A Lei Lily Ledbetter: em busca dos Direitos Humanos

A Lei Lily Ledbetter: em busca dos Direitos Humanos

Apresenta a lei de igualdade salarial americana, conhecida como “Lily Ledbetter Act”, dentro do panorama americano relacionando-a com os tratados internacionais que tratam do mesmo tema e seus possíveis impactos dessa legislação.

Histórico da Lei e seus objetivos

A lei Lily Ledbetter foi assinada pelo presidente Obama dos Estados Unidos da América em 29 de Janeiro de 2009. Trata-se da primeira lei assinada pelo presidente, que promoveu uma campanha pró-direitos humanos. A relação de Obama com as causas de Direitos Humanos não pode ser desconsiderada, não somente pelo seu conhecimento das leis como professor de Direito que fora, mas como presidente que teve mais apelo popular nas eleições. A assinatura da lei Lily Ledbetter, assim como outros atos iniciais de seu governo, aponta para uma virada de posição em relação ao presidente anterior. Bush foi um dos que vetou o projeto de lei de igualdade salarial.

Obama consagrou na lei Lily Ledbetter, a luta da trabalhadora que pouco antes de se aposentar como supervisora de uma grande empresa multinacional, que ganhara 60% da remuneração de seus colegas homens que exerciam o mesmo trabalho. A luta de Lily consagrada em lei foi fruto de uma ação mal-sucedida na Suprema Corte, que acabou em uma decisão apertada indeferindo o pedido de indenização e levando a discussão para questões processuais.

O objetivo da lei denominada de Lily Ledbetter não é apenas proibir a discriminação salarial em decorrência do gênero da trabalhadora, mas também proibir a desigualdade salarial advinda de discriminação devido à raça, cor, religião ou nacionalidade. Desse modo, o âmbito de aplicação da lei é muito maior, possibilitando uma maior proteção, uma vez que um número considerável de sujeitos de direito podem se beneficiar com essa lei. A lei Lily provoca algumas alterações em outras leis que cuidavam também de casos em que havia discriminação, em especial a Lei de Discriminação do Empregado devido à idade (1967) e da Lei dos americanos com desabilidades (1990). A lei Lily também altera disposições do título VII da Lei de Direitos Civis de 1964.

A lei textualmente diz que para configurar a discriminação salarial, deve haver uma decisão ou práticas que levem a situações semelhantes que tenham como objetivo discriminar. Isso pode levar a conclusão que a mera diferença salarial, não pode ser considerada discriminatória. Somente a diferença salarial com objetivo de discriminar é proibida.

Uma das grandes inovações da Lei Lily foi afastar a decisão da Suprema Corte, de que haveria um prazo para propor a ação, sob pena de se entender que não houve discriminação uma vez que a diferença salarial foi aceita pelo trabalhador. O prazo decadencial para poder exigir a reparação quando do recebimento de remuneração salarial discriminatória, seria de acordo com a Suprema Corte de 180 dias contados da discriminação. Foi exatamente o prazo que levou Lily Ledbetter a perder a ação proposta e não propriamente a não existência efetiva da discriminação. O não exercício do direito no prazo estabelecido levou o legislador supremo a entender que não se tratava propriamente de discriminação.

O caso de Lily Ledbetter somente vem a afirmar o quanto o processo judicial pode impedir o exercício dos Direitos, com base em consolidações de entendimentos jurisprudenciais. O prazo processual foi colocado como uma muralha para que Lily não conseguisse seus direitos salariais. A Suprema Corte reconhecer que Lily sofreu discriminação salarial seria um ato político muito além do que na época esta corte poderia fazer. Isso porque o combate à discriminação é um ato político e a luta de Lily teve de se deslocar da esfera do judiciário, para a esfera do político. A luta de uma mulher para proibir a diferença salarial por discriminação torna-se símbolo dos desejos de muitas e muitas pessoas discriminadas. A demanda no sentido individual se transforma em uma reivindicação política por igualdade.

Deve-se lembrar que esse prazo era estipulado pela Suprema Corte e que a lei Lily também não faz estipulação de prazos processuais. Isso leva alguns a entender que não há prazo processual limitativo para pedir a reparação devido à discriminações salariais, podendo essas diferenças salariais serem propostas a qualquer tempo. De certa forma, essa é uma grande inovação, em especial quanto à questões do âmbito do trabalho. Porém, a falta de prazo também propicia que o próprio empregador venha a corrigir possíveis discriminações salariais a qualquer tempo, por sua própria vontade, sem necessidade de ações judiciais para tal.

A lei Lily não apresenta grandes inovações se comparada a textos internacionais existentes, que afirmam a proibição de discriminação salarial. Porém, nos Estados Unidos a assinatura dessa lei pode indicar uma mudança nos rumos do Direito interno, ao trazer uma posição mais protecionista quanto aos direitos do trabalhador, que não pode ser negociado de qualquer modo e sem a interferência estatal.

Igualdade salarial como justiça familiar

A desigualdade salarial devido à discriminação por gênero está presente desde a implantação da industrialização, na desvalorização da mão de obra feminina. Há uma histórica desigualdade salarial entre homens e mulheres, que nasce e se mantém em todo o desenvolvimento capitalista. A luta feminista incluiu a necessidade de salários iguais, à medida que buscava uma igualdade de gêneros em todos os sentidos da vida em uma tentativa de diminuir a discriminação existente. Essa discriminação contra a mulher no mundo do trabalho ocorre não somente quanto ao salário, mas devido à própria condição de ser mulher, em especial relativo à gravidez. Milhares de argumentos foram construídos para reforçar a desigualdade entre os gêneros, para justificar uma discriminação que estava longe de ser natural ou biológica. Essa e outras discriminações foram historicamente e ideologicamente construídas e buscavam a inferiorização de uma parte da população, em benefício de outra parte, que conseguia auferir mais lucros com essa discriminação e mais poder.

A luta contra a discriminação das mulheres aparece como símbolo de todas as outras discriminações, na lei Lily, porque é justamente a que ainda hoje parece a mais utópica. Atualmente a discriminação por raça ou cor, religião ou nacionalidade, já está consolidada e é difícil uma pessoa que consiga manter a posição de que essas discriminações são naturais e necessárias, sem ouvir algumas vozes de protesto. Porém, a discriminação contra a mulher pelo simples fato de ser mulher, ainda é difícil de ser provada. Isso porque essa foi a discriminação mais naturalizada. Teorias foram construídas e institucionalizadas socialmente, afirmando que a mulher era um ser mais frágil, mais débil, que deveria se dedicar à maternidade e que quando trabalhasse seu trabalho nunca equivaleria ao trabalho do homem em importância social e valor. O trabalho da mulher na sociedade capitalista foi tido como necessário e fundamental em algumas épocas, em outras, reprimido, porém, nunca valeu o mesmo que o trabalho de um homem. Poderia valer metade ou algo mais, pois o trabalho feminino era tido no máximo como aquele trabalho que gerava uma complementação salarial à família. Desse modo, ganhos de 50 % a menos que os homens foram bem tolerados durante muito tempo, com base nessa ideologia da inferioridade do trabalho feminino.

Como essa discriminação salarial das mulheres estava calcada nessa ideologia que contaminava toda a maneira de pensar do século XIX e XX, essa foi a discriminação mais difícil de ser combatida. Porém, dar salários diferentes porque uma pessoa é mulher, pela sua condição de mulher, é simplesmente tão indigno e humilhante quanto dar salários diferentes a pessoas simplesmente porque elas são negras, porque elas são velhas ou porque são asiáticas. A discriminação de gênero é tão nocivo à sociedade quanto a discriminação por raça, cor, religião, sexo ou nacionalidade. A discriminação salarial faz parte de um processo mais geral de discriminação, que afasta à pessoa discriminada da sociedade, das mais diversas formas possíveis. Esse processo discriminatório somente pode acabar quando se tiver consciência que é nocivo à todos, porque somos todos humanos e habitantes da mesma casa chamada Terra.

O atual presidente dos Estados Unidos, Obama, ao assinar a Lei Lily fez declarações dizendo que a lei não coroava somente uma luta feminista por salários iguais, mas que era uma reivindicação por justiça familiar, uma vez que essa discriminação faz com que famílias recebam menos e tenham condições muito inferiores em diversos aspectos. O foco não foi dado apenas na luta das mulheres, mas trouxe a luta para a melhora da sociedade como um todo. Essa interessante consideração trouxe para o grande público uma outra perspectiva para encarar a luta pela igualdade salarial feita pelas mulheres. Como uma luta pela melhora das condições da família, ela toma contornos de uma luta digna de ser apoiada por todos, mesmo por aqueles que têm valores machistas muito arraigados. Ganhar igual não é uma demanda egoísta feminina, mas uma demanda social. Essa perspectiva somente pode ser aceita, porque as mulheres conseguiram quebrar muitos tabus discriminatórios e também porque não se pode falar que sua remuneração é complementar, quando em grande parte dos lares a remuneração da mulher é a única existente ou mesmo não pode ser desconsiderada para manutenção da família.

A dimensão do dinheiro na vida capitalista é essencial e a discriminação salarial, faz com que se perpetue a desigualdade social. Uma família que tenha uma renda x que foi obtida pelo salário de uma pessoa que sofreu discriminação salarial terá condições de vida inferiores a uma família em que a discriminação salarial não afetou o ou os membros provedores. Isso significa que a discriminação salarial, leva a um menor consumo de bens (sejam eles supérfluos, ou vitais, como comida) e traz a família uma condição inferior de morar, de lazer, de educação, etc. Menos dinheiro pode significar mais contato com a violência, ter uma vida menos saudável e mais curta. Em uma sociedade pautada no ter e no consumir, não poder exercer esses direitos é o mesmo que obrigar a pessoa a levar uma vida pela metade: é poder ser cidadão, mas nunca consumidor. A não discriminação salarial no mundo capitalista significa também uma efetivação dos direitos da pessoa humana, significa um reconhecimento de direitos e de busca por uma sociedade mais igual em oportunidades.

Possíveis impactos da lei Lily Ledbetter

As leis que lidam com intervenções do Estado na esfera do mundo do trabalho sempre causaram polêmica. A busca da não discriminação no âmbito salarial através de uma lei, em especial nos Estados Unidos, não poderia deixar de causar protestos. Dentre os queixosos há aqueles que entendem que a nova lei irá acarretar uma onda de ações indenizatórias, agravando ainda mais a crise financeira mundial. Porém, não se pode esquecer que esses queixosos que visam à maximização do ganho em detrimento da igualdade e da dignidade dos trabalhadores sempre existiram, e apesar das previsões catastróficas o capitalismo vem sobrevivendo com todos os direitos humanos.

A Lei Ledbetter provavelmente irá gerar efeitos muito mais simbólicos do que acarretar em uma corrida ao judiciário em busca de indenizações. A própria assinatura da lei pelo presidente Obama, reforçou os efeitos simbólicos da lei de igualdade salarial. Tornar uma ação infrutífera, em que existia uma injustiça profunda para a pessoa discriminada, em uma lei com efeitos para todos os norte-americanos, é afirmar uma posição política. Ser a primeira lei de um novo governo também mostra que essa lei foi tomada como símbolo de uma nova administração, que busca uma mudança.

Impedir a discriminação salarial é um ato que tem mais força simbólica do que efetiva. Isso porque antes já havia o impedimento à discriminação e entende-se que esse impedimento era para todas as discriminações. Existir uma lei para impedir a discriminação salarial, ou seja, de um assunto específico, reforça a importância do salário para essa sociedade que gira em torno do capital. A existência dessa lei também indica a quantidade de casos de discriminação e a impossibilidade de resolvê-los nos antigos moldes ideológicos-juridicos.

A desigualdade salarial decorrente de discriminação é difícil de ser erradicada, pois a ela se entrelaça com a própria discriminação. Uma mulher somente poderá provar que sofreu discriminação salarial, quando provar que ganhava menos, única e exclusivamente por ser mulher. Isso ocorre também para os outros sujeitos protegidos nessa lei. Porém, a discriminação salarial é mais ampla e ocorre mesmo antes da escolha da profissão ou carreira. Há profissões que ganham menos e outras que os ganhos são maiores e a possibilidade de opção das profissões, somente pode ocorrer verdadeiramente, quando a pessoa as condições materiais para poder escolher. Na sociedade capitalista ocidental poucos podem realmente escolher ter a profissão que sonharam, devido às limitações materiais. Assim, uma família que seu(s) provedor(es) sofre(m) com a discriminação salarial, podem não ter como de proporcionar condições de escolha de profissões à sua prole e esta terá poucas chances de ter um emprego que não seja segmentado para um gênero, cor, raça ou nacionalidade.

Além das condições materiais é fundamental a mudança ideológica para a não segmentação das profissões em bolsões de salários que não sofrem discriminação, dentro de um imenso campo de profissões em que essas e outras discriminações acontecem freqüentemente. A Lei Lily faz aumentar a força de que não pode haver discriminações salariais no âmbito do trabalho. É uma mudança grande, em termos de se alterar todo um histórico de aceitação da discriminação. Assim, a mudança que a lei Lily pode ocasionar na sociedade americana somente será sentida em longo prazo.

A igualdade salarial na legislação brasileira

A igualdade salarial no Brasil é prevista de duas maneiras distintas: uma que garante a igualdade salarial decorrente do princípio da igualdade e outra que garante a igualdade a partir da equiparação salarial. A primeira é geralmente dita como muito geral e por causa de sua generalidade, não é muitas vezes tomadas como lei, mas sim como um programa futuro que deve ser almejado, mas que não é possível sua exigência imediata. Entra-se com isso na infindável discussão sobre igualdade formal e material e na sua efetividade.

Essa igualdade em sua forma mais genérica, que impede não somente a discriminação salarial, mas a discriminação em geral está presente em uma série de dispositivos legais brasileiros, podendo-se citar o artigo cinco da Constituição Federal de 1988 como o mais famoso deles. Esse mesmo artigo veta a discriminação salarial. O artigo 373-A. da Consolidação das Leis do trabalho, inserido em 1999, também visa proibir a discriminação com base no salário, em especial àquela efetivada contra a mulher.

Alguns autores consideram que essas disposições são clausulas gerais ou mesmo normas programáticas. Essa diferenciação teórica faz com que essas normas exijam, mas não possam ser exigidas e se transgredidas sancionadas. A questão teórica levantada por alguns juristas é fundamental, pois a consolidação de seus entendimentos cria um entendimento sólido que essas normas não podem ser exigidas, porque não tem sanção. Porém, tudo não passa de uma construção teórica, ideologicamente consolidada e historicamente datada, que entende que o Direito somente é direito quando este está ligado à uma sanção.

A segunda maneira de se entender a igualdade salarial é através da noção de equiparação salarial. A equiparação é uma igualdade salarial que somente pode ser efetivada quando estão presentes todos os requisitos legais. O artigo 461 da Consolidação das Leis do Trabalho entende que para haver equiparação social é necessário: trabalho para mesmo empregador em mesma localidade, os empregados devem ter a mesma função e exercer trabalhos com a mesma produtividade e perfeição técnica. Assim, para se entrar com um pedido de equiparação salarial é preciso ter um empregado ao qual possa-se basear, o chamado “paradigma”. Esses requisitos dificilmente podem ser conseguidos nos casos em que a igualdade salarial é buscada judicialmente devido à discriminação.

Conclui-se, portanto, que a primeira maneira de se entender a igualdade salarial e que leva a proibição da discriminação, em muitas maneiras se parece com a própria Lei Lily. Não há nessa lei, como ocorre em muitas leis do sistema da “common law”, uma especificação detalhada dos atos proibitivos que levam a conduta discriminatória no que diz respeito ao salário, nem descrição de políticas públicas para melhorar a situação discriminatória existente. O juiz decidirá os casos futuros com base nessa proibição de discriminação salarial. No Brasil, em parte por seguir os sistema da “roman law”, em que as leis devem ser detalhadas ao extremo, sob pena de não ser executadas, e em parte por tentativa política de afastar uma lei que promove a igualdade salarial, o mesmo tipo de lei, não vem sendo aplicado. Há uma grande dificuldade em entrar com ações indenizatórias na esfera do judiciário trabalhista, para requerer indenizações advindas de discriminação salarial. Isso porque as provas necessárias, ainda são difíceis de produzir e fáceis de afastar, além de ser grande a possibilidade de afastamento da tese discriminatória. A segunda maneira de busca de igualdade, que é por equiparação, e mais objetiva quanto aos requisitos, mais tradicionalmente aceita no judiciário, dificilmente pode ser adequada para a discriminação salarial. Assim, o Brasil possui uma ampla gama de leis, porém não as aplica. Não se pode falar que o país não atenta na sua legislação para os direitos humanos, porém o desconsidera quanto dificulta a implantação da proibição efetiva, tanto na esfera do judiciário, quanto na esfera social.

Considerações Finais

A Lei Lily Ledbetter é um marco na história dos Direitos Sociais nos Estados Unidos, trazendo o Estado para proteger direitos trabalhistas e apontando para uma política mais ligada com os tratados internacionais de Direitos Humanos. Essa lei que trata da proibição da desigualdade salarial por motivos discriminatórios, simboliza uma preocupação com os trabalhadores não só como indivíduos trabalhadores, mas como contribuintes para a renda familiar. A repercussão causada pela lei Lily talvez seja maior do que propriamente seus efeitos diretos, ou em outras palavras, o efeito simbólico para evitar a discriminação será maior do que o número de ações que podem derivar dessa lei.

Sobre o(a) autor(a)
Gisele Mascarelli Salgado
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