Formação do Bacharel em Direito: do século XIX aos dias atuais

Formação do Bacharel em Direito: do século XIX aos dias atuais

Faz uma retrospectiva histórica e legislativa acerca do papel do bacharel em Direito.

SUMÁRIO: Introdução. 1. Contexto histórico, social e econômico na formação do bacharel. 2. Em busca de novas concepções ideológicas para a formação do bacharel. Conclusão. Bibliografia.


Introdução

O objetivo desse artigo é analisar a formação dos bacharéis no Brasil, baseado nas influências ideológicas do pensamento liberal e do patrimonialismo do século XIX, destacando sua influência no processo evolutivo de formação dos bacharéis e no jogo de poder que acaba por reger as relações econômicas, políticas e sociais. Será ainda abordado o surgimento de um novo movimento – o Direito Alternativo – em busca da adequação do sistema normativo às necessidades sociais a fim de dar-lhe uma maior efetividade.

Fundamenta-se esse trabalho nos estudos realizados por Abreu (1988) diante da sua abordagem do bacharelismo liberal. Esse estudo que também contará com os estudos realizados por Wolkmer (2000) e Lopes (2001) que trazem como contribuição a análise da formação do direito no Brasil, perfil dos bacharéis e as mudanças resultantes do surgimento das codificações no período pós-independência. Rodrigues (1993) trará sua contribuição a partir do seu estudo sobre a ruptura provocada pelo Direito Alternativo, seus conceitos, suas características e críticas.

A partir das contribuições desses autores, estrutura-se esse trabalho em duas partes. A primeira aborda a influência ideológica na luta pela independência e as mudanças que ocorreram com a implantação da República. Em seguida, será possível a análise do posicionamento da cultura jurídica diante da ruptura trazida pelo Direito Alternativo.


1. Contexto histórico, social e econômico na formação do bacharel

Wolkmer (2000) ressalta que a influência dos ideais liberais a partir do século XVIII é de grande valia para o início da análise da formação dos bacharéis no Brasil. O liberalismo sofreu influência do movimento Iluminista, entrou em contradição com o patrimonialismo e fundamentou-se como a solução para os problemas da coroa portuguesa. Era um verdadeiro sinônimo de mudança, capaz de unir classes antagônicas em busca de um objetivo comum: a independência e a implantação da República. Mas esse liberalismo apresentará faces diversas e será uma base para a defesa dos mais divergentes interesses.

Acrescenta que o liberalismo é apresentado com caráter individualista e apresentará uma grande especificidade no Brasil: o liberalismo conservador. O liberalismo brasileiro, bem diferente do liberalismo europeu, era “canalizado e adequado para servir de suporte aos interesses das oligarquias, dos grandes proprietários de terras e do clientelismo vinculado ao monarquismo imperial”.

Para Lopes (2001) a República trouxe inovações com uma base liberal, positivista e evolucionista que foi encaminhado em um sentido de mudança e de conservação pelos segmentos sociais. Uma das inovações será a ocorrência de reformas que fizeram a separação da Igreja com o Estado e trouxeram a Constituição como âncora do Federalismo. No Brasil republicano serão combinados o positivismo, o liberalismo e a discriminação social largamente representada pelo trabalho servil e escravo. Serão ainda citados exemplos importantes como a criação de um regime político sem interferência religiosa ou ainda o dilema resultante do conflito entre a chegada da influência norte-americana no eixo político e a já existente influência européia.

Ressalta que no início, a concepção jurídica viveu dilemas como a tentativa do direito administrativo de regular, através da doutrina francesa, os institutos políticos baseados na estrutura norte-americana. As instituições políticas eram o eixo de comando e se encontravam na Constituição (direito constitucional) colocando, conseqüentemente, o pensamento norte-americano no centro do ordenamento jurídico. Enquanto isso o direito civil tinha uma preocupação com o conceito e a arrumação baseada na estrutura alemã, mas trazendo os institutos romanos. O direito processual, por sua vez, será todo baseado nos procedimentos romano-canônicos. A inspiração inglesa trará a implantação dos Tribunais do Júri que representavam uma ameaça ao magistrado oficial por dar poder aos jurados. O dilema que abrange todas essas questões estaria em na observação dos conflitos entre as bases liberalistas e positivistas.

Já Wolkmer (2000) afirma que a formação de uma cultura jurídica nacional se impôs a partir da independência. As propostas do liberalismo se espalharam com a criação de uma elite jurídica, assim como na formação de um arcabouço legal positivo. Dois fatores seriam os principais responsáveis pela edificação da cultura jurídica nacional no século XIX: “a criação dos cursos jurídicos e conseqüente formação de uma elite jurídica própria, adequada à realidade do Brasil independente e a elaboração de um arcabouço jurídico no Império com a Constituição e várias codificações”

Serão apresentados os primeiros cursos de Direito no Brasil como marcos que surgiram em São Paulo (1827) e em Recife (1854), coincidindo com o período de processo de construção do Estado Nacional. As Escolas apresentavam divergência na formação de seus bacharelandos. Enquanto a Escola de Recife recepcionava ideologias estrangeiras que eram incorporadas ao pensamento liberal e buscavam a formação de verdadeiros doutrinadores, a Escola de São Paulo estava mais interessada numa formação mais voltada para o favorecimento da prática política. Nessa época os profissionais jurídicos eram disseminadores e defensores do liberalismo. Os bacharéis sofriam fortes influências dos anseios sociais e políticos.

Lopes e Wolkmer trarão visões semelhantes diante da exposição das codificações insurgentes nesse período. A Constituição Imperial de 1834 será abordada como o documento jurídico, produzido após a independência, que trouxe a diferenciação legislativa entre direito Público e Privado e caracterizou o centralismo político. Na seqüência veio o Código Criminal de 1830 substituindo as práticas das Ordenações e representando um avanço ao defender o princípio da legalidade e o princípio da pessoalidade das penas. O Código de Processo Criminal (1832) suprime o sistema inquisitório filipino e será um reflexo das forças liberais que incentivaram as reformas a fim de que os magistrados exercessem, de fato, sua função jurisdicional. Como resultado trará a descentralização e o surgimento dos magistrados como profissionais liberais. O Código Comercial (1850) reproduzindo as relações mercantis, o Regulamento 737 (1850) e o Código Civil (1916) repassando ideais liberais, mas envolvido com o poder oligárquico patriarcal. Esses novos Códigos foram surgindo como resultado das modificações político-sociais e traziam reflexos ideológicos das mesmas.

Lopes ressalta que a codificação que mudou de forma concisa a concepção do direito foi a Constituição de 1891 ao trouxe os ideais republicanos e romper com o absolutismo monárquico. Será dado início ao processo de descentralização dos poderes e a diferenciação de tarefas dos entes municipais e federais.

Seu raciocínio será mantido ao desenvolver uma análise mais detalhada de como os magistrados tornaram-se uma elite iletrada, dividida entre o apoio à ruptura e a fidelidade à monarquia. O poder judicial estava ligado ao poder político. A Reforma Judiciária em 1871 foi uma maneira de passar da escravidão para o trabalho livre, sendo que os proprietários teriam o amparo legal para a exploração. O corporativismo, a burocracia e a corrupção foram fatores que colaboraram para a formação de profissionais tão ligado à técnica normativa que se distanciava dos reais problemas da sociedade.

Por fim, Wolkmer analisa que ser um bacharel legalista era um cargo de sucesso marcado pelo formalismo retórico e por suas intenções políticas. O positivismo foi incorporado no Brasil com tamanho rigor como em nenhum outro lugar no mundo. Essa mentalidade é refletida ainda na atualidade onde os bacharéis continuam a realizar uma “atuação conservadora para justificar a exclusão de setores da comunidade e a manutenção da ordem vigente” .


2. Em busca de novas concepções ideológicas para a formação do bacharel

Para romper com a formação do bacharel de bases teóricas liberais e patrimonialistas é preciso buscar outras concepções ideológicas que proporcionem uma formação comprometida com o pensamento histórico-social-dialético. Para tanto, toma-se como referência o Direito Alternativo através das análises de Rodrigues (1993), quando o mesmo destaca um movimento crítico que surge na década de 80.

Esse movimento será tido como a conseqüência prática mais perceptível diante dos demais movimentos críticos no nível acadêmico da época que foram reduzidos de forma a inviabilizar opções de superação do positivismo. O movimento brasileiro surge como possibilidade de resgatar da integridade do jurídico e teve suas raízes, pressupostos e objetivos desenvolvidos no pensamento de Roberto Lyra Filho através da Nair. É um movimento crítico inovador que surgiu de forma espontânea.

Sua proposta será voltada para uma re-interpretação do ordenamento jurídico positivado de forma que a justiça seja aplicada. O importante é realizar um movimento tendo em vista que as garantias que já existe em leis sejam adaptadas às necessidades da realidade social e colocadas em prática. Portanto, o trabalho lingüístico-epistemológico desenvolvido por Warat tem relevância em relação à hermenêutica jurídica, questão fundamental para os alternativos. A dialética entre a fraqueza e a força do movimento gerou a necessidade de definir rumos e estratégias.

Por isso, o movimento estabelece um projeto político-econômico-social de forma a atender aos pobres, buscando uma sociedade socialista e democrática mais justa. Rodrigues faz uma constatação de que existe uma luta de classes e de que o Direito é um instrumento, uma arma dessa luta. Será estabelecida ainda, nessa luta pela construção do socialismo democrático, a utilização da justiça social como parâmetro para definir o que é e o que não é de Direito. A sociedade é a única fonte legítima do jurídico e a dialética será o melhor método para a compreensão do referido fenômeno.

O movimento comporta duas frentes de luta diferentes, mas complementares.

A primeira compreende as lutas desenvolvidas em nível do instituído e a maioria dos conflitos poderá ser resolvida através de dois métodos. O primeiro é o positivismo de combate o qual busca dar eficácia social aos direitos individuais e sociais já inscritos nos textos legais (positivados) e que não vem sendo aplicados em prol das classes populares. Já o segundo, o uso alternativo do Direito, é caracterizado pela utilização das contradições existentes no sistema, assim como a vagueza ou ambigüidade de suas normas.

A segunda frente de luta diz respeito à incorporação do pluralismo jurídico na esfera da sociologia jurídica. Esse movimento será responsável pela aceitação de dois conceitos. O direito insurgente seria aquele criado pela própria sociedade diante de casos de existência de lacuna ou injustiça no direito estatal. Criará uma polêmica por reconhecer a existência de outras normas jurídicas em detrimento das normas estatais. O segundo conceito, o jusnaturalismo de caminhada, parte da premissa de que há uma norma supra legal que determina o conteúdo do direito positivo, sendo construída pela própria sociedade nas lutas históricas. É caracterizado pela luta em favor da aplicação irrestrita de alguns direito básicos. As situações de lacunas e de antinomias possuem critérios básicos de preenchimento e resolução.

Pontes de Miranda declara que norma jurídica é o que se quer reconhecido como geral para o procedimento dos homens dentro de certo círculo social. Condena a identificação entre Direito e direito positivo e ainda estabelece diferenças entre lei e Direito.

Direito será colocado como aquilo que se reputa como justo e se realiza. A ele serve a lei, a doutrina e a palavra dos juízes, assim como o processo realizador do direito objetivo. Direito, antes de ser um fato jurídico, será um fato social a que o juiz se subordina e a lei será o seu roteiro, o seu guia.

Rodrigues aborda que no Direito Alternativo, a tentativa de fazer justiça leva a um posicionamento determinado diante dos casos de inconstitucionalidade ou os semelhantes. Quando a aplicabilidade de uma determinada norma é negada devido à sua contrariedade a um dispositivo legal superior, será dada preferência ao uso da deslegalização. Essa é a negativa de aplicabilidade de uma norma em função da mesma contrariar dispositivo legal superior.

Porém, existe também um outro posicionamento: a deslegitimação que pode ser usada em casos de exceção e é a negativa de vigência a uma determinada norma em razão de sua injustiça.Tudo é feito de forma para que não haja aplicação injusta do direito.

O reconhecimento da existência de lacunas axiológicas tem como conseqüência a consciência de que as mesmas devem ser combatidas com os critérios de integração comuns. Elas podem levar à aplicação do jusnaturalismo de caminhada ou do direito insurgente.


As maiores reações contra o movimento prendem-se a duas questões de ordem política:

A primeira é considerada a opção feita pelo Direito Alternativo pelas normas privilegiadas da sociedade. Trará como critério básico a ser adotado em cada caso concreto, na escolha da decisão a ser tomada, a atuação interpretativo-alternativa que é a mais próxima do conflito humano. Desmascara a idéia de neutralidade, politicamente participativa ao questionar a ordem estabelecida e as leis que a mantêm. Será ainda inserida no contexto sócio-econômico e possibilitadora de novas soluções aos conflitos.

A segunda é o fato de que o movimento defende a construção de uma sociedade democrática e socialista. O Direito será um elemento da luta de classes ao buscar utilizar-se dos espaços existentes na instância jurídica para auxiliar na construção pacífica e democrática de uma nova sociedade mais justa e igualitária.

Uma crítica mais abrangente que pode ser feita ao Uso Alternativo de Direito será quanto à sua nomenclatura. Ele não poderá ser realmente considerado um “uso alternativo” partindo da premissa de que sua atuação será restrita ao sistema normativo positivado. Esse movimento não busca reformular seu quadro para reconstruir o ordenamento. Portanto, ele será, na verdade, a simples busca da aplicação social dos institutos e garantias trazidos pelas leis.


Conclusão

Esse artigo parte de um trabalho investigativo quanto à formação do bacharel desde o século XIX até os dias atuais. Diante da análise dos argumentos já apresentados, é possível perceber que as bases da sua formação estão fincadas nas influências ideológicas e na contradição entre o patrimonialismo, liberalismo e positivismo. Houve sempre a defesa dos interesses elitistas, em detrimento das necessidades das classes populares.

O liberalismo conservador que se instaurou de forma única no Brasil, pode ser considerado como a ideologia responsável pela influência na formação de um sistema social voltado para as necessidades burguesas. Esse é um país onde a existência das desigualdades, a corrupção política e a postura dos bacharéis em direito para acobertar esse quadro já são vistas sem espanto e como se fosse um painel irreversível.

As codificações que chegaram com a República realmente resultaram em mudanças. O Código Criminal (1830), o Código de Processo Criminal (1832) e as Constituições foram responsáveis por inovações. Criaram institutos como a igualdade e a liberdade que eram (e ainda são) restritas. Mas não deram espaço para as revoluções.

Após ser feita uma comparação cronológica, é possível afirmar que existem óbvias semelhanças do perfil, postura, formação e comportamento entre o bacharel republicano e o bacharel atual. Inicialmente, ambos apresentam sua formação técnica-profissional intimamente ligada à atuação na área política. Os bacharéis parecem ter seguido as características da Escola de São Paulo, deixando de lado uma posição doutrinária em busca de justiça, para assumirem a defesa dos Príncipes – como diria Maquiavel - que já estão no poder.

Porém, é válido ressaltar uma mudança ocorrida quanto à queda do elitismo na formação acadêmica. A chegada da classe média às universidades provocou transformações, de modo que o “status” do bacharel decaiu de forma considerável. Se for considerado que no século XIX ser bacharel era motivo de reconhecimento imediato e exclusividade, hoje é possível ver que ele precisa lutar pelo reconhecimento e muitos nem desenvolvem a capacidade ou conseguem oportunidade para seguir a profissão.

Essa é uma interpretação de grande valor para os estudantes de direito para que esses possam criar consciência do seu papel perante as desigualdades sociais e tomar atitudes para mudar o atual quadro estrutural. Os “defensores da lei” devem ter uma postura voltada à defesa da população em massa, pois são esses os mais necessitados de justiça. As leis não devem se restringir a meras folhas de papel. Devem sim, ser colocadas em prática de forma que as possibilidades sejam iguais e todos possam ser tratados como semelhantes, sem espaço para privilégios, diante do ordenamento jurídico.


Bibliografia

ABREU, Sérgio Adorno França. Os aprendizes do poder: o bacharelismo liberal na política brasileira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.

LOPES, José Reinaldo de Lima. O Direito na História: lições introdutórias. São Paulo: Max Limonad, 2000.

RODRIGUES, Horácio Wanderlei. Ensino jurídico e direito alternativo. São Paulo: Acadêmica, 1993, p. 151 a 171.

WOLKMER, Antônio Carlos. Estado, elites e construção do direito nacional. História do Direito no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2000.

Sobre o(a) autor(a)
Lanna Cardoso Neves
Estudante de Direito
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