A violência contra a mulher no âmbito familiar vista sob a ótica da Lei 9.099/95

A violência contra a mulher no âmbito familiar vista sob a ótica da Lei 9.099/95

Analisa a posição da vítima da violência doméstica frente a Lei 9.099/95 que apresenta uma solução formal quanto ao procedimento relegando a vítima a um papel secundário.

As transformações sociais ocorridas com base na “evolução” do ser humano influenciaram, como não poderia deixar de ser, também nas relações intrafamiliares. A violência sofrida pela mulher no âmbito familiar apresenta-se de forma cada vez mais intensa e as consequências lesivas à sociedade hodierna são notórias. Na grande maioria dos casos a violência dentro de casa se dá pelo poder que, ainda hoje, o homem acredita exercer sobre a mulher.

A violência alcançou nos últimos anos índices alarmantes na chamada “família moderna”. A sociedade atingida no seu íntimo reclamou do direito uma atuação para a solução do conflito estabelecido. Neste contexto surgiram os Juizados Especiais Criminais instituídos pela Lei 9.099/95.

Na verdade, o legislador buscou através da instituição dos Juizados Especiais Criminais desprestigiar a aplicação da pena de prisão, aliás, nasceram justamente com o intuito de desafogar os presídios abarrotados, evitando-se a aplicação da pena privativa de liberdade aos infratores que praticaram delitos chamados de “menor potencial ofensivo”, ou seja, de menor gravidade. Buscou o legislador a utilização de um procedimento simples e célere e a aplicação de penas com caráter ressocializador [1].

O artigo 61 da Lei 9.099/95 trata da conceituação de crimes de menor potencial ofensivo para efeito da competência dos Juizados Especiais Criminais, o mesmo ocorrendo com o art. 2.º da Lei nº 10.259/2001, elementos definidores do que seja infração de menor potencial ofensivo, vale dizer, o quantum da cominação genérica para a pena máxima, já que a Lei Federal mais nova previu como infração de menor potencial ofensivo os delitos cujas penas não excedam a 02 (dois) anos.

Assim, são de competência dos Juizados Especiais Criminais os delitos tipificados na Lei Penal cujas penas máximas não ultrapassam dois anos. No âmbito da violência doméstica incluem-se ameaça (CP, art. 147), lesão corporal leve (CP, art. 129, caput), vias de fato (LCP, art. 21), estes os mais freqüentes nas ocorrências policiais.

Nas ações públicas incondicionadas nos termos do artigo 76 da Lei 9.099/95, observados os requisitos ali mencionados será oferecida proposta de transação penal ao autor do fato. Entretanto, a maioria dos delitos ocorridos em decorrência da violência doméstica, as ações são de natureza pública condicionada à representação, o que significa dizer que o destino do procedimento instaurado será dado por opção da vítima que manifestará o seu desejo em audiência preliminar.

Nos termos do artigo 72 da referida lei, presentes à audiência preliminar o representante do Ministério Público, o autor do fato e a vítima, o juiz esclarecerá sobre a finalidade da audiência apresentando quatro opções à escolha da vítima:

a) não renunciar ao direito de representação contra o autor do fato, entretanto reservar-se-á no direito de oferecer tal peça no prazo que a lei lhe concede, ou seja, deixar o procedimento aguardando, em regra, por até seis meses, contado a partir do conhecimento da autoria do crime, nos termos do artigo 38 do CPP e 103 do CP, este, o chamado “prazo decadencial”, e, caso não manifeste a vontade de representar neste prazo será automaticamente arquivado;

b) entabular uma composição civil com o autor do fato visando o ressarcimento de prejuízos que este lhe tenha causado em razão do delito praticado (art. 74);

c) renunciar ao direito de representação;

d) representar contra o autor do fato.


Normalmente as partes envolvidas, ao comparecer à audiência de que trata o art. 72 da Lei nº 9.099/95, não solucionam o conflito, eis que, as opções destinadas à escolha da vítima não condizem com o seu anseio.

A vítima da violência doméstica reluta em recorrer ao aparato policial e só o faz quando já não encontra outra saída, e, diante das opções que o Judiciário lhe oferece se vê decepcionada e resolve muitas vezes, na expressão popular, “retirar a queixa”, eis que não encontrou a prestação jurisdicional que ansiava e necessitava renunciando ao seu direito.

Ciente das possibilidades a vítima, na grande maioria dos casos, opta por aguardar o prazo decadencial, primeiro porque não encontrou na Lei a opção que esperava, ou seja, o seu desejo é resgatar a normalidade da convivência familiar, segundo, porque já que não encontrou na Justiça a solução do seu problema tem ainda a esperança de que o autor retome um comportamento em prol da família. Entretanto, ela não retorna ao Judiciário para representar porque sabe que não encontrará a solução pacificadora do seu conflito. A vítima da violência doméstica não busca uma reparação civil, mas sim uma segurança a ser fornecida pelo Estado.

Das opções fornecidas à vítima, a que mais lhe favorece “aparentemente”, é a possibilidade de representação contra o autor do fato. Daí surge outra questão. Manifestando o desejo de representar criminalmente contra o autor do fato, o Ministério Público no seu mister, observado o disposto no artigo 76, § 2º da Lei 9.099/95, lhe concede um “benefício” onde será feita a proposta de transação penal.

O acordo entre o Ministério Público e o autor do fato já popularmente conhecido como o “pagamento de cesta básica”, não proporciona à vítima a sensação de reparação pelo mal sofrido. Ela volta para o convívio com o agressor, sem solucionar o conflito e mais vulnerável ainda a novas agressões. A vítima não tem qualquer interferência na proposta de transação, que pode realizar-se independentemente de sua vontade.

Não é difícil concluir que a mulher já agredida e humilhada dentro de casa, diante do resultado obtido pela sua iniciativa em buscar o Judiciário, vai se sentir mais uma vez vitimizada diante de seu agressor que se vangloria de suas atitudes por ter, ao final das contas, saído praticamente ileso, e disposto a prosseguir na sua prática ilícita. Constata o autor do fato que a Lei lhe permite a cada cinco anos a “barganha” da prática de um delito pelo pagamento de uma “cesta básica”, e, pior ainda, nos dizeres populares, “sua ficha continua limpa”. [2]

Há que se observar ainda aqueles casos em que a lei não permite a transação penal ou que o autor do fato não aceita a proposta ofertada pelo Ministério Público, onde será oferecida denúncia, designada audiência de instrução e julgamento, e, percorridos os trâmites legais, ao final, havendo condenação, o resultado é uma pena restritiva de direitos podendo consistir em prestação de serviços à comunidade ou ainda convertida em prestação pecuniária. Neste caso, o gravame para o autor do fato é a integração de seu nome no rol dos culpados. Mas, mesmo assim, benefício algum trará à vítima que não será ressarcida em seu íntimo pelo mal sofrido.

Conforme artigo 89 da Lei 9.099/95, o autor do fato tem ainda a seu favor a possibilidade de suspensão condicional do processo mediante as condições previstas no § 1º do mesmo artigo.

A solução dada é apenas formal quanto ao procedimento, impondo à vítima um sentimento de descaso da Justiça em relação ao seu problema, que a faz sentir relegada a um papel secundário eis que não recebeu proteção e menos ainda solução adequada à sua situação.

O sistema, como visto, não oferece à vítima a solução do seu conflito porque não dispõe do instrumento adequado para tanto. Observa-se uma mobilização em torno do conflito estabelecido, resulta em elaboração de Boletins de Ocorrências, TCO's nas Delegacias, audiências no Judiciário, intimações, enfim, todo o sistema voltado para uma questão que acaba por encontrar ao final apenas uma solução formal.

O resultado é que a vítima volta para o convívio familiar e sabe que vai lidar com o conflito agora agravado pelos acontecimentos sem que o Poder Público lhe ofereça qualquer alternativa compatível com sua expectativa de obter apoio moral.

A violência doméstica é caracterizada pela habitualidade, quando chega às portas do Judiciário o conflito já perdura dentro de casa durante anos e continuam as vítimas convivendo com seus agressores.

O sistema penal, além de descumprir seu papel de ressocialização destinou a vítima da violência doméstica a um plano secundário. Tem-se, assim, a necessidade de buscar opções renovadas de solução dos conflitos intrafamiliares.

A construção de um pensamento jurídico renovado que busque a pacificação dos conflitos em detrimento das soluções apenas formais dos procedimentos capazes de pacificar a convivência entre vítima, agressor e sociedade, uma vez que a Justiça Criminal é ineficaz ao fazê-lo, são opções que pressupõem, antes de tudo, a dinamização do conceito de dignidade humana e o pleno exercício da cidadania.



[1] Lei 9.099/95. Art. 62. O processo perante o Juizado Especial orientar-se-á pelos critérios da oralidade, informalidade, economia processual e celeridade, objetivando, sempre que possível, a reparação dos danos sofridos pela vítima e a aplicação de pena não privativa de liberdade.

[2] Lei 9.099/95. Art. 76. § 4º Acolhendo a proposta do Ministério Público aceita pelo autor da infração, o Juiz aplicará a pena restritiva de direitos ou multa, que não importará em reincidência, sendo registrada apenas para impedir novamente o mesmo benefício no prazo de cinco anos.§ 6º A imposição da sanção de que trata o § 4º deste artigo não constará de certidão de antecedentes criminais, salvo para os fins previstos no mesmo dispositivo, e não terá efeitos civis, cabendo aos interessados propor ação cabível no juízo cível.



BIBLIOGRAFIA

BRASIL. Lei 9.099 de 26 de setembro de 1995. Dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 27 set. 1995.

DINAMARCO, Candido Rangel. A instrumentalidade do processo. São Paulo: Malheiros Editores, 2000. 341 p.

MIRABETE, Julio Fabbrini. Juizados especiais criminais: comentários, jurisprudência, legislação. 4 ed. São Paulo: Atlas, 2000. 486 p.

MORRISON, A. R.; BIEHL, M.L. A família ameaçada: violência doméstica nas Américas. 1 ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000. 206 p.

PIERANGELI, J. H; ZAFFARONI, E. R. Manual de Direito Penal Brasileiro. Parte Geral. 4. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. 890 p.

SARTI, Cynthia Andersen. A família como espelho: um estudo sobre a moral dos pobres. 3 ed. São Paulo: Cortez, 2005. 160 p.

Sobre o(a) autor(a)
Lana Márcia Ramos
Estudante de Direito
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