Reflexões sobre a forma de apropriação da amortização em financiamentos habitacionais

Reflexões sobre a forma de apropriação da amortização em financiamentos habitacionais

Pretende abordar, à luz dos preceitos técnicos e jurídicos aplicáveis, o momento de apropriação das parcelas de amortização no SFH, consoante imperativos legais e princípios financeiros pertinentes.

Ponto controvertido já bastante vergastado, porém, dificilmente olvidado na confecção de peças que vêm a inaugurar, a cada dia, novas discussões judiciais no âmbito do direito imobiliário, cinge-se à diretriz operacional a ser empregada para a apropriação das parcelas de amortização resultantes da paga periódica.

Arrimados na interpretação literal do estatuído na alínea “c” do art. 6º do manto legal que concebeu o Sistema Financeiro da Habitação, qual seja, a Lei 4.380/64, alguns causídicos, e até mesmo técnicos, alistam-se à tese da necessidade de se priorizar a amortização do saldo devedor em detrimento de sua revitalização monetária.

Para um melhor entendimento, confira-se, na seqüência, o teor do referido dispositivo legal, “in verbis”:

c.) ao menos parte do financiamento, ou do preço a ser pago, seja amortizado em prestações mensais sucessivas, de igual valor, antes do reajustamento, que incluam amortização e juros;”

grifo não original

Desta forma, a prevalecer a referida linha interpretativa, o valor pago pelo mutuário, descontado dos encargos remuneratórios e demais verbas acessórias devidas, seria prioritariamente destinado ao abatimento do saldo devedor registrado no mês imediatamente anterior, sendo desconsiderado, portanto, os corrosivos efeitos inflacionários a que este restou vitimado no período.

Pagar-se-ia, portanto, valores com representatividade econômica atual, porém, abater-se-ia de saldo devedor contábil com expressão aquisitiva nominal estagnada no período (mês) imediatamente anterior, apesar do considerável e inolvidável processo inflacionário que se fazia presente e - não obstante os titânicos esforços direcionados a sua mitigação – ainda nos acompanha.

A análise do esboço gráfico declinado na seqüência permite vislumbrar que, à luz da referida tese, apesar dos efeitos inflacionários ocorridos no aludido interstício temporal, as parcelas de amortização seriam cotejadas com o saldo devedor do instante imediatamente anterior:


Portanto, a parcela de amortização identificada para o instante “1” seria apropriada sobre o saldo devedor verificado no instante “0”, a amortização atinente ao instante “2” sobre o saldo devedor do instante “1”, a do instante “n” sobre o saldo devedor do período “n - 1”, e assim sucessivamente.

Apesar da aludida tese, s.m.j., restar respaldada em argumento único, qual seja, suposta disposição literal em texto legal, chegou até mesmo a conquistar a respeitável aquiescência do extinto Tribunal de Alçada do Paraná, o qual assim fez constar no Enunciado 33 do CEDEPE, “in verbis”:

Nos financiamentos imobiliários a amortização da prestação, incluindo os juros, deve ser feita antes da correção do saldo devedor

grifo não original

Desnudando-se de convicções pessoais e entregando-se à análise isenta do referido dispositivo, denota-se que nem mesmo a interpretação literal goza de unanimidade quanto à subsidiar-se a parcela de amortização em detrimento da atualização monetária do saldo devedor.

Muitos intérpretes jurídicos e técnicos militam no sentido de que o termo “antes do reajustamento” - contido no dispositivo legal que germinou a controvérsia - refere-se, na verdade, a um aposto à expressão de “igual valor”, delineando que as prestações mensais sucessivas somente seriam de “igual valor” “antes do reajustamento”. Processado tal evento, tornar-se-iam nominalmente distintas, não obstante conservarem valor real intacto.

Assim, o referido dispositivo apregoaria, de forma implícita, a avença e incidência do Sistema Price de Amortização (também conhecido como Sistema de Prestações Constantes, Sistema Francês de Amortização e, nacionalmente, como Tabela Price), única metodologia cientificamente reconhecida apta a proporcionar prestações de “igual valor” “antes do reajustamento”.

O fato do termo “antes do reajustamento” reportar-se ao momento temporal em que se daria à igualdade nominal das prestações, foi alvo de maiores esclarecimentos através da RC 29/65 editada pelo Conselho de Administração do BNH – Banco Nacional de Habitação, entidade, à época, gestora da referida modalidade de financiamento. O item 2.4 da aludida resolução assim preceituava:

2. CONDIÇÕES PARA APLICAÇÃO DOS REAJUSTAMENTOS E CORREÇÕES

2.1 (omissis)

2.2 (omissis)

2.3 (omissis)

2.4 Financiamento ou preço: ao menos partes do financiamento ou do preço deve ser amortizado em prestações mensais sucessíveis de igual valor. Tal igualdade de prestações só é exigida antes de efetuado qualquer reajustamento.”

grifo não original

No mesmo ano, e na mesma senda analítica, o inciso II do art. 1º da Lei n.º 4.864/65 destacou que o valor financiado, devidamente corrigido, seria restituído em prestações de “igual valor”, senão vejamos:

II - A parte financiada, sujeita à correção monetária, deverá ser paga em prestações mensais de igual valor, incluindo amortização e juros convencionados à taxa máxima fixada pelo Conselho Monetário Nacional (...)”

grifo não original

Ressalte-se, por oportuno, que a “igualdade de prestações” - “antes de efetuado qualquer reajustamento” - se constitui em especificidade privativa do Sistema Price de Amortização, revelando que a norma legal, muito longe de pretender configurar a priorização da amortização em detrimento da correção monetária, na verdade, prestava-se a distinguir, dentre a gama de sistemas de amortização existentes, aquele que deveria ser efetivamente empregado.

Nesta esteira interpretativa, assim consta da cátedra de DEL MAR, “in verbis”:

(...) o Sistema Price é o único conhecido no mundo para se determinar prestações iguais, incluindo amortização e juros.”

grifo não original

Alguns anos mais tarde, corroborando a intenção originalmente revelada, o próprio BNH - Banco Nacional da Habitação, através da edição da RC 36/69, descortinou a aplicabilidade do Sistema Price de Amortização para fins de identificação do valor das prestações periódicas em financiamentos habitacionais.

Portanto, culminando a interpretação literal do texto em voga com a interpretação sistemática da série de outros normativos pertinentes, observa-se que, teleologicamente, o mesmo se destinava a orientar o momento em que as prestações se mostrariam “de igual valor”, não tendo, por conseguinte, qualquer relação, ou sugestão, a amortização do saldo devedor se processar “antes do reajustamento”.

Se não afastada pelas técnicas de hermenêutica anteriormente suscitadas, a tese da priorização do abatimento do saldo devedor em detrimento da correção monetária, resta, há tempos, revogada, em face da flagrante colisão com disposições constitucionais, notadamente as que asseguram o direito fundamental à propriedade.

Em termos técnicos, denota-se que a correção monetária constitui-se em instituto de criação nacional, voltado, basicamente, a preservação do real valor econômico de determinado capital através de sua alteração nominal.

Ou seja, altera-se, corrige-se, reajusta-se, determinada importância monetária, mediante a incidência de indicador inflacionário previamente estabelecido, com vistas a conferir-lhe a manutenção do real poder aquisitivo, não obstante a sua natural alteração em termos nominais.

Portanto, sob circunstâncias inflacionárias, a estática do valor real se processa pela dinâmica do nominal.

Conforme já pacificado pelo STJ – Superior Tribunal de Justiça, a correção monetária “não é um plus que se acrescenta, mas um minus que se evita”, não se constituindo em elemento de majoração da dívida, mas, tão somente, de manutenção de sua representatividade econômica ao longo dos tempos.

Ainda no que concerne à finalidade da incidência do referido instituto, em trabalho veiculado em periódico do gênero, com brilhantismo assim lecionou o ministro Carlos Ayres Brito:

A finalidade da correção monetária, enquanto instituto de direito constitucional, não é deixar mais rico o beneficiário, nem mais pobre o sujeito passivo de uma dada obrigação de pagamento. É deixá-los tal como se encontravam, no momento em que se formou a relação obrigacional”.

grifo não original

Assim, sob o espectro técnico e racional de análise, dúvidas não persistem de que, para se efetuar a apropriação do valor da paga periódica, há, primeiramente, a necessidade de transladar o saldo devedor para momento contemporâneo, mediante a inserção da correspondente atualização monetária.

A incidência de procedimento diverso, notadamente mediante a priorização da amortização do saldo devedor para posterior revitalização, implicaria, inevitavelmente, no abatimento irregular da dívida, em flagrante ofensa ao direito de propriedade, no caso, a propriedade daquele que concedeu o mútuo objeto de restituição.

A prevalecer a tese referenciada nos parágrafos inaugurais, o saldo devedor não seria reconstituído de seu real poder aquisitivo a cada intersecção amortizatória, possibilitando ao mutuário a completa satisfação da dívida através do reembolso de cifras inferiores aquelas realmente devidas à luz da racionalidade financeira pertinente.

Hodiernamente, após detidas incursões nos liames técnicos que permeiam a matéria, o entendimento pretoriano dominante versa em sentido diametralmente oposto, apregoando a necessidade de se priorizar a revitalização monetária do débito para, em seguida, apropriar a parcela de amortização decorrente do pagamento realizado.

Constituindo inarredável fonte de direito, a 3ª turma colegiada do STJ – Superior Tribunal de Justiça, sob a relatoria da Ministra Nancy Andrighi, veio a pacificar o seguinte entendimento:

(...) o sistema de prévio reajuste e posterior reajuste e posterior amortização do saldo devedor não fere a comutatividade das obrigações pactuadas no ajuste, uma vez que, de um lado, deve o capital emprestado ser remunerado pelo exato prazo em que ficou à disposição do mutuário, e, de outro, restou convencionado no contrato que a primeira parcela será paga apenas no mês seguinte ao do empréstimo do capital"

(Resp 427.329-SC, DJ de 9-6-2003)

Em vista das considerações delineadas, verifica-se que, sob qualquer prisma analítico, inexistem argumentos aptos a respaldar a tese da priorização da amortização em detrimento da revitalização monetária do débito, mesmo porque, parafraseando PORTANOVA, “não há injustiça que se justifique”.


FONTES BIBLIOGRÁFICAS

DEL MAR. Carlos Pinto. ASPECTOS JURÍDICOS DA TABELA PRICE. Editora Jurídica.

BRITO. Carlos Ayres. O REGIME CONSTITUCIONAL DA CORREÇÃO MONETÁRIA – Revista Direito Administrativo – Volume 2.003 – pág 41/58

PORTANOVA. Rui. MOTIVAÇÕES IDEOLÓGICAS DA SENTENÇA. 2ª ed. Porto Alegre. Livraria do Advogado.


Sobre o(a) autor(a)
Edson Marcelino Lazarini
Bacharel em Ciências Contábeis pela Universidade Federal do Paraná. MBA em Finanças pela Fundação Getúlio Vargas. Bacharel em Direito. Atua como Contador Forense e como Consultor Empresarial. Possui diversos trabalhos técnicos...
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