Medidas provisórias: um instituto ditatorial em nosso regime político

Medidas provisórias: um instituto ditatorial em nosso regime político

As medidas provisórias foram criadas com o argumento de que o processo legislativo é moroso demais para cuidar de questões relevantes e urgentes. Trata-se, porém, de uma medida autoritária, totalmente dispensável em um regime democrático.

A medida provisória é um instrumento legislativo excepcional no quadro jurídico brasileiro. Não é lei, pois não é editado pelo Poder Legislativo, mas pelo chefe do Executivo. Tem força de lei, mas apenas por tempo determinado, pois deve ser aprovada pelo Legislativo para tornar-se lei. Seus requisitos também são peculiares: a relevância e a urgência do tema tratado.

Democracia é um regime político que custa caro. O Brasil gasta vários bilhões de reais anualmente para sustentar parlamentos em todos os entes federativos, sem contar o custo bienal das eleições, realizadas em todo território nacional. Certamente, não é o regime mais eficiente, caso a relação custo-benefício seja colocada puramente em termos econômicos. Em uma ditadura, as decisões políticas têm um custo bem menor, tanto em termos financeiros quanto em tempo decorrido.

Escolher a democracia à ditadura não é, portanto, uma decisão pragmática. Pelo contrário, essa tomada de posição contrapõe-se a cálculos de eficiência total no exercício do poder, no melhor estilo maquiavélico. O regime democrático torna, de fato, a política uma arte mais imprevisível e demorada. Talvez, lenta demais para os padrões supervelozes dos tempos atuais.

O que faz a democracia um regime, às vezes, tão “lento” é a absoluta necessidade da procedimentalização na tomada das decisões estatais. Procedimentalizar significa simplesmente que os atos estatais – sejam administrativos, políticos, legislativos ou judiciais – devem, necessariamente, ser precedidos de outros atos cuja função é permitir, ao máximo, a participação popular na formação do ato final. A democracia não é condizente com decisões tomadas de inopino, sem a possibilidade de participação popular, direta e indiretamente, por intermédio de seus representantes. Tudo o que o Estado faz sem esse procedimento é simplesmente ilegítimo, por carência de representatividade popular.

Neste momento, é importante destacar que a eleição de representantes não esgota o procedimento democrático. Na verdade, essa é apenas uma das variadíssimas possibilidades de participação popular no Estado. E, atualmente, a mais desgastada. É preciso uma dose bastante forte de idealismo para acreditar que os políticos eleitos pelo voto popular são, de fato, seus representantes, e não de determinados grupos, defendidos por lobbies poderosíssimos.

Ora, a democracia, como já foi elegantemente definida, não é apenas o regime em que o povo escolhe seus representantes para governá-lo, mas também o regime em que o povo escolhe como quer ser governado. Como visto, quanto maior a possibilidade de interferência popular na formação da decisão estatal, maior é a legitimidade do ato. Não se trata apenas de utilizar os institutos, praticamente ignorados, do plebiscito, do referendo e do projeto de lei de iniciativa popular. Mas também podem ser utilizados institutos cada vez mais atuais, como as ouvidorias, as consultas públicas e as audiências públicas.

Democracias e ditaduras dificilmente são encontradas em suas formas puras. Não há como negar, por exemplo, que Cuba e China são ditaduras totalitárias. Da mesma forma, é impossível excluir o Canadá e a Suíça da categoria de democracias plenas. Porém, a não ser por esses e outros pouquíssimos exemplos, a quase totalidade dos Estados ocupa uma zona cinzenta, mais próxima e tendendo a um regime democrático ou totalitário. Bolívia, Equador e Venezuela, por exemplo, são países em que a existência de eleições impede sua caracterização como ditaduras no estado puro; mas as medidas cerceadoras da liberdade indicam que, nessas nações, o pêndulo tende cada vez menos para a democracia.

E o Brasil? Os rankings internacionais não o colocam em uma posição muito confortável: de acordo com a ONG World Audit Democracy, o Brasil ocupa um desconfortável 52° lugar entre 150 países. Na América Latina, está bem abaixo de Chile (21° lugar), Uruguai (22° lugar) e Costa Rica (25° lugar). O que explicaria tal colocação, tendo em vista que a Constituição de 1988 é repetidamente considerada como “cidadã”? O que falta para atingir o nível de Finlândia, Dinamarca e Suíça, os países mais democráticos do mundo?

Há várias razões para isso, boa parte delas decorrente da falta de uma cultura democrática na história brasileira. O período democrático é insignificante quando se consideram os mais de 500 anos de história. Porém, este artigo tem a pretensão apenas de analisar uma faceta ditatorial da democracia brasileira: a medida provisória.

Trata-se de um imenso poder que, desde sua criação na Constituição de 1988, foi repetidamente utilizado pelos presidentes da República. Até a Emenda Constitucional 32/2001, que alterou a tramitação das MPs, foram editadas 2.230 delas, sem contar as reedições (às vezes dezenas, para cada uma). Depois dessa emenda, foram editadas ainda 444 MPs, sendo a última do dia 30 de outubro de 2008. A avalanche das medidas provisórias simplesmente transformou o Legislativo em um apêndice do Executivo. Em quase todos os anos, desde 1988, a maioria das leis aprovadas pelo Congresso Nacional foi decorrência de MPs e de projetos de lei do Poder Executivo.

O que faz das medidas provisórias um instrumento ditatorial? Em primeiro lugar, seu uso indiscriminado. Sob a leniência do Poder Judiciário, os requisitos de urgência e de relevância foram elastecidos ao máximo. Tudo que fosse da conveniência do presidente da República poderia ser considerado “relevante e urgente”, mesmo aquelas situações que claramente não contém essas características. A última (pelo menos até o fechamento deste artigo), por exemplo, autoriza a doação de alimentos a países da América Central, tema que, com certeza, está longe de possuir esses requisitos.

Mesmo que, hipoteticamente, o presidente da República fosse cauteloso ao extremo no uso das MPs, ou seja, que as utilizasse apenas quando explicitamente comprovados os requisitos de relevância e de urgência, esse instrumento seria ditatorial. O motivo é simples: a desobediência ao requisito fundamental da procedimentalização. A decisão presidencial é tomada sem nenhum ato anterior que lhe confira legitimidade, sem que haja o mínimo de participação popular.

É apenas um ato a ser referendado pelo Legislativo. Ao contrário do projeto de lei de iniciativa do Executivo, a MP já produz efeitos desde sua publicação. É natural que o Congresso sinta-se pressionado a aprovar algo que já está em vigor, pois desfazer os efeitos desse ato pode ser bastante problemático. Para se ter uma idéia, das 35 MPs apreciadas no ano de 2008, 31 foram aprovadas, ou seja, foi atingida a impressionante marca de 86% de aprovação!

Guardadas as devidas proporções, a aprovação de uma MP é como uma constituição elaborada por um ditador e, logo depois, submetida ao referendo popular. Nesse caso, a constituição, denominada de cesarista, não se torna legítima com a aprovação popular, pois seu vício vem da origem, da própria elaboração. É um vício de tal magnitude, que torna o ato absolutamente ilegítimo, sem possibilidade de nenhuma convalidação.

Em tempos de crise internacional e de extrema volatilidade dos mercados financeiros, torna-se muito interessante a comparação entre as soluções legislativas buscadas pelo Brasil e pelos tão atacados Estados Unidos (15° lugar em democracia), Em primeiro lugar, deve ser ressaltado o fato de que nenhum dos dois países foi exatamente ágil no ataque à crise, que já dava seus primeiros sinais em 2007.

O que distingue os dois países e deve servir-nos de reflexão é o modo como tentou-se debelar a crise. O pacote norte-americano incluiu diversas e radicais medidas, como a ajuda de centenas de bilhões de dólares a instituições financeiras. Foi enviado ao Congresso Nacional em regime de urgência e votado em pouquíssimos dias. Porém, o pacote foi rejeitado na Câmara, o que impeliu o governo a modificá-lo. Finalmente, foi aprovado poucos dias depois, com as modificações exigidas pelos congressistas. É um exemplo perfeito de procedimento democrático.

No Brasil, não houve tempo para as delongas democráticas. A urgência e a relevância do tema fizeram com que o governo editasse a Medida Provisória 442, que, longe da complexidade e do alcance do pacote norte-americano, dispõe apenas sobre operações para aumentar a liquidez no mercado. A MP ainda não foi apreciada pelo Congresso Nacional, mas, dada a situação atual, há alguma dúvida de que será aprovada?

Outro exemplo de desprezo à democracia veio poucos dias depois. O ministro da Economia e o presidente do Banco Central compareceram ao Congresso Nacional para detalhar as providências do governo no combate à crise. Exatamente no dia seguinte, sem nenhum aviso prévio aos parlamentares, foi editada a MP 443, que autorizou o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal a adquirirem participações em instituições financeiras privadas. Também, nesse caso, ainda não houve apreciação pelo Congresso Nacional, mas, quase certamente, a MP será aprovada em sua integralidade.

A comparação entre as soluções adotadas pelo Brasil e pelos Estados Unidos traz um incômodo (seríamos tão democráticos quanto se é propagado?) e principalmente, uma lembrança: não se pode abrir mão de princípios fundamentais em nome de maior eficiência e rapidez na tomada de decisões. Afinal de contas, em nome dessa agilidade (ou de qualquer outro motivo estabelecido como de “interesse público”) a democracia pode tornar-se gradativamente uma ditadura. Que o digam nossos vizinhos sul-americanos...

Sobre o(a) autor(a)
Alexandre Magno Fernandes Moreira
Procurador do Banco Central em Brasília. Professor de Direito Penal e Processual Penal da Universidade Paulista. Editor do site: www.alexandremagno.com.
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