Descomplicando o controle de constitucionalidade abstrato

Descomplicando o controle de constitucionalidade abstrato

Causa de pedir aberta, inconstitucionalidade por arrastamento e transcendência dos motivos determinantes. Breves notas.

I – Introdução - O controle de constitucionalidade, como é sabido, atine à possibilidade e necessidade de adequação das demais normas do ordenamento jurídico com a Constituição para que possam subsistir de modo legítimo, proporcionando a integridade do ordenamento jurídico pátrio. 

O Brasil adota, em regra, o controle jurisdicional de constitucionalidade, sendo, em maior parte, repressivo, ou seja, atuante após o ingresso da norma na ordem jurídica nacional.

Tal controle, a título de lembrança, é caracterizado por ser misto, podendo ser difuso ou concentrado.

No controle concentrado busca-se a proteção do interesse público, do ordenamento jurídico como um todo, razão pela qual não se aprecia interesses individuais, mas sim, tem-se um processo objetivo que possui como finalidade precípua a análise da constitucionalidade da lei ou ato normativo.

É concentrado porque, tendo como parâmetro a Constituição da República, apenas é exercido perante o Supremo tribunal Federal.

No sistema difuso, em regra, qualquer juiz, ou tribunal, poderá apreciar a pecha de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, porque esta é argüida dentro de um processo subjetivo, onde há a colisão de interesses individuais.

Neste caso, como se percebe, a análise da inconstitucionalidade não é o objeto do processo, mas apenas um incidente, um obstáculo pelo qual o órgão do Poder Judiciário deverá necessariamente ultrapassar para dizer o direito em face do caso concreto que lhe fora apresentado à apreciação.

Em relação ao controle abstrato de constitucionalidade, que caracteriza um verdadeiro processo objetivo, lastreado pelo interesse público, realizado perante o Supremo Tribunal Federal, tem-se verificado a utilização de técnicas e teorias peculiares por esta Corte.

Na Ação Direta de Inconstitucionalidade, onde ocorre a argüição da inconstitucionalidade da lei, ou do ato normativo, federal ou estadual, em tese, sobretudo, embora possa utilizá-las nos processos objetivos de modo geral, o Supremo Tribunal Federal, faz uso de técnicas diferenciadas buscando sua maior racionalização. 1

II – Causa de Pedir Aberta - Nesta ação judicial, a Corte Maior tem reconhecido que não se encontra vinculada à fundamentação jurídica do pedido veiculado em sede de ADI.

Em outras palavras, os fatos e fundamentos jurídicos trazidos à baila na petição inicial, não serão os únicos a serem analisados quando da decisão do STF acerca da constitucionalidade da lei ou ato normativo impugnado.

Isto quer dizer que, na realidade, o STF como Guardião da Constituição, quando declara a inconstitucionalidade em ADI, profere um juízo em relação a toda a extensão da Constituição, e não apenas em relação ao que fora argüido pelo legitimado ativo quando do ingresso em juízo.

Neste sentido assentou o próprio Pretório Excelso:

"O Plenário desta colenda Corte, ao julgar a ADI 2.031, rejeitou todas as alegações de inconstitucionalidade do caput e dos §§ 1º e 2º do art. 75 do ADCT, introduzidos pela Emenda Constitucional 21/99. Isto porque as ações diretas de inconstitucionalidade possuem causa petendi aberta. É dizer: ao julgar improcedentes ações dessa natureza, o Supremo Tribunal Federal afirma a integral constitucionalidade dos dispositivos questionados (Precedente: RE 343.818, Relator Ministro Moreira Alves)." 2

Logo, poderá, por exemplo, julgar inconstitucional a lei impugnada em virtude de entender existir afronta a outros dispositivos constitucionais que não os mencionados na peça inaugural. Tal fato caracteriza a causa de pedir aberta.

Assim, corrobora o entendimento da Corte Máxima:

"É da jurisprudência do Plenário, o entendimento de que, na ação direta de inconstitucionalidade, seu julgamento independe da causa petendi formulada na inicial, ou seja, dos fundamentos jurídicos nela deduzidos, pois, havendo, nesse processo objetivo, argüição de inconstitucionalidade, a Corte deve considerá-la sob todos os aspectos em face da Constituição e não apenas diante daqueles focalizados pelo autor. É de se presumir, então, que, no precedente, ao menos implicitamente, hajam sido considerados quaisquer fundamentos para eventual argüição de inconstitucionalidade, inclusive os apresentados na inicial da presente ação." (ADI 1.896-MC, Rel. Min. Sydney Sanches, julgamento em 18-2-99, DJ de 28-5-99)

Causa de pedir (causa petendi) designa a descrição dos fatos e fundamentos jurídicos 3 trazidos no corpo da petição para alicerçar o pedido feito.

III- Inconstitucionalidade por Arrastamento - Regra geral, no entanto, embora não se vincule aos fundamentos do pedido da ADI, o STF está vinculado ao pedido nesta veiculado, que corresponde à declaração de inconstitucionalidade total ou parcial de lei ou ato normativo.

Tal regra relaciona-se ao princípio da inércia, que impede o Supremo de declarar a inconstitucionalidade ex officio, devendo ser provocado para tal e, igualmente, ao princípio da congruência, melhor explicitado na lição de Canotilho:

Este princípio, intimamente ligado ao princípio dispositivo, sofre algumas e importantes correções em direito processual constitucional. Em todo o seu rigor, ele postularia a inadmissibilidade de apreciação jurisdicional relativamente a questões não debatidas e conseqüente exclusão de declaração de inconstitucionalidade de normas que não tivessem sido impugnadas no processo. Se isto é assim em processos de fiscalização concreta (e mesmo aqui há problemas), já o mesmo não acontece nos processos de fiscalização abstracta onde podem existir inconstitucionalidades consequenciais ou por arrastamento, justificadas pela conexão ou interdependência de certos preceitos com os preceitos especificamente impugnados. 4

Este, por sua vez, decorre do princípio do pedido, que impede julgamento aquém ou além do objeto da ação judicial (citra e extra petita).

Em outras palavras: se é argüida a inconstitucionalidade em tese, por exemplo, com fundamentação que atine ao artigo 10 de uma dada lei, o STF deverá fazer o juízo sobre a constitucionalidade ou não de tal dispositivo levando em consideração todo o texto constitucional. Não poderá, em regra, declarar a inconstitucionalidade, v. g., do artigo 15 da mesma lei, devendo se ater ao que lhe fora pedido.

Contudo, excepcionalmente o Supremo poderá estender a inconstitucionalidade a dispositivo não impugnado na inicial, desde que tal dispositivo guarde uma conexão necessária, significando uma relação de dependência, com o dispositivo (artigo 10, do exemplo citado) que fora declarado inconstitucional. 5 É a chamada inconstitucionalidade por atração, conseqüencial ou por arrastamento.

Ora, isso ocorre em razão de o ordenamento jurídico ser um conjunto harmônico normativo, em detrimento de um amontoado de normas sem sentido.

Destarte, a título de ilustração, registre-se que o STF utilizou da inconstitucionalidade por arrastamento no julgamento na ADI 1.144.

Esta fora ajuizada pelo Governador do Estado do Rio Grande do Sul questionando a constitucionalidade da Lei estadual n. 10.238/9 que instituíra o Programa Estadual de Iluminação Pública, destinado aos municípios daquele Estado, sendo administrado por um Conselho Administrativo, nos termos desta lei.

Entendeu a Corte que a criação de órgão administrativo por parte de lei não iniciada pelo Poder Executivo, fere o disposto no art. 61, par. 1°, II, “e”, da Carta Magna, além do que, que a referida lei colidira com o disposto no artigo 165, inciso III, da Constituição de 1988. Este preceito determina que os orçamentos anuais sejam estabelecidos por lei de iniciativa do Poder Executivo. O artigo 2o da lei estadual questionada, de aplicação mecânica e automática, cerceia a iniciativa para elaboração da lei orçamentária.

Finalizou, o Supremo tribunal Federal, por entender a lei inconstitucional decretando:

"A declaração de inconstitucionalidade dos artigos 2º e 3º da lei atacada implica seu esvaziamento. A declaração de inconstitucionalidade dos seus demais preceitos dá-se por arrastamento." (ADI 1.144, Rel. Min. Eros Grau, DJ 08/09/06)

Tal inconstitucionalidade, via de regra, tem sido declarada no que tange a dispositivos de uma mesma lei. Todavia, o STF proferiu declaração de inconstitucionalidade conseqüencial, ou por arrastamento, de decreto regulamentar superveniente em razão da relação de dependência entre sua validade e a legitimidade constitucional da lei objeto da ação. 6

Veja-se que a doutrina divide a inconstitucionalidade por arrastamento em vertical, quando há dependência hierárquica entre as normas (como decreto que regula lei) e arrastamento horizontal, quando as normas situam-se no mesmo patamar.

A inconstitucionalidade consequencial, portanto, diz respeito à declaração de inconstitucionalidade que produz efeitos em outros dispositivos que não os originariamente inquinados.

IV - Transcendência dos motivos determinante da decisão do STF em sede de ADI - No tocante aos efeitos vinculantes da decisão do STF em sede de ADI, o art. 102, do § 2º, da CF, com redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004, dispõe que as decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal.

Destarte, vale perquirir a respeito de qual parte da decisão prolatada pelo Tribunal vinculará os órgãos do Poder Judiciário e da Administração Pública.

A matéria é de relevante importância, pois ao traçarmos tal consideração cabe investigar, então, se apenas a parte dispositiva da decisão do STF terá efeitos vinculantes, ou também a fundamentação (motivos) da referida decisão.

Os efeitos práticos oriundos de tal definição são de extrema relevância, uma vez que a reclamação é o meio processual apto a levar ao STF o conhecimento sobre a insurreição no que tange a decisão vinculante daquela Corte.

Nesta senda, o Supremo tribunal Federal entende que o efeito vinculante das decisões proferidas em ação direta de inconstitucionalidade apresenta eficácia que transcende o caso singular, não se limitando à parte dispositiva da decisão, de modo a se aplicar às razões determinantes da decisão proferida na ADI. 7

Isso significa que, na prática, os fundamentos da decisão do STF – a ratio decidendi – em sede de ADI, vinculam o Poder Judiciário e Administração Pública à sua observância.

Exemplificando: caso em uma ADI seja declarada a inconstitucionalidade de uma lei estadual em relação a um determinado tributo ali regulado, uma lei de outro Estado que faça o mesmo, e seja aplicada pelo Poder Público, poderá ser afastada de incidência se houver uma reclamação diretamente no STF com base na transcendência dos motivos que determinaram aquela decisão da citada ADI.

Logo, no caso concreto, o indivíduo prejudicado não precisará recorrer às vias processuais tradicionais até chegar ao Supremo, pois, com base na teoria da transcendência dos motes determinantes, poderá diretamente requerer ao STF a manutenção da autoridade de seu julgado através do instituto processual da reclamação.

Ressalte-se que o STF já pacificou o reconhecimento de legitimidade ativa ad causam (para ingressar com a Reclamação) de todos que comprovem prejuízo oriundo de decisões dos órgãos do Poder Judiciário, bem como da Administração Pública de todos os níveis, contrárias ao julgado do Tribunal. 8

Note-se, portanto, que é instituto diverso da inconstitucionalidade por arrastamento.

Nesta há uma relação de dependência, um liame, uma conexão, que faz com que dispositivos, além dos originariamente imputados inconstitucionais, sejam declarados incompatíveis com a Constituição.

Já na aplicação dos efeitos transcendentes da decisão o que ocorre é uma semelhança entre casos, o que remonta a uma espécie de analogia, que faz com que por segurança jurídica, eficiência, economia e racionalidade processuais, seja aplicado a caso semelhante o entendimento que fundamentara decisão do Supremo Tribunal Federal em sede de ADI.

Todavia, finalmente, vale notar que esta tese, originária do Tribunal Constitucional Alemão e utilizada atualmente no STF, não se encontra pacificada na doutrina, sendo alguns autores adeptos da não transcendência dos motivos determinantes (teoria restritiva) e outros favoráveis a tais efeitos (teoria extensiva). 9

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BIBLIOGRAFIA:

  • CAMARGO, Marcelo Novelino. Org. Leituras Complementares de Constitucional: Controle de Constitucionalidade. Salvador: Jus Podium, 2007.
  • DIDDIER JR., Fredie. Ações Constitucionais. Org. 2 ed. Salvador: Jus Podium, 2007.
  • GRECO FILHO, Vicente. Direito Processual Civil Brasileiro. 2 v. 16 ed. at. São Paulo: Saraiva, 2003.
  • MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição Constitucional. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2005.
  • MORAES, Alexandre. Direito Constitucional. 19 ed. São Paulo: Atlas, 2006.
  • SILVA, José Afonso da. Comentário Contextual à Constituição. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 2006.
  • TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. 13 ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 1997.
  • Site: www.stf.gov.br.



  • 1 STF - RE 505.477, Rel. Min. Marco Aurélio, decisão monocrática, julgamento em 25-5-07, DJ de 15-6-07.


    2 STF - RE 431.715-AgR, Rel. Min. Carlos Britto, julgamento em 19-4-05, DJ de 18-11-05.


    3 Fundamentos jurídicos não se confundem com fundamentos legais. Estes são as indicações dos dispositivos legais, apenas; aquele se refere à relação jurídica (causas, conseqüências fáticas etc...) existente.


    4 CANOTILHO, J.J. GOMES. In: MENDONÇA, Andrey Borges de. Leituras Complementares de Constitucional: controle de Constitucionalidade. Salvador: Jus Podium, 2007, p. 161.


    5 STF - ADI 2.982-QO, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 17-6-04, DJ de 12-11-04.


    6 STF - ADI 3.645, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 31-5-06, DJ 1º-9-06.


    7 STF - Rcl 2.363, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 23-10-03, DJ de 1º-4-05.


    8 STF - Rcl 1.880-AgR, Rel. Min. Maurício Corrêa, julgamento em 7-11-02,  DJ de 19-3-04.


    9 BERNARDES, Juliano Taviera. Efeito Vinculante das Decisões do Controle Abstrato de Constitucionalidade: transcendência aos motivos determinantes? Leituras Complementares de Constitucional: controle de Constitucionalidade. Salvador: Jus Podium, 2007, p.123/125.

    Sobre o(a) autor(a)
    Sérgio Souza Botelho
    Advogado; Servidor Público do Estado de Mato Grosso; Professor de Direito Constitucional; pós-graduando em Direitos Difusos e Coletivos.
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