade provisória, fundamentadamente. A possibilidade de progressão de regime, até então vedada e a possibilidade de o réu em crimes hediondos apelar em liberdade são indicativos que corroboram com tal assertiva. (art. 2º, §§ 2º e 3º, da Lei dos Crimes Hediondos)

Ademais, sob outra ótica e, na esteira de Paulo RANGELiii, se a prisão em flagrante for convertida em prisão preventiva, nada obsta, posteriormente, a sua revogação caso desapareça sua necessidade (por ausência de legalidade, homogeneidade ou instrumentalidade). Aliás, a decisão que decreta a prisão preventiva tem o caráter rebus sic stantibus; nesse sentido, de toda a sorte, seria concedida liberdade ao acusado de tráfico de drogas. O teor da Súmula 697 do STFiv , por sua vez, reforça tal constatação.

De qualquer modo, uma das principais consequências nefastas dessa tal política temerária é a manutenção da prisão do acusado sem que haja homogeneidade (proporcionalidade da medida) e instrumentalidade (visa acautelar o processo) do seu carcer ad custodiam, implicando, assim, verdadeira contradictio in terminis, nas palavras do Des.RUI RAMOS RIBEIROv.

Nesse lume, Antônio Magalhães GOMES FILHO destaca que é importante evitar que a utilização indiscriminada das medidas de natureza cautelar no processo penal constitua instrumento para a imposição de sanções atípicas que, sob a justificação da urgência da necessidade, acabam por subverter os princípios fundamentais do Estado de Direito, consagrando algo próximo á idéia de justiça sumária”. vi


RETORNO DA PRISÃO PREVENTIVA OBRIGATÓRIA E AS REFORMAS NO PROCESSO PENAL

É inquestionável que no sistema processual penal da atualidade a prisão preventiva se caracteriza também pela facultatividade. O Código Processual Penal de 1941, no entanto, editado na atmosfera fascista do Estado Novo, em sua redação original, utilizando a forma imperativa do verbo (art. 312), dispunha que “a prisão preventiva será decretada” nos crimes com a pena máxima igual ou superior a dez anos de reclusão. Havia, portanto, algumas exceções à facultatividade da custódia preventiva face à possibilidade de uma prisão ex lege.

Anote-se, à guisa de esclarecimento técnico que, na esteira de Eugênio Pacelli de OLIVEIRAvii, não se trata, a bem da verdade, de prisão preventiva obrigatória. Fosse assim, mesmo aquele que se encontrasse em liberdade poderia ser recolhido à prisão, após o oferecimento da denúncia. O que se está a afirmar, presentemente, é que “o tratamento da manutenção do flagrante é que se equipara à antiga prisão obrigatória”.

Ora, tal como na “prisão preventiva compulsória”, o art. 44 da Lei de Drogas presume, ante tempus, a existência do periculum libertatis; o que está vedado pelo art. 5º, inciso LXI, da Lex Major, ao exigir decisão fundamentada da autoridade judiciária competente. Trata-se, pois, de uma “indevida solução padronizada” (que transforma o magistrado num escravo da lei, sendo refém apenas de sua própria consciência) a ser aplicada para quem for preso em flagrante na mercancia de drogas ilícitas.

E essa presunção da presença do periculum libertatis no caso concreto, diga-se, foi extinta pelas recentes reformas no processo penal, haja vista que a revogação dos parágrafos do art. 408 da Lei Instrumental Penal expressa a inadmissibidade da prisão processual como efeito automático da lei, isto é, sem motivação. Prisão ex vi legis já não mais deve existir nos dias de hoje: afronta a dignidade humana (núcleo axiológico da Lex Fundamentalis) a manutenção ou decretação de uma prisão sem necessidade.

Ad argumentandum, quanto à força do princípio da dignidade humana, se o STF reconhece a violação a tal primado quando o acusado é processado sem que haja justa causa, sob pena de o homem ser convolado, nas palavras do Min. GILMAR MENDES, “em objeto do processo” (HC 86.395/SP), o que se dirá, então, se for mantido preso desnecessariamente durante todo o processo? Nesse mesmo lume, aliás, já destacou o Min. EROS GRAU: “nas democracias mesmo os criminosos são sujeitos de direito. Não perdem essa qualidade, para se transformarem em objetos processuais”.

Em outro nível de argumentação, dissertando agora acerca do teor do art. 21 do Estatuto do Desarmamento, o processualista Paulo RANGEL preleciona que o aludido dispositivo cria o frágil e falso paradigma de que a lei pode tudo e que suas palavras têm força suficiente para dar segurança jurídica à sociedade, “como em um simples passe de mágicaviii .

Em outra passagem, o representante do Parquet conclui que, ao proibir a liberdade provisória para esses crimes o legislador restabelece a prisão obrigatória no processo penal o que caracteriza um retrocesso social inadmissível em um Estado Democrático de Direito” em sua visão. ix

E, como se sabe, o Pacto de San José da Costa prevê expressamente o princípio da vedação ao retrocesso. Na velha pirâmide jurídica de Hans KELSENx a lei válida era apenas formalmente válida. Agora, deve respeitar materialmente tanto a Lex Mater quanto os tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil (duplo limite material).

Vê-se, portanto, que não tem qualquer lógica a vedação in abstracto da concessão de liberdade provisória, pois se o art. 5º, § 2º da CF constitui uma “cláusula de abertura”, a regra interpretativa pro homine (da norma mais favorável à liberdade) tem primazia no caso concreto, seja porque o art. 29 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos assegura o conceito de “normas de reenvio recíprocas”, seja porque a República Federativa do Brasil rege-se, em suas relações internacionais, pela prevalência dos direitos humanos (art.4º, II, do Texto Magno).

Em outra análise, agora sob a ótica de Alberto Silva FRANCO, a norma da Lei de Drogas é inconstitucional, pois mesmo em se considerando o tratamento diverso desejado pelo constituinte para esses crimes (inciso XLII, do art. 5º, da CF), “não há – nem mesmo poderia haver, porquanto se consubstanciaria em verdadeira contradição constitucional interna – prisão cautelar obrigatória, ante tempus, que impeça, de modo apriorístico e sem considerações para o caso concreto, a concessão de liberdade provisória” xi. (sem grifos no original)

A propósito, afastando esse excesso do legislador ordinário, o Min. EROS GRAU, em interessante voto no HC 94.916/RS, aduziu que, apesar da controvérsia a respeito da possibilidade, ou não, da liberdade provisória em caso de prisão em flagrante por tráfico ilícito de entorpecentes, o writ deveria ser concedido, sob pena de ofensa à dignidade da pessoa humana; assim, a vedação, no caso, ainda que pudesse ser adequada à regra, seria incompatível com o Direito.

Por fim, todos os entendimentos acima perfilhados estão em perfeita consonância com a posição reiterada pelo Min. CELSO DE MELLO quando do julgamento do HC 98.382/SP, no sentido de que o processo penal, enquanto atividade estatal juridicamente vinculada por padrões normativos consagrados pela Constituição e pela lei, só pode ser concebido (e assim deve ser visto) como “instrumento de salvagarda da liberdade do réu”.xii


PARALELO COM A EXECUÇÃO TEMPORÃ DA PENA

Quanto ao acusado, se a Carta Magna presume sua inocência, enquanto não houver trânsito em julgado da sentença condenatória, não tem lógica, é absurdo, um verdadeiro não-senso, “frauda a finalidade da lei e ilude as garantias da liberdade” xiii a exigência daquela prisão pelo simples fato de a lei determinar, abstratamente, que tais crimes são insuscetíveis de liberdade provisória.

Haveria uma absurda presunção de perturbação da ordem pública. Essa, aliás, a ratio essendi do referido dispositivo: uma presunção, a priori, da existência do periculum libertatis, de que, se solto estiver, o acusado perturbará a garantia da ordem pública. Custódia em face da pretensa gravidade do delito, meramente afirmada, não guarda relação com a função cautelar no interesse do processo; e sim, com execução temporã da pena.

Mas, se a Lei Maior presume a inocência, como pode lei infraconstitucional, ou até mesmo o direito pretoriano, invocar presunção contrária àquela? Como sempre faz questão de lembrar o processualista Aury LOPES JR., é o Código de Processo Penal que deve ser interpretado conforme a Constituição Federal, e não o contrárioxiv.

Apenas para destacar, o Supremo Tribunal Federal consolidou no julgamento do HC 84.078/MG o direito de recorrer em liberdade e, quando do julgamento do HC 97.457/MT, permitiu que acusados de homicídio qualificado (crime hediondo) recorressem extraordinariamente em liberdade por incontestável força do princípio da presunção de inocência. Por que, então, agora no âmbito da Lei de Drogas, a presunção de periculosidade do agente deve prevalecer sobre tal princípio constitucional?

CONCLUSÃO

Afastar, sem qualquer exame, a possibilidade da liberdade provisória, como quer o legislador ordinário, apenas considerando a natureza da infração; portanto, em caráter genérico e absoluto para certa tipologia de delitos, sem averiguar a presença dos fundamentos da prisão preventiva, representa, segundo o que se está defendendo, não só uma agressão à Constituição como também retorno ao passado, quando a “prisão preventiva obrigatória”, de triste memória, vigorava entre nós.

Uma norma, cujos termos gerais parecem satisfatoriamente justos e que não suscitam nenhuma objeção, pode, num caso particular, produzir notórias consequências injustas; como seria se a liberdade provisória fosse negada pelo Min. EROS GRAU no caso do HC 94.916/RS. Argumentos de lógica formal não devem ser utilizados na justiça criminal para homologar erros ou excesso. Direito perfeito é somente o das normas individualizadas na sentença.

Ora, ao largo de uma política criminal temerária, a sociedade e o réu em particular precisam saber que razões levaram o Magistrado a exigir tamanho sacrifício como condição indispensável ao eventual resultado útil do processo, sob pena de se incorrer em contradictio in terminis, mantendo-se preso imotivadamente um acusado que, ao final, será absolvido.

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

i Dissertando sobre a disposição da Lei nº 8.038/90 no sentido de que os recursos extraordinário e especial “serão recebidos no efeito devolutivo”, o Min.EROS GRAU já aduziu, sobre “política criminal temerária”, quando do julgamento do HC 84.078/MG, que: “A supressão do efeito suspensivo desses recursos é expressiva de uma política criminal vigorosamente repressiva, instalada na instituição da prisão temporária pela Lei n. 7.960/89 e, logo em seguida, na edição da Lei n. 8.072/90, a ‘lei dos crimes hediondos’(...)”

ii Paulo RANGEL explica o “movimento da lei e da ordem” aduzindo: “queremos dizer que tal juiz (e promotor de justiça também) é severo no seu atuar e acha que, efetivamente, a lei vai diminuir a violência urbana. In Direito processual penal. 15 ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p.748

iii RANGEL, Paulo. Op.cit., p.744

iv Teor da Súmula 697 do STF: “A proibição de liberdade provisória nos processos por crimes hediondos não veda o relaxamento da prisão processual por excesso de prazo”.

v No julgamento do Habeas Corpus 139.026/2008, em 10.02.2009, pelo TJ/MT, o Rel.Des.RUI RAMOS RIBEIRO ponderou, às fls.12, que: “(...) em se tratando de prisão processual, a decisão se funda num juízo de risco e não de certeza, sob pena de contradictio in terminis”.

vi GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Presunção de inocência e prisão cautelar, São Paulo: Saraiva, 1991, p.57.

vii OLIVEIRA, Eugênio Pacelli. Curso de Processo Penal. 2008, p.414.

viii RANGEL, Paulo. Op.cit., p.747.

ix Idem., p.748.

x Nesse sentido, aduz Hans KELSEN: “Uma norma jurídica não vale porque tem um determinado conteúdo (...), mas porque é criada de uma forma determinada -, em última análise, por uma forma fixada por uma norma fundamental pressuposta” in Teoria Pura do Direito, 1991, p.210.

xi FRANCO, Alberto Silva. Crimes hediondos. 6. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p.450.

xii HC 98.382/SP, Rel.Min.CELSO DE MELLO, j. em 02.06.2009.

xiii TORNAGHI, Hélio Bastos. Manual de Processo Penal (prisão e liberdade). Livraria Freitas Bastos, 1963

xiv Cf: STRECK, Lênio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. 2. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2004, p.236: “Direito constitucional, mais do que disciplina autônoma é modo de ser; é modo de agir” (...)

16 Habeas Corpus nº 115.087/2008, Primeira Câmara Criminal (TJ/MT). Rela. Desa. SHELMA LOMBARDI DE KATO, j. em 18.11.2008.

Sobre o(a) autor(a)
Júlio César de Medeiros
Júlio Medeiros é advogado criminalista, professor de Direito Penal I e II na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e secretário da Comissão de Direito Penal e Processo Penal da OAB.
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