Evolução histórica da tutela ao consumidor

Evolução histórica da tutela ao consumidor

Relata a evolução histórica da consciência por parte das Nações de se proteger o consumidor.

No século XIX, o mundo respirava o Liberalismo do Estado-Mínimo e é nesse cenário que o contrato ganha importância, sendo meio de se efetivar a autonomia da vontade entre as partes. “A concepção de vínculo contratual nesse período está centrada na idéia de valor da vontade, como elemento principal, como fonte única e como legitimação para o nascimento de direitos e obrigações oriundas da relação jurídica contratual”. [1]

Subentendia-se que as partes contratantes eram iguais, mesmo que a realidade mostrasse o contrário. Pautado nos valores liberais, o que o ordenamento assegurava era a autonomia da vontade, a liberdade de contratar e a efetiva realização do objeto pactuado. A vontade, sob a ótica liberal, é o principal elemento do contrato. Elevando esse pensamento à máxima, o homem sendo ser livre para emitir sua vontade e subtrair as obrigações inerentes a ela, a idéia de que o contrato faz lei entre as partes, em detrimento do Ordenamento Jurídico fica clara. Sintetiza a professora Cláudia Lima Marques: “O direito deve moldar-se à vontade, deve protegê-la, interpretá-la e reconhecer sua força criadora. O contrato, como diz o art. 1.134 do Código Civil francês, será a lei entre as partes. A própria lei oriunda do Estado, vai buscar seu poder vinculante dentro da idéia de um contrato entre todos os indivíduos dessa sociedade. A vontade é, portanto, a força fundamental que vincula os indivíduos”. [2]

As duas grandes guerras contribuíram para o surgimento da sociedade de consumo, uma vez que o desenvolvimento industrial fluía a todo vapor, necessitando de consumidores para despejar seus mais diversos produtos. É o capitalismo que chegava para ficar, liderado pela mais nova grande potencia, que se firmava, agora mais do que nunca, os Estados Unidos.

Essa nova conjuntura influenciou sensivelmente as características contratuais. Os contratos paritários, frutos de acordos de vontade, discutidos cláusula a cláusula, muito comuns antes, tornam-se menos freqüentes dando ensejo aos contratos de adesão que, contendo o mesmo conteúdo, são formulados pela empresas e impostos aos consumidores que não vêem outra alternativa se não comungar com o que lhe é imposto.

Neste sentido, mais uma vez, invocamos a professora Cláudia Lima Marques: “Alguns comparam esta predisposição do texto contratual a um poder paralelo de fazer leis e regulamentos privados (lawmaking power). Poder este que, legitimado pela economia e reconhecido pelo direito, acabaria por desequilibrar a sociedade, dividindo os seus indivíduos entre aqueles que detêm a posição negocial de elaboradores da lex privada e os que se submetem, podendo apenas aderir à vontade manifestada pelo outro contratante”.

O modelo de produção em série (fordismo), desenvolvido para atender a demanda crescente após a Segunda Grande Guerra foi o precursor contratação em massa. Quando uma empresa desenvolvia um produto e depois reproduzia-o milhares de vezes, fazia o mesmo com os contratos. “Não tinha sentino fazer um automóvel, reproduzi-lo vinte mil vezes, e depois fazer vinte mil contratos diferentes para os vinte mil compradores”. [3]

O elemento “vontade”, antes considerado o mais importante na relação contratual, agora encontra-se mitigado, tendo em vista a maciça utilização dos contratos de adesão elaborados unilateralmente pelas grandes empresas. Vislumbra-se aí um enorme abismo entre as partes, os consumidores estavam reféns do poderio econômico, impossibilitados de discutir cláusulas contratuais, devendo apenas consentir ou não com o que lhe era imposto.

O avanço tecnológico e industrial, liderado pelos Estados Unidos, pós Segunda Guerra, impulsionou a expansão do capitalismo que tem entre seus pilares o incentivo ao consumo. Durante a guerra, as prioridades eram os produtos considerados essenciais. Agora, os produtos considerados supérfluos ganham o mercado, surgindo a cada dia de mais um produto diferente, haja vista o conhecimento tecnológico e científico que naturalmente as guerras produzem. Paralelo a isso, há uma crescente preocupação com a condição humana. Os horrores do holocausto que reduziram o homem ao estado de coisa fizeram o mundo refletir e procurar meios para que episódios como esses não mais se repetissem. Assim, as Nações buscaram por meio de tratados e convenções garantir o mínimo de dignidade ao ser humano – Os Direitos Humanos - A partir daí, o pensamento jurídico também mudou [4]. O patrimônio, antes considerado absoluto, torna-se relativo ante o interesse social. “A sociedade contemporânea é aberta, plural, porosa, multifacetária e globalizada, trazendo consigo incontroverso caráter humanista, almejando a proteção dos interesses socialmente mais relevantes, exigindo, naturalmente nova postura jurídica”. [5]

Nesse cenário, o direito consumeirista se desenvolve. Em 1978, a Espanha aluía a constituição à preocupação com o consumidor. Do mesmo modo, em 1982, a constituição portuguesa.

No Brasil, os direitos do consumidor começaram a ventilar, de forma tímida, entre as décadas de 40 e 60, quando foram sancionados diversas leis e decretos federais legislando sobre saúde, proteção econômica e comunicações. Somente em 1988 a nossa Carta Magna, atualizou o Ordenamento Jurídico brasileiro, implantando, de uma vez por todas, o “ideal de justiça distributiva e igualdade substancial, ao lado do binômio dignidade da pessoa humana e solidariedade social.” [6]. No artigo 5º, XXXII, prevê a obrigação do Estado em promover a defesa do consumidor, no artigo 170, V, apresenta a defesa do consumidor como princípio da ordem econômica e o artigo 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), que expressamente determinou a criação do Código de Defesa do consumidor.

O Código de Defesa do Consumidor, Lei nº 8.078 de 11 de setembro de 1990, foi a primeira lei brasileira de cunho especialmente consumeirista [7], visto que, antes dele, o que utilizávamos para regulamentar a relação de consumo era o Código Civil de 1917, fundado na tradição do direito civil europeu do século anterior, ou seja, no patrimonialismo e no individualismo. O CDC reflete o que há de mais avançado nos ordenamentos em matéria de tutela ao consumidor. É dever do Estado torna-lo cada vez mais acessível à sociedade. Consumidor consciente de seus direito é consumidor mais exigente. Fornecedor mais exigido é fornecedor mais eficiente.



[1] Cláudia Lima Marques, Contratos no Código de defesa do Consumidor – O novo regime das relações contratuais, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2002, 4ª edição, p. 39. (cit. ZWEIGERT, Konrad e KOETZ, Hein. Einfünhrung in die Rechtsvergleichung auf dem Gebiet dês Privatrechts. II, Tübingen: Mohr, 1984.

[2] Cláudia Lima Marques, Contratos no Código de defesa do Consumidor – O novo regime das relações contratuais, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2002, 4ª edição, p.50.

[3] Rizzato Nunes, Curso de Direito do Consumidor, Editora Saraiva, São Paulo, 2005, 2ª Edição, p.04.

[4] A primeira constituição do pós guerra a refletir essa nova tendência foi a Constituição alemã que trazia no seu artigo 1º a dignidade da pessoa humana como bem intangível.

[5] Cristiano Chaves de Farias, Direito Civil – Teoria Geral, Editora Lúmen Júris, Rio de Janeiro, 2005, p.30.

[6] Cristiano Chaves de Farias, obra cit. P. 30.

[7] A Lei da Usura de 1951 é considerada, por alguns, como a primeira lei brasileira defensora dos interesses dos consumidor. Não foi legislada com esta finalidade, mas teve esse efeito.

Sobre o(a) autor(a)
Ana Paula Pazin Gomes
Estudante de Direito
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