Atualidades do porte de arma de fogo desmuniciada

Atualidades do porte de arma de fogo desmuniciada

Defende a tipicidade da conduta daquele que porta arma de fogo, mesmo que ela esteja desmuniciada.

1. Regulação sobre o porte ilegal de arma de fogo ou munição

O artigo 14 do Estatuto do Desarmamento (Lei nº 10.826-2003) proscreve a conduta de porte ilegal de arma de fogo, acessório ou munição de uso permitido com os seguintes termos: “Art. 14. Portar, deter, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa”. Na mesma linha, o art. 16 do mesmo diploma legal, no tocante aos artefatos congêneres de uso proibido ou restrito.

A regulação anterior (Lei nº 9.437/97) também caminhava em direção semelhante, porém com penas mais brandas.

2. A polêmica sobre a tipicidade da conduta de portar arma de fogo desmuniciada

Sob o ponto de vista da tipicidade formal, não resta dúvida que os arts. 14 e 16 do ED não fazem distinção se o indivíduo porta arma desmuniciada ou não, ocorrendo em ambos os casos a adequação típica reclamada para configuração da tipicidade formal.

Hoje, no entanto, a doutrina é praticamente unânime no sentido de que a análise da tipicidade não deve se restringir ao seu aspecto adjetivo, devendo haver também conformação material para se concluir pela imputação do fato ao autor.

Sob esse aspecto, a discussão em epígrafe chegou à Corte Suprema, onde em sede de RHC (cuja decisão, por óbvio, produziu efeitos exclusivamente inter partes) foi decidido pela Primeira Turma, por maioria de votos, pela adoção da tese da atipicidade quando o porte for de arma de fogo desmuniciada, desde que também não haja munição facilmente acessível ao portador.

O decisum em questão trata-se do RHC 81057-SP, relatado pelo Ministro Sepúlveda Pertence, extraindo-se do seu voto o seguinte trecho que bem demonstra a posição adotada:

(...) 30. Se o agente traz consigo a arma desmuniciada, mas tem a munição adequada à mão, de modo a viabilizar sem demora significativa o municiamento e, em conseqüência, o eventual disparo, tem-se arma disponível e o fato realiza o tipo.

31. Ao contrário, se a munição não existe ou está em lugar inacessível de imediato, não há a imprescindível disponibilidade da arma de fogo, como tal – isto é, como artefato idôneo a produzir disparo – e, por isso, não se realiza a figura típica. (...)

Nesse enfoque adotado pelo Supremo, não haveria lesividade (ofensividade) na conduta da pessoa que porta arma de fogo nas condições já declinadas, excluindo-se, por tal razão, a tipicidade material.

A construção teórica sustentadora dessa posição parte da premissa que o bem jurídico protegido pela norma sob foco (incolumidade pública) não é ofendido quando a arma de fogo está desmuniciada e sem fácil acesso do agente à munição.

Daí Luiz Flávio Gomes e William Terra de Oliveira (2001), abordando a temática, afirmarem que:

Considerando que o bem jurídico protegido pela lei é a incolumidade pública, ou por outra, um certo nível de segurança coletiva (já que é impossível ao Estado garantir a todos a plena segurança) somente teremos um delito se o agente obrar de maneira a afetar, imediata e significativamente (leia-se – de forma relevante para o Direito Penal) o status desse almejado grau de segurança coletiva.

Na realidade, Luiz Flávio Gomes, cuja doutrina, segundo pensamos, influenciou decisivamente no entendimento do STF ora comentado, defende que os crimes de perigo abstrato não devem se sustentar no ordenamento jurídico-penal por conta de violação ao princípio da ofensividade (2007, pp. 524-525). Referida corrente dogmática, contudo, não encontra ressonância entre a maioria dos juristas pátrios. E, os contrapositores à tese da atipicidade do porte de arma desmuniciada, justamente sustentam sua posição na interpretação que o tipo incriminador do porte ilegal de arma de fogo seja de perigo abstrato, donde não exigível a efetiva exposição a risco do bem jurídico protegido, sendo esta presumível (nesse sentido o voto a Ministra Ellen Gracie no RHC 81057-SP).

3. A evolução da discussão jurisprudencial após o julgamento do RHC 81057-SP

Na atualidade, o STJ continua firmando sua posição contrária àquela sustentada no RHC em destaque.

Nesse sentido:

PENAL. RECURSO ESPECIAL. ARTIGO 14 DA LEI Nº 10826-03. PORTE ILEGAL DE ARMA. TIPICIDADE. ARMA DESMUNICIADA. IRRELEVÂNCIA PARA A CONFIGURAÇÃO DO DELITO. REGIME PRISIONAL ABERTO. REITERAÇÃO DE PEDIDO. PREJUDICADO.

Na linha de precedentes desta Corte, pouco importa para a configuração do delito tipificado no art. 14 da Lei 10.826-2003 que a arma esteja desmuniciada, sendo suficiente o porte de arma de fogo sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar (Precedentes do STJ).

Recurso provido.

(Resp 913.088-SP, DJ de 03-09-2007, Rel. Min. Félix Fischer).

No STF, apesar da decisão da Primeira Turma, no RHC 81057-SP, julgado em 25-05-2004, a questão não está pacificada. Tanto isso é verdade que no HC 85240-SP (submetido ao Plenário), onde não se chegou a um julgamento de mérito sobre a controvérsia, por se entender prejudicado o pleito por razões processuais, o relator, Ministro Carlos Britto, proferiu seu voto, em 05-10-2005, tomando direção totalmente divergente da orientação prevalecente no julgamento do RHC 81057-SP, conforme registrado no Informativo nº 404 do STF:

O Tribunal iniciou julgamento de habeas corpus impetrado em favor de condenado pela prática do crime previsto no art. 10 da Lei 9.437/97 (porte ilegal de arma), no qual se pretende a nulidade da sentença, sob alegação de atipicidade da conduta, em razão de a arma portada estar desmuniciada. O Min. Carlos Britto, relator, denegou a segurança por entender, na linha do voto da Min. Ellen Gracie no julgamento do RHC 81057/SP (DJU de 29.4.2005), que o porte da arma, ainda que sem munição, configura o tipo penal em análise, que é crime de mera conduta e de perigo abstrato, sendo que o fato de estar desmuniciado o revólver não o desqualifica como arma, haja vista que a ofensividade de uma arma de fogo não está apenas na sua capacidade de disparar projéteis, mas também no seu potencial de intimidação. Ressaltou que os objetivos da Lei 9.437/97 foram o de impedir que a arma seja usada como instrumento de ataque, bem como de evitar que haja risco de constrangimento de quem possa se sentir ameaçado pelo sujeito portador do artefato, ocasionando sensação de insegurança coletiva, ante o descrédito na eficácia das próprias instituições juridicamente incumbidas de velar pela ordem pública e pela incolumidade das pessoas e de seus respectivos bens materiais (CF, art. 144). (...)

4. Porte ilegal de munição

Quanto ao porte ilegal de munição, a construção jurisprudencial, tanto do STJ (vide, por exemplo, o Resp 883824-RS, julgado em 28-06-2007) quanto do STF [1] é no sentido do fato ser típico, independentemente de haver no mesmo contexto porte de arma de fogo.

5. Porte ilegal de arma de fogo com numeração de identificação suprimida

Com fulcro no precedente genérico de que o porte de arma de fogo desmuniciada constituir-se-ia fato atípico, foi levado ao STF recurso no qual se almejou consagrar tal entendimento também quando a arma esteja com seu sinal de identificação suprimido. A Corte Suprema, contudo, não acolheu tais argumentos, aduzindo-se que:

Quanto ao argumento de atipicidade da conduta em face da ausência de lesividade da arma de fogo apreendida por estar ela desmuniciada e não haver, nos autos, comprovação de munição portada pelo recorrente, esclareceu-se que se teria, na espécie, hipótese diversa da analisada quando do julgamento do RHC 81057/SP (DJU de 29.4.2005), já que se tratara, naquela ocasião, do art. 10 da Lei 9.437/97, substituído, no sistema jurídico, pela norma do art. 14 da Lei 10.826/2003. Afirmou-se que o tipo do inciso IV do parágrafo único do art. 16 da Lei 10.826/2003 é um tipo novo, já que, na Lei 9.437/97, punia-se aquele que suprimisse ou alterasse marca, numeração ou qualquer sinal de identificação de arma de fogo ou artefato. Assim, a nova figura teria introduzido cuidado penal inédito do tema, tipificando o portar, possuir ou transportar a arma com a supressão ou alteração do número de série ou de outro sinal de sua identificação, independentemente de a arma de fogo ser de uso restrito, proibido ou permitido, tendo por objeto jurídico, além da incolumidade, a segurança pública, ênfase especial dada ao controle pelo Estado das armas de fogo existentes no país, pelo que o relevo ao municiamento ou não da munição da arma que se põe nos tipos previstos no caput dos artigos 14 e 16 da Lei 10.826/2003 não encontraria paralelo no inciso IV do parágrafo único deste último dispositivo.

(Fonte: Informativo nº 494 do STF. Decisão referente ao 89889-DF, relatora Ministra Cármen Lúcia, 14.02.2008)

Decidiu-se, portanto, que em se tratando da conduta de “portar, possuir, adquirir, transportar ou fornecer arma de fogo com numeração, marca ou qualquer outro sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado” (art. 16, IV, da Lei nº 10.826-2003), torna-se desimportante, para fins de configuração desse crime, o fato da arma está desmuniciada, visto que o objeto jurídico tutelado in casu é a segurança pública, considerando-se que a arma com sinal suprimido dificulta ou inviabiliza o controle estatal sobre a mesma, lesionando assim a tranqüilidade coletiva.

6. Conclusão

Com a devida vênia, entendemos divorciada da realidade a corrente interpretativa que pugna no sentido de considerar atípico o fato do indivíduo portar arma de fogo desmuniciada. Ora, acaso prevaleça esse entendimento, qualquer pessoa poderá andar armada, desde que tome o cuidado para não ser flagrada portando a munição, não estando sujeita a qualquer sanção por conta dessa conduta. Qualquer valentão poderá, por exemplo, andar com um revólver no carro ou mesmo na cintura, deixando a munição escondida até o momento que precisar lançar mão da mesma.

Felizmente, nossos tribunais superiores possuem julgadores cuja intelecção teórica tem maior aproximação com o cotidiano da sociedade, e que certamente não permitirão que a interpretação eleita com sólidos argumentos dogmáticos no RHC 81057-SP não se torne uma unanimidade.

Ressalte-se que no RHC mencionado discutiu-se o caso de um homem, antes já condenado por roubo, e que na nova situação apenas foi flagrado portando uma arma de fogo desmuniciada. Considerou-se no julgado que essa conduta não feria o bem jurídico protegido pela norma, esquecendo-se os defensores dessa tese, não obstante, que as pessoas quando se armam normalmente não fazem isso despretensiosamente, mas sim almejando um fim específico. E, ainda, que o tipo penal é criado para ser útil em um mundo real, e não em uma realidade utópica.

Será, por exemplo, que alguém ficaria tranqüilo se soubesse que um desafeto seu está armado, rondando a frente de sua casa, somente pelo fato da arma está possivelmente desmuniciada?

Desse modo, entendemos que tanto o porte quanto a posse de munição sem a arma e de arma sem munição, configuram fato típico, por serem crimes de perigo abstrato, nos exatos moldes estipulados pelo Estatuto do Desarmamento. Entendimento contrário, acaso consagrado, tornará praticamente inócua a intenção do legislador, abstraída desse instrumento legal, de desarmar a população brasileira.

Referências

[1] Vide HC’s 90075-SC e 92533-RS, ambos ainda pendentes de julgamento na 2ª Turma, mas já com votos a favor da tese de tipicidade da conduta de quem porta somente munição sem a arma para utilizá-la.

Sobre o(a) autor(a)
Gecivaldo Vasconcelos Ferreira
Delegado de Polícia Federal e professor de Direito Penal das Faculdades Integradas do Tapajós.
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