A responsabilidade do Estado e o nexo de causalidade

A responsabilidade do Estado e o nexo de causalidade

Analisa a responsabilidade do Estado, discorrendo acerca de sua evolução histórica e enfatizando a importância de uma séria averiguação da real existência de nexo de causalidade para a perfeita aplicação do instituto.

A Responsabilidade do Estado não se resume à simples noção de que esse sempre responderá pelos danos, diretos ou indiretos, relacionados à atuação da Administração Pública, independentemente de culpa, como pode sugerir uma leitura apressada da norma contida no parágrafo 6º do artigo 37 da Constituição Federal de 1988.

Por isso tornam-se relevantes algumas ponderações acerca dos desdobramentos e elementos contidos no conceito da responsabilidade do Estado, a fim de facilitar a correta aplicação desse conceito e de evitar aquilo que o Ministro Gilmar Mendes chama de “apropriações indevidas de recursos da sociedade brasileira [1] por meio de uma ilegítima utilização dos instrumentos normativos destinados à proteção da cidadania.

Segundo ensinamento de Clóvis Beviláqua, o fundamento da responsabilidade Estado é o princípio de justiça segundo qual toda lesão de direito ou dano devem ser reparados, de modo que “o Estado, tendo por função principal realizar o direito, não pode chamar a si o privilégio de contrariar, no seu interesse, esse princípio de justiça". [2]

Três foram os períodos de desenvolvimento da responsabilidade do Estado.

O Período da Irresponsabilidade do Estado teve seu apogeu nos países absolutistas em que a figura do soberano era sagrada e intocável, não sujeito a qualquer tipo de responsabilização.

O Período Civilista, conhecido também como intermediário ou misto, temperava a idéia de responsabilidade com a de irresponsabilidade, por meio de uma distinção entre atos de gestão e atos de império, incutindo àqueles a noção de culpa civil.

O Período Publicista, afastou a responsabilidade do Estado das regras do direito comum, entre elas a teoria do ilícito civil, mais ligada à culpa, e trouxe o conceito de risco, donde surgiu a Teoria do Risco, ou Teoria Objetiva, fundada na idéia de que os danos causados ao particular pela atuação do Estado devem ser socializados porque ocorreram enquanto se perseguia o benefício de todos, ou seja, na medida em que a atuação estatal traz benesses para toda a sociedade, conseqüentemente, deve haver uma distribuição igualitária dos ônus e encargos[3] sofridos na busca dos benefícios sociais.

Foi a partir da construção da idéia de Estado Democrático de Direito, o qual submeteu o Estado à lei constitucional e reconheceu a existência de determinados direitos fundamentais, como garantia de defesa contra os abusos do Poder Estatal, que despontou a tendência de se prever a responsabilidade objetiva do Estado pelos danos causados aos particulares. [4]

O direito brasileiro não passou pelo Período da Irresponsabilidade do Estado[5], porque, em que pese a Constituição do Império de 1824 e a Constituição Federal de 1891 não preverem a hipótese de responsabilidade do próprio Imperador ou do Estado, havia, de qualquer forma, a responsabilidade dos funcionários por seus atos culposos[6], ou seja, já se tratava do Período da Civilista.

Desde a Constituição Federal de 1946 que no Brasil se adota a Teoria do Risco Administrativo, também chamada de Teoria do Risco Criado ou, ainda, de Teoria da Responsabilidade Objetiva[7], atualmente fundada no parágrafo 6º do artigo 37 da Constituição Federal de 1988. Assim, o ponto nevrálgico da Responsabilidade do Estado deixou de ser a culpa do funcionário e passou a ser a verificação do nexo de causalidade entre a ação ou omissão e o dano ou lesão sofrida pelo terceiro.

O termo “nexo” significa vínculo, ligação, união; enquanto “causalidade” é a relação de causa e efeito. Entendendo-se, então, por nexo de causalidade “o vínculo, o elo entre a atividade estatal e o dano produzido ao terceiro". [8]

A necessidade de existência desse elo entre o dano reclamado e a atividade ou omissão do Estado é assim referida por Yussef Said Cahali: “...a responsabilidade da Administração Pública, desvinculada de qualquer fator subjetivo, pode, por isso, ser afirmada independentemente de demonstração de culpa - mas está sempre submetida, como é óbvio, à demonstração de que, foi o serviço público que causou o dano sofrido pelo autor”. [9]

Sendo justamente nisso que reside o problema da responsabilidade do Estado, pois, conforme alertado pelo Ministro Gilmar Mendes[10], devido a amplitude do conceito de responsabilidade objetiva e a superficialidade ou benevolência na verificação do nexo de causalidade, algumas decisões têm transformado o Estado num “pródigo e autofágico segurador universal”[11], com reflexos negativos para toda a sociedade.

Reconhecendo-se que o Estado nada mais é que a união dos esforços e das contribuições de toda a sociedade, não é justo que fique sem a devida reparação o indivíduo que sofra um prejuízo decorrente de uma ação estatal, ainda que sem culpa da Administração, por ser presumido que, por agir o Estado em função do bem comum, aquele ato trouxe benefício social, cujos ônus devem ser socializados. Essa é a essência da Teoria do Risco Administrativo.

Por outro lado, deve-se ter cuidado especial tanto com a análise da real existência do liame entre o dano sofrido pelo terceiro e a ação ou a omissão culposa, essa derivada da inadimplência do dever de agir[12], como com a existência de possíveis excludentes de responsabilidade, porque, do contrário, estar-se-á subvertendo a intenção do legislador constituinte, tornando a inspiradora idéia de Justiça Social numa fonte de locupletamento ilícito.

A Teoria do Risco Administrativo, ao contrário da Teoria do Risco Integral, admite a prova das excludentes de responsabilidade, ou seja, culpa da vítima – ou de terceiro – força maior ou caso fortuito, por terem o condão de desfazer, romper, o liame causal imprescindível à responsabilização do Estado.

Quanto ao nexo de causalidade, o Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE 130.764 assentou que a teoria adotada é a do dano direto e imediato, também denominada Teoria da Interrupção do Nexo Causal, que “só admite o nexo de causalidade quando o dano é efeito necessário de uma causa, o que abarca o dano direto e imediato sempre, e, por vezes, o dano indireto e remoto, quando, para a produção deste, não haja concausa sucessiva”, conforme explica o professo Agostinho Alvim[13], citado no referido acórdão.

Em ambas as hipóteses – inexistência de nexo de causalidade ou a existência de excludente de responsabilidade – o ônus da prova caberá ao Poder Público.

Percebe-se que a Responsabilidade Estatal no estágio doutrinário e jurisprudencial que se encontra não carece de revisões, pois em perfeita consonância com o sentimento comum de Justiça Social, consubstanciado na idéia da socialização dos prejuízos decorrentes da atividade ou inatividade culposa do Estado, dado que presumidamente ocorreu em busca do bem comum.

O que precisa ser aperfeiçoada é sua aplicação, especialmente no que diz respeito à averiguação da ocorrência do nexo de causalidade, evitando-se que se confundam as “meras correlações com a causalidade” [14], e da inexistência de quaisquer excludentes de responsabilidade.

Diante dessas breves considerações, pode-se perceber que o estudo da Responsabilidade do Estado é um assunto complexo e que exige detida reflexão, pois o descuido numa situação concreta poderá impor um injusto ônus ao prejudicado ou a sociedade, caso o pedido indenizatório seja julgado improcedente ou procedente, respectivamente, subvertendo-se com isso a intenção inicial de Justiça Social.



Referências bibliográficas


[1] MENDES, Gilmar Ferreira; Mártires Coelho, Inocêncio e Gonet Branco, Paulo Gustavo. Curso de Direito Constitucional – São Paulo: Saraiva, 2007.


[2] Código Civil do Estados Unidos do Brasil. Edição histórica. 7. tir. Rio de Janeiro: Editora Rio, v.1, [s.d.], p. 214-215.


[3] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 14. ed. São Paulo: Atlas, 2002. p. 527. A autora diz: “...princípio da igualdade de ônus e encargos sociais.”.


[4] Cf. CARVALHO DIAS, Ronaldo Bretãs de., Assunto Especial. Responsabilidade Civil do Estado. Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil n. 29. maio/junho., 2004. Porto Alegre: Síntese.


[5] MENDES, Gilmar Ferreira. Ob. Cit., pag. 797.


[6] Kiyoshi Harada sustenta que esse período deve ser encarado como de irresponsabilidade do Estado. Vide seu texto: HARADA, Kiyoshi. Responsabilidade Civil do Estado. Jus Navigandi, Teresina, ano 4, n. 41, maio de 2000.


[7] “A responsabilidade objetiva, insculpida no art. 194 e seu parágrafo, da CF de 1946, cujo texto foi repetido pelas Constituições Federais de 1967 e 1969, arts. 105-107, respectivamente, não importa no reconhecimento do risco integral, mas temperado. Invocada pela ré a culpa da vítima e provado que contribuiu para o dano, autoriza seja mitigado o valor da reparação.” (Catharina Pugliese versus União. Acórdão lavrado no julgamento do RE 68.107/SP, Rel. Min. THOMPSON FLORES, em 04.05.70. Revista Trimestral de Jurisprudência, Brasília, v. 55, p. 50-54, jan. 1971.


[8] Weiler Siqueira, Bruno Luiz. “O nexo de causalidade na responsabilidade patrimonial do Estado”. 


[9] CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade Civil: doutrina e jurisprudência. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 376. (RJTJSP, 68:145).


[10] MENDES, Gilmar Ferreira. Ob. Cit., pag. 797.


[11] FREITAS, Juarez. “Responsabilidade Civil do Estado e o Princípio da Proporcionalidade”, artigo publicado em 19.01.2006. 


[12] “...somente haverá omissão, no sentido juridicamente relevante, se houver um prévio dever legal de agir...” MENDES, Gilmar Ferreira. Ob. Cit., pag. 801.


[13] Alvim, Agostinho. Da inexecução das obrigações, 5ª ed., n. 226, pag. 370, Editora Saraiva, São Paulo, 1980.


[14] FREITAS, Juarez. ob. cit.

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Henrique Lima
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