Ensaio sobre o costume como fonte material do direito

Ensaio sobre o costume como fonte material do direito

Análise acerca da definição, importância, doutrinas e caracteristicas que na visão do autor fazem do costume juridico fonte material do direito.

O intuito do presente trabalho é o de analisar o costume jurídico como fonte material do direito, implicando, pois, numa posição contrária à concepção acadêmica tradicional, que o classifica como fonte formal.

Para tanto, cuidaremos do tema à luz da teoria da norma jurídica, logo, mutatis mutandis, consideraremos o direito em seu espectro mais restrito, como lei ou norma jurídica strictu sensu.

Convém, a priori, por razões eminentemente didáticas, abordarmos, ainda que brevemente, dois tópicos de bastante relevo para uma melhor compreensão sistemática do tema. Vamos a eles.

O primeiro diz respeito tanto à definição quanto à importância do estudo acerca das fontes do direito. O vocábulo fonte, deriva do latim fons e significa nascente, manancial. [1] É o local de onde brotam as águas, assim, a expressão fontes do direito, pode ser entendida como a nascente de onde brota o direito.

Interessante a lição de Horvath [2] que citado por André Franco Montoro, assim se manifestou sobre o conceito de fonte do direito: “(...) é o próprio direito em sua passagem de um estado de fluidez e invisibilidade subterrânea ao estado de segurança e clareza”.

O segundo tópico refere-se à importância do seu estudo. Muitos juristas já se debruçaram sobre o tema fontes do direito, fato que de per si já nos serviria para argumentarmos de sua relevância, todavia, não seria demais lembrarmos do ensinamento de Bobbio [3]:

A importância do problema das fontes do direito está no fato de que dele depende o estabelecimento da pertinência das normas com que lidamos a um determinado ordenamento jurídico. Tais normas lhe pertencem ou não, conforme derivem ou não dos fatos ou atos dos quais o ordenamento jurídico faz depender a produção das suas normas.

O conhecimento das fontes do direito serve tanto a uma observação mais acurada e consciente das leis consideradas em si mesmas, quanto à otimização da hermenêutica jurídica, instrumento imprescindível à realização de um direito socialmente justo.

Superada esta fase de preocupação didático-conceitual acerca tanto da etimologia do vocábulo fonte, e, por conseguinte da expressão fontes do direito, quanto da importância do seu estudo, oportuno é que adentremos no campo da divisão formal-material.

Os manuais de introdução ao estudo do direito, via de regra, dividem as fontes do direito em formal e material servindo-se de parâmetros que espelham características endógenas e exógenas da norma jurídica strictu sensu.

Assim, fonte formal é o próprio arcabouço escrito donde provém o direito. É o seu lado exterior, ou nas palavras de Montoro [4], “(...) são os fatos que dão a uma regra o caráter de direito positivo e obrigatório”. Fácil é perceber que o critério definidor de fonte formal do direito é a sua forma positivada.

Por seu turno, fontes materiais são os elementos substantivos da norma jurídica, ou seja, os fatos impulsionadores da feitura da norma. Uma vez mais socorre-nos o professor paulistano ao conceituar fontes materiais:

(...) a realidade social, isto é, o conjunto de fatos sociais que contribuem para a formação do conteúdo do direito; os valores que o direito procura realizar, fundamentalmente sintetizados no conceito amplo de “justiça”.

Essa divisão acaba por classificar como fontes formais a lei, o costume, a doutrina e a jurisprudência. Aqui a pedra angular deste ensaio exsurge da seguinte indagação: será o costume fonte formal ou material do direito?

Do latim consuetudo, o termo costume significa “ tudo que se estabelece por força do habito ou do uso”. [5] Todavia, é a sua acepção jurídica que aqui nos interessa, e para tanto, de grande valia é o conceito de Coviello [6], que em seu clássico Doutrina Geral do Direito Civil, preliciona:

Norma Jurídica que resulta de uma prática geral, constante e prolongada, observada com a convicção de que é juridicamente obrigatória.

Constância, generalidade e senso de obrigatoriedade são as notas essenciais do costume jurídico, porquanto, dão-lhe juridicidade; e não há como falar de juridicidade do costume sem ao menos tangenciarmos o campo das três históricas doutrinas que procuraram compreende-lo, ei-las: doutrina romano-canonica, doutrina moderna e doutrina da escola histórica.

A primeira (romano-canonica), inspirada em excertos do Corpus Juris Civilis, quis igualar o costume à lei, encerrando que o costume, assim como a lei, encontraria o seu fundamento de validade na vontade popular.

Já a doutrina moderna, tendo como precursores Austin e posteriormente Lambert, ao contrário da primeira, não reconhece juridicidade na norma consuetudinária, senão quando chanceladas pelo Judiciário. Atentemos para a colocação de Austin: [7]

O costume é transformado em direito positivo quando é adotado como tal pelos tribunais de justiça e quando as decisões judiciárias formadas com base nele são feitas a valer com a força do poder do Estado.

Por fim, a doutrina da Escola Histórica, leia-se Savigny e mais recentemente Putcha, parece-nos ter tratado do costume com uma maior sabedoria, na medida em que lhe creditou uma qualidade marcante: a autonomia. Situara, pois, o seu fundamento de juridicidade naquilo que Bobbio [8] chamou de “convicção jurídica popular, no sentimento inato de justiça do povo”.

Sem prejuízo da sintética abordagem das doutrinas referidas, algumas criticas podem ser levantadas a fim de que venhamos a encerrar este trabalho com a convicção de que o costume situa-se nas fileiras das fontes materiais do direito.

Costume e lei não são e nem podem ser tratados sob o mesmo enfoque, máxime tratarem-se de duas espécies distintas de normas jurídicas. A nós nos parece equivocada a doutrina romano-canonica ao tentar iguala-los, senão vejamos.

A lei possui contornos próprios, tomemos a questão de sua mobilidade. Diametralmente oposta ao costume, o texto legal é estático e não dinâmico como naquele. Uma determinada lei X pode perfeitamente viger e não ter qualquer eficácia; já o costume existe enquanto são eficazes (realizáveis) os fatos socias que lhe dão vida.

Há ainda o aspecto da forma. No costume não há processo legislativo que o denomine de lei costumeira Y. O que há, é a prática geral, constante e de fato obrigatória dum hábito social. Com a lei, produto formal, documento escrito, positivo, ocorre a publicização de determinado hábito social normado por uma espécie legislativa que lhe atribui juridicidade.

Sobre a doutrina Austin-Lambertiana, dita moderna, não vislumbramos a sua possibilidade existencial lógica, isso porque, sujeitar a juridicidade do costume ao juízo subjetivo de um órgão judicante, noutras palavras, é condicionar o direito, manifestado no contexto social através do costume e por isso já autônomo a uma interferência desnecessária e que, se por um lado poderia servir à unidade do sistema, por outro poderia chancelar o arbítrio, porquanto ao judiciário caberia também o exercício da função legislativa positiva.

Concordamos com Savigny e Putcha porque compreendemos o costume como o reflexo no contexto fático-social da vontade popular, dita soberana. O costume jurídico é autônomo em razão do tripé constância-generalidade-obrigatoriedade, sendo exatamente esses elementos que lhe emprestam a juridicidade necessária para que valha semelhantemente a uma lei formal.

Contudo, firmamos nossa posição no sentido de que o costume jurídico, como direito não escrito (jus non sciptum), alheio, portanto, ao rigorismo técnico-formal do processo legislativo não cede espaço a argumentação que lhe queira imputar a natureza de fonte formal do direito, outrossim, em sendo a expressão constante, geral e obrigatória da vontade soberana do povo, assume nítidas feições de fonte material, posto que, é o fluido do direito socialmente realizado.


[1] SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 15 ed., Rio de Janeiro: Forense, 1998, p.364.

[2] MONTORO, André Franco. Introdução à Ciência do Direito. 24 ed., São Paulo: RT, 1997, p.364.

[3] BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico/ Lições de Filosofia do Direito; comp. Nello Morra; trad. e notas Marcio Pugliesi, Edson Bini, Carlos E. Rodrigues, São Paulo: Ícone, 1995, p. 161.

[4] MONTORO, André Franco. Idem.Ibidem.p.323.

[5] SILVA, De Plácido.Op.Cit.p.228.

[6] COVIELO, N. Doctrina General Del Derecho Civil. México: Union Hispano-Americana, 1938.

[7] A citação fora extraída da Obra já citada neste ensaio O Positivismo Jurídico de Norberto Bobbio, p.167.

[8] BOBBIO, Norberto. Op.cit.p.168.

Sobre o(a) autor(a)
David de Oliveira Monteiro
Advogado
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