A materialização indireta no crime de tráfico de drogas

A materialização indireta no crime de tráfico de drogas

A materialização do crime de tráfico pode dar-se de forma indireta, através de outros meios que possam comprovar a prática das condutas descritas no artigo 33, caput, da Lei 11.343/06, mormente as instantâneas, dentre as quais adquirir, vender e oferecer.

É indubitável que nos dias atuais o processo assumiu novéis valores, devendo ser analisado não só como uma expressão legal, mas sem sombra de dúvida, como uma expressão social, fato que repercute, também, no direito penal.

Adentrando-se na específica esfera da teoria do crime, é necessário gizar que segundo a teoria finalista, que foi criada na década de 20 ou 30 e cujo defensor foi Hans Welzel, não é a ação a pela chave da conduta criminosa, mas sim o resultado, diferentemente da teoria causal ou natural.

Todavia, Maurach criticou a teoria finalista, pois dizia que ao analisar a conduta e o resultado, é necessário observar o conceito social da ação, pois o comportamento humano socialmente relevante.

Segundo Fernando Capez, “sendo o Brasil um Estado Democrático de Direito, por reflexo, seu Direito Penal há de ser legítimo, democrático e obediente aos princípios constitucionais que o informam, passando o tipo penal a ser uma categoria aberta, cujo conteúdo dever ser preenchido em consonância com os princípios constitucionais.”

Com essa análise e observando o contido no artigo 13, caput, do Código Penal Brasileiro, que fomenta o princípio da legalidade no que tange à necessidade de conduta, nexo causal e resultado para a existência do fato típico, chegamos à conclusão que, via de regra, os crimes necessitam de resultado (crimes materiais), com exceção dos crimes formais (pode ocorrer o resultado) e de mera conduta (em hipótese alguma ocorre o resultado).

Pela leitura da novel lei de tóxicos, constatamos que há tipos penais que são de natureza material, dentre os quais o crime de tráfico, cuja tipicidade objetiva está descrita no artigo 33, caput, da Lei 11.343/06.

Se o tipo penal é material, para eventual condenação são necessários que estejam presentes dois elementos caracterizadores de tais delitos, a autoria e a materialidade, para que se possa fazer a análise da conduta e constatar se se trata de fato típico (conduta, resultado, nexo causal e tipicidade objetiva [2]).

A autoria e a materialidade no crime de tráfico, via de regra, é comprovada pela apreensão da droga na posse do investigado/acusado. Todavia, não é apenas através da apreensão da droga na posse única e exclusiva do indiciado/acusado que restará materializada a prática delitiva.

É cediço que o crime de tráfico de drogas é conhecido por ser de conteúdo múltiplo ou variado, possuindo no seu bojo 17 (dezessete) verbos nucleares, o que impende considerar que praticar conduta que se adéque a um ou mais dos verbos nucleares, enseja na prática delitiva insculpida no artigo 33, caput, da Lei 11.343/06, senão vejamos: “importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar [...]”

Assim, se a pessoa adquirir ou vender o entorpecente com dolo de trafico, possivelmente incidirá na conduta descrita como tráfico de drogas. Mas como isso pode ser comprovado, considerando que o delito de tráfico é de natureza material?

Apenas pela apreensão do entorpecente, que tem como objetivo primordial materializar, por exemplo, as condutas de ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, que são permanentes, ou com outras provas, testemunhais ou periciais? Não, pois as condutas de adquirir ou vender, que são instantâneas, podem ser comprovadas de outra forma, já que em muitos casos a materialização da prática delitiva em exame é deveras complexa, pois alguns traficantes dificilmente são flagrados na posse da droga, principalmente os grandes traficantes, que são os chefes da organização, conhecidos popularmente por “patrões”, os quais, gize-se, não manuseiam o entorpecente.

No caso em exame o investigado não foi flagrado na posse do entorpecente. Contudo, há diversas provas que comprovam a prática delitiva, principalmente as testemunhas e as interceptações telefônicas, o que implica considerar que o indiciamento é medida que se impõe.

Sobre o tema já decidiu o Egrégio Superior Tribunal de Justiça:

"HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. TRÁFICO INTERNACIONAL DE ENTORPECENTES, ASSOCIAÇÃO AO TRÁFICO, LAVAGEM DE DINHEIRO E SONEGAÇÃO FISCAL. NULIDADES. DENÚNCIA ANÔNIMA. POSSIBILIDADE. INEXISTÊNCIA DE PROVA DA MATERIALIDADE DO DELITO. AUSÊNCIA DE LAUDO TOXICOLÓGICO. PRESCINDIBILIDADE. CONJUNTO PROBATÓRIO ROBUSTO A COMPROVAR A MATERIALIDADE DO DELITO.

"[...]

"3. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é no sentido de que a materialidade do crime de tráfico de entorpecentes deve ser comprovada mediante a juntada aos autos do laudo toxicológico definitivo. Entretanto, tal entendimento deve ser aplicado na hipótese em que há a apreensão da substância entorpecente, justamente para se aferirem as características da substância apreendida, trazendo subsídios e segurança ao magistrado para o seu juízo de convencimento acerca da materialidade do delito.

"4. Na hipótese, o laudo de exame toxicológico definitivo da substância entorpecente não é condição única para basear a condenação se outros dados suficientes, incluindo a vasta prova testemunhal e documental produzidas na instrução criminal, militam no sentido da materialidade do delito" (Habeas Corpus n. 91.727/MS, rel. Min. Arnaldo Esteves de Lima, j. em 2/12/2008).

Em razão da relevância, extrai-se do voto acima mencionado:

"No que concerne à ausência de laudo toxicológico da droga, colho os judiciosos fundamentos expostos no voto condutor do acórdão impugnado sobre a matéria (fls. 433*434):

"'A realização do laudo toxicológico se (sic) é necessária quando ocorre a apreensão da substância entorpecente. O fato de não ter sido encontrada droga com o acusado não leva à conclusão de que ele não praticou tráfico. Se assim fosse, o traficante que conseguisse atingir o fim criminoso de transportar e distribuir o entorpecente não poderia ser processado e julgado criminalmente, ao passo que aquele que foi preso pela Polícia e a substância apreendida, enquanto executava o ato delituoso, poderia ser responsabilizado penalmente. Haveria evidente desigualdade, já que os agentes, em ambas situações, merecem ser punidos da mesma forma. Constata-se, então, que, mesmo sem vestígios, a materialidade delitiva pode ser provada por outros meios, como a prova testemunhal e documental. No caso em tela, o testemunho de Waldemar, as provas emprestadas que tratam de diversos narcotraficantes da região ligados a Aldo, a movimentação bancária incompatível com os rendimentos declarados, o recebimento e pagamento de valores a pessoas envolvidas com a traficância e a carta anônima, conjuntamente, dentre as demais provas dos autos, demonstraram que o réu praticou reiteradamente o tráfico de entorpecentes, consistente na importação e distribuição de cocaína, utilizando-se de aeronaves, em associação com Pingo-Soligo e 'Bangual', além de outros'".

Há uma situação muito pontual nos crimes contra o patrimônio, o que pode ser interpretado de forma extensiva para o caso de tráfico de drogas, no que tange à comprovação da materialidade.

Nos crimes contra o patrimônio, não raras vezes, a res furtiva não é apreendida na posse dos criminosos, todavia, outras provas servem para comprovar indiretamente a materialidade.

Nesse sentido se manifesta a jurisprudência do Egrégio Tribunal de Justiça de Santa Catarina.

“MATERIALIDADE. PROVA ORAL COERENTE E HARMÔNICA QUANTO À EXISTÊNCIA DO CRIME. PRESCINDIBILIDADE DA APREENSÃO DA RES FURTIVA. ARGUMENTO REPELIDO.

'O crime de roubo não depende, para que se considere provado, da apreensão dos bens subtraídos da vítima, pois o que importa é que o restante da prova indique com segurança a ocorrência do delito, e não deixe qualquer dúvida quanto à autoria (TACRIM-SP - AC - Rel. Ferreira Rodrigues - RJD 23/102)" (Franco, Alberto Silva; Silva Júnior, José; Betanho, Luiz Carlos; Stoco, Rui; Feltrin, Sebastião Oscar; Guastini, Vicente Celso da Rocha, e Ninno, Wilson, Código penal e sua interpretação jurisprudencial, volume 2: parte especial, 7ª ed., rev., atual. e ampl., São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 2001, p. 2669).’” (Ap. Crim. n. 2004.036261-0, de. Laguna, rel. Des. Sérgio Paladino, j. 1º.3.2005).

De outro norte, ainda, temos a situação da prova emprestada, que merece ser analisada, salientando Fernando da Costa Tourinho Filho que “como o próprio nome está a indicar, prova emprestada é aquela colhida num processo e trasladada para outro. Ora é um testemunho, ora uma confissão, uma perícia, um documento, enfim, uma prova qualquer produzida num processo e transferida para outro. Não há dúvida quanto a essa possibilidade. Contudo, vigorando entre nós os princípios do contraditório e da ampla defesa, parece claro que o valor probatório dessa 'prova emprestada' fica condicionado à sua passagem pelo crivo do contraditório; do contrário ela se torna ilícita, posto que obtida com violação de princípios constitucionais." (in Código de Processo Penal Comentado, 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998, v. 1, p. 351).

Assim, poderia a apreensão da droga com um dos traficantes associados, de acordo com as provas colhidas, poderá servir como prova material da traficância para outro associado? Entendemos que sim, pois, além do que já foi asseverado acima, a droga também pertence ao co-autor, razão pela qual presente está a materialidade, sendo idêntica a situação de associados em que um é o chefe da organização e os outros são os subordinados, numa relação de “patrão” e “mula”.

Nesse caso, a droga apreendida com a “mula [3]” ou “avião [4]”, já que há associação, também tem o condão de materializar a prática criminosa do “patrão”, sendo a situação uma via de mão dupla, pois se o associado está a serviço do patrão, a droga apreendida com o “patrão” também serviria para materializar o narcotráfico da “mula” ou “avião”, pois geralmente é essa figura que manuseia e está na posse do entorpecente.

Resta claro que a materialização do crime de tráfico pode dar-se de forma indireta, através de outros meios que possam comprovar a prática das condutas descritas no artigo 33, caput, da Lei 11.343/06, mormente as instantâneas, dentre as quais adquirir, vender e oferecer.

Assim, provas testemunhais e periciais (verbi gratia a degravação da interceptação telefônica), bem como a apreensão (materialização) da droga na posse dos investigados associados, o que se estenderia aos outros investigados, teriam o condão de comprovação da materialidade do crime de tráfico de drogas.

Notas

[2] Enquadramento legal.

[3] Pessoas aliciadas pelo tráfico exclusivamente para transportar drogas entre cidades, estados ou países.

[4] Emissário.
Sobre o(a) autor(a)
Ulisses Gabriel
Bacharel em Direito pela Unisul. Pós-Graduado em Direito pela Univali; Aprovado no Exame da Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional de Santa Catarina. Professor dos Cursos de Direito da Unisul e da Unibave. Professor da Academia...
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