Teoria do Mínimo Existencial e os direitos de crianças e adolescentes

Teoria do Mínimo Existencial e os direitos de crianças e adolescentes

Em um país com extrema desigualdade social, não há como se efetivar todos os direitos fundamentais para todas as pessoas, embora seja este um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito brasileiro.

1- Introdução: contextualizando o problema.

Um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito brasileiro, estabelecido no art. 1º da Constituição Federal (CF), é o princípio dignidade da pessoa humana. Para a efetivação deste princípio, o texto constitucional elenca vários direitos fundamentais e, dentre eles, os direitos sociais, expressos no art. 6º: educação, saúde, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância, além de assistência aos desamparados.

No âmbito dos direitos fundamentais de proteção à criança e ao adolescente, seres humanos ainda em processo de formação, a CF, em seu art. 227 caput, determinou que a família, a sociedade e o Estado devem assegurar com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além do dever de garantir que fiquem a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Entretanto, a atual situação brasileira não permite uma concretização célere da totalidade dos direitos das crianças e adolescentes. As dimensões territoriais do Estado brasileiro, aliado às grandes e marcantes desigualdades sócio-econômicas, à ausência de recursos financeiros – causada pelos motivos mais variados possíveis, como baixa arrecadação de tributos, falta de verbas ou mesmo eventuais desvios das verbas já pré-determinadas no orçamento público – impedem a efetividade dos direitos fundamentais sociais das pessoas em processo de formação e desenvolvimento.

Neste quadro, em que as desigualdades sociais são tão extremas e com a incômoda persistência da escassez de recursos públicos face à demanda e necessidade, tanto de crianças e adolescentes, bem como dos adultos, que também são contemplados pelo princípio da dignidade da pessoa humana, deve o administrador público encontrar saídas legais para a devida efetivação de direitos fundamentais, cumprindo sempre os princípios da eficiência, legalidade e moralidade da Administração Pública (art. 37 da CF).


2- Buscando marcos teóricos nos trabalhos de Robert Alexy e John Rawls.

Neste contexto pode-se observar o que Robert Alexy (1999, p.68), analisando nossa Constituição Federal de 1988, chamou de Colisão de Direitos Fundamentais, situação que ocorre quando o exercício ou realização de um direito fundamental acarreta conseqüências negativas sobre outros titulares de direitos fundamentais. O jurista alemão, para contornar o problema, criou uma Teoria de Direitos Fundamentais que, em apertada síntese, pode ser entendida da seguinte forma: consideram-se os princípios como ‘mandados de otimização’, que podem ser cumpridos em diferentes graus, dependendo das possibilidades reais e jurídicas sendo, portanto, possível existir uma ponderação entre princípios, onde um princípio será aplicado em menor grau do que outro princípio. (ALEXY, 1997: 86).

Assim, a solução de conflitos ou tensões entre direitos fundamentais na teoria dos princípios, é respondida pela hierarquização dos princípios conflitantes. Para realiza tal hierarquização, procede-se a uma ponderação racional ou argumentativa, feita num enfoque pragmático-argumentativo, indicando qual dos interesses em conflito ou tensão, possui maior ou menor peso no caso concreto.

Entretanto, as teorias dos direitos fundamentais e da ponderação de princípios, sozinhas, não são capazes de apresentar uma solução adequada ao problema aqui proposto. Funcionariam muito bem em se tratando de direitos de mesmo conteúdo entre as pessoas em formação e os outros titulares (por exemplo: direito à saúde de adultos e direito à saúde de crianças e adolescentes: tendo em vista a absoluta prioridade, pondera-se que primeiro deve ser efetivado o direito à saúde para as pessoas em formação, depois para adultos).

Porém, para se ponderar princípios de mesmo conteúdo destinados às crianças e adolescentes, as teorias acima indicadas não resolvem o problema. Como se ponderar, por exemplo, entre direito prioritário à cultura de crianças e adolescentes e direito prioritário ao lazer das mesmas crianças e adolescentes? O que deve prevalecer: saúde ou alimentação? E porque diminuir o acesso ao lazer e à cultura, uma vez que tais direitos também promovem o pleno desenvolvimento e saúde destas crianças?

Uma luz norteadora de interpretação ao problema descrito pode ser dada pelo princípio do mínimo existencial ou mínimo social, que encontra em John Rawls um dos seus primeiros expoentes. Rawls formulou um procedimento eqüitativo de oportunidades, que conduziria, segundo suas afirmações, a um resultado mais justo ou menos injusto, garantindo para cada homem, um conjunto mínimo de condições materiais para sua existência, vez que é diferente a situação sócio-econômica de cada cidadão. (RAWLS, 1993: 166)

Cabe também observar a visão de Ana Paula de Barcellos que, inspirada nas lições de John Rawls, postula que, para se efetivar o princípio da dignidade da pessoa humana para todas as pessoas, independente de idade, deve o Estado, primeiro, ofertar um mínimo social existencial, para garantir que todas as pessoas tenham uma existência digna. É necessário um núcleo com um conteúdo básico. “Esse núcleo, no tocante aos elementos materiais da dignidade, é composto de um mínimo existencial, que consiste em um conjunto de prestações materiais mínimas sem as quais se poderá afirmar que o indivíduo se encontra em situação de indignidade”. (BARCELLOS, 2001, p.304)

Barcellos (2001:258) chega à conclusão de que o mínimo existencial para o nosso País deve conter: educação fundamental, saúde básica, acesso à justiça e assistência aos desamparados, este último, englobando alimentação, vestuário e abrigo.


3- Ponderação de um mínimo existencial de direitos para as pessoas em formação.

Aplicando o dito acima à luz da realidade brasileira e do problema que se busca solucionar, vemos que todos os direitos fundamentais são, na essência semântica do nome, fundamentais. Mas não havendo meios de efetivá-los à todos de uma só vez, deve-se efetivar os principais que, em se tratando de crianças e adolescentes, se relacionam com o desenvolvimento de suas capacidades físicas e mentais. Se a criança e o adolescente possuir plenas condições de se desenvolver sem nenhuma interferência nociva de adultos ou de outras crianças e adolescentes, recebendo educação básica, alimentação, saúde e lazer, terão melhores condições de tornarem-se adultos com capacidade intelectual e física plena.

Conforme o mínimo for se efetivando, devemos reavaliar o alcance deste mínimo para que, cada vez mais, se aproxime do ideal imaginado pelo legislador constitucional, ou seja, todos terem efetivados todos os direitos fundamentais.

Um exemplo é o esforço feito por governos e entidades civis para efetivar a educação fundamental. Verificou-se que problemas que atingiam a várias localidades, em grandes proporções, como a evasão escolar, falta de alimentação, lazer ou cultura, pode ser diminuído por políticas públicas e iniciativas privadas que previnam a ausência das crianças e adolescentes da escola, o que acontece com freqüência para que os menores de 18 anos possam trabalhar e ajudar suas famílias.

Quanto às políticas públicas, podemos exemplificar com o antigo programa governamental que buscava a efetividade do direito à educação básica como forma de diminuição do trabalho infantil, feito através de política pública intitulada ‘Programa Nacional de Renda Mínima vinculado à educação”. Popularmente conhecido como “Bolsa Escola”, o programa cadastra famílias que recebem um valor fixo mensal, sob a condição de manter a criança e o adolescente de seis a quinze anos matriculado em escola e que o mesmo obtenha freqüência mínima de 75%. Desta forma, a criança permanece por determinado período do dia na escola, recebendo alimentação, saúde, segurança, cultura, lazer, além, por óbvio, de instrução, ficando afastada de situações de exploração de sua força laboral.

Evidentemente que o ofertado não resolve todo o problema da falta de efetividade dos todos os direitos sociais das crianças e adolescentes. Entretanto, pondera-se que, garantindo-se este mínimo, representado pela educação básica e todos os direitos que são oferecidos de forma acessória (alimentação, segurança, cultura, etc.), garante-se que crianças e adolescentes existam com a mínima dignidade.

Continuando a aplicação da teoria do mínimo existencial em nosso exemplo, uma vez que se garanta ensino fundamental para todas as crianças e adolescentes, garantindo-se o mesmo para as gerações futuras, deve-se modificar o ponto referencial. Ensino fundamental deixa de ser um patamar de mínimo existencial, pois já está efetivado. Deve-se buscar um novo mínimo, mais alto, que poderia ser tanto a melhoria da qualidade neste ensino fundamental, ou mesmo a implementação de ensino científico para todos os adolescentes, que já tiveram o ensino fundamental garantido.


4- Uma palavra final.

A guisa de conclusão, em um país como o Brasil, onde persiste extrema desigualdade social, não há como se efetivar todos os direitos fundamentais para todas as pessoas, embora seja este um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito brasileiro. Mesmo para crianças e adolescentes, pessoas contempladas com o princípio da absoluta prioridade, esta realidade é impossível. Portanto observa-se que a efetividade de direitos fundamentais brasileiros é lenta e gradativa.

Neste momento, nem todos possuem respeitados seus direitos fundamentais, nem mesmo o mínimo existencial que lhes permita viver com dignidade, incluindo-se nesta triste realidade as crianças e adolescentes, que possuem tratamento priorizado na legislação brasileira. E não há meios de se implementar medidas que atinjam desde pronto os objetivos legais. Seria uma visão utópica, o que não se pode considerar como o objetivo da Lei.

Assim, a aplicação da teoria do mínimo social existencial no Brasil permite racionalizar a escassez e/ou a má distribuição de recursos orçamentários. A teoria do mínimo existencial pode servir de subsídio, tanto ao Poder Judiciário, quanto ao Poder Executivo, para se garantir às pessoas em formação um mínimo necessário para que existam de forma digna.

Ao garantir-se um conteúdo mínimo de direitos fundamentais, garante-se a retirada mais célere do ser humano de qualquer faixa etária da indesejável situação de indignidade.


5- Bibliografia.

ALEXY, Robert. Colisão de Direitos fundamentais e Realização de Direitos Fundamentais no Estado de Direito Democrático. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, n. 217, p.67-79. 1999.

ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales [Theorie der grundrechte]. Tradução de Ernesto Garzón Valdés. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997. 607p.

BARCELLOS, Ana Paula de. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais – O princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro – São Paulo: Renovar, 2001. 327 p.

BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a efetividade de suas normas. 7 ed., Rio de Janeiro – São Paulo: Renovar, 2003. 369 p.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988
BRASIL. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, e dá outras providências [ECA]. Diário Oficial da União. Brasília, DF. 16 jul. 1990.

RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça. [A Theory of Justice] Tradução de Carlos Pinto Correia. Lisboa: Editorial Presença, 1993. 708p.

Sobre o(a) autor(a)
Marcelo de Souza Moura
Advogado
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