Coisa julgada no procedimento especial de usucapião

Coisa julgada no procedimento especial de usucapião

A sentença do procedimento especial de usucapião é meramente declaratória, restringindo-se a uma declaração judicial de uma aquisição de direito real, propriedade ou servidão, que já se consumou independente deste provimento judicial.

1. Conceito de coisa julgada

Prolatada a sentença terminativa ou definitiva, a parte que não se conformar com o provimento jurisdicional poderá recorrer, dentro de certo prazo legal, ás instâncias superiores para o seu reexame. Esgotado os recursos cabíveis, ou transcorrido o prazo legal para a admissão do recurso, a sentença torna-se irrecorrível. Opera-se o seu trânsito em julgado. Surgindo, assim, a coisa julgada.

Na definição clássica de Liebman, citado por Câmara e Mirabete, a coisa julgada seria “a imutabilidade do comando emergente de uma sentença”. Analisando o magistério daquele processualista, ressalta-se que o conceito por ele formulado refere-se, unicamente, ao conteúdo da sentença. Contudo, a coisa julgada torna imutável a sentença, fazendo com que aquele ato judicial seja insuscetível de alteração em sua forma, tornando imutável, ainda, o comando decorrente deste ato. Deste modo, como a imutabilidade, advinda do trânsito em julgado da sentença, não compreende apenas o seu conteúdo, mas também a sua forma, não cabendo mais questionamento quanto a este aspecto dentro daquela relação processual.

Melhor seria conceituar a coisa julgada como uma situação jurídica de imutabilidade da sentença, em sua forma, emergindo a chamada coisa julgada formal, e de seu conteúdo, formando a coisa julgada material ou substancial, quando do trânsito em julgado desta.


2. Coisa julgada formal e material

Seguindo o raciocínio do conceito exposto acima, a imutabilidade da forma da sentença, chamar-se-ia coisa julgada formal, e a imutabilidade do seu conteúdo, que corresponde a fixação do comando regulador do caso concreto, ou a lide estabelecida entre as partes, seria conceituado de coisa julgada material.

A coisa julgada formal e a material são etapas constitutivas de um mesmo acontecimento, pois a coisa julgada formal é um pressuposto lógico da coisa julgada material, naqueles processos em que há análise judicial do mérito. Para se constituir a autoridade de coisa julgada substancial, a sentença deve constituir-se em coisa julgada formal. Uma sentença, que alcançou a autoridade de coisa julgada material, alcançou, necessariamente, a autoridade de coisa julgada formal. Contudo, uma sentença terminativa formará apenas a coisa julgada formal.

Deste modo, pode-se afirmar que o trânsito em julgado de toda e qualquer sentença, a torna imutável em sua forma, formando a coisa julgada formal, porém só as sentenças de mérito formam coisa julgada material. Ou seja, ocorrendo o trânsito em julgado de uma sentença terminativa ou de mérito, há a formação da coisa julgada formal, uma vez que ela não poderá mais ser alterada dentro daquele processo, irradiando efeitos apenas dentro daquela relação processual, contudo se a sentença for de mérito, além de daquela imutabilidade formal, que irradia efeitos somente dentro daquela relação, se acrescenta ainda a imutabilidade do seu conteúdo, formando no mesmo momento lógico a coisa julgada material, que irradiará efeitos para o exterior da relação processual, impedindo o trânsito de novo processo movido pelas partes acerca do mesmo objeto, ao contrário das sentenças terminativas que admitem que nova ação seja movida, uma vez que o mérito da causa não foi analisado.


3. Coisa julgada na ação de usucapião

Nos termos do art. 941 do CPC, a ação de usucapião tem o fim de declarar o domínio do imóvel ou a servidão predial. Da própria inteligência do artigo, observa-se que a sentença do procedimento especial de usucapião é meramente declaratória, restringindo-se a uma declaração judicial de uma aquisição de direito real, propriedade ou servidão, que já se consumou independente deste provimento judicial, que se limita a apenas declará-lo.

Transitada em julgado a sentença, forma-se a coisa julgada formal ou formal e material, dependendo da análise ou não do mérito do pedido de reconhecimento do usucapião.

A coisa julgada no procedimento especial de usucapião se constitui na situação jurídica de imutabilidade e indiscutibilidade da sentença declaratória de procedência ou não do pedido, estabelecendo a coisa julgada formal, quando o provimento não alcance o mérito da causa, e formando a coisa julgada substancial, quando a sentença analise o pedido do autor.

Convém afirmar, que esta situação jurídica contém algumas particularidades no procedimento especial de usucapião, quanto aos seus limites objetivos e subjetivos, que merecem uma análise mais detida, o que se faz a seguir.


4. Limites objetivos da coisa julgada na ação de usucapião

Os limites objetivos da coisa julgada estão relacionados com o alcance da situação de imutabilidade e indiscutibilidade da sentença transitada em julgado. Em outros termos, o que se busca aqui é definir o que transitou em julgado.

Nos termos do art.468, do CPC, a sentença que julgar, total ou parcialmente, a lide tem força de lei nos limites do objeto do processo. O que não tiver sido objeto do pedido, por não integrar o objeto do processo, não será alcançado pela autoridade de coisa julgada. Para se vislumbrar melhor, podemos resumir o que foi dito, afirmando que a coisa julgada é a coisa em juízo deduzida pelo autor, depois de julgada e irrecorrível, ou seja, apenas aquilo que foi deduzido no processo e sendo, posteriormente, objeto de cognição judicial, é alcançado pela autoridade de coisa julgada.

Para se interpretar adequadamente o pedido, é necessário a observação da causa de pedir que o define e o limita, correspondendo esta ao caso concreto submetido a julgamento.

De acordo com o art. 941 do CPC, no procedimento especial de usucapião só poderá figurar como pedido do autor e, conseqüentemente, objeto do processo o domínio do imóvel e a servidão predial. Desta forma, somente estas questões podem ser objetos do procedimento especial de usucapião, regulado no CPC.

A sentença que denega o pedido declaratório de reconhecimento da propriedade ou servidão predial por usucapião alcança a autoridade de coisa julgada, formal e material. Entretanto, o autor deste pedido julgado improcedente poderá, posteriormente, ajuizar nova ação de usucapião referente ao mesmo bem, quando o provimento jurisdicional negar a declaração por falta do requisito temporal.

Neste caso haverá uma modificação quanto a causa de pedir, quando na posterior demanda o autor alegar fatos que diferem dos alegados primeiramente, uma vez que necessariamente a segunda demanda apresentará um prazo decorrido para a constituição do direito diverso do transcorrido na primeira ação. Como esta posterior demanda é diversa da primeira, não há qualquer impedimento ao desenvolvimento normal do processo, pois a coisa julgada material impede somente a repetição da demanda anteriormente julgada. A situação aqui descrita se coaduna com a afirmação que fizemos logo acima, de que o pedido deve ser analisado de acordo com a causa de pedir, pois a segunda demanda possui fundamentos de fato diversos do da primeira.

Como exemplo, podemos apresentar o caso de um possuidor de má-fé de um imóvel urbano, deste se utilizando para a sua moradia durante anos ininterruptos, e sem oposição do proprietário. Completados oito anos da sua posse violenta, é ajuizada demanda para a declaração de propriedade do imóvel, que é julgada improcedente por falta do requisito temporal da aquisição da propriedade por usucapião extraordinário. Completados nove anos de sua posse prolongada e sem oposição, transitada em julgado a sentença, esta é alcançada pela autoridade de coisa julgada material, tornando indiscutível o mérito da causa. Contudo, completado os dez anos de sua efetiva posse, sem oposição do proprietário durante todo este intervalo de tempo (nove anos mais um ano do trânsito em julgado da sentença que indeferiu seu pedido), o autor adquiriu o domínio do imóvel por usucapião extraordinário, de acordo com o parágrafo único do artigo 1.238 do Código Civil, podendo pleitear em juízo a declaração da aquisição da sua propriedade, uma vez que surgiu causa nova a ensejar o pronunciamento judicial, qual seja o transcurso do prazo legal para a aquisição.

Convém afirmar que não é cabível a reiteração da demanda de usucapião quando a sentença denegar o pedido por ausência de coisa hábil ou da posse em si.

Muito se proclamou da não formação da coisa julgada quando o pedido do autor fosse rejeitado pelo único motivo de não ter a posse alcançado a duração necessária para consumar o usucapião, sendo que quando da complementação do prazo, poderia o autor reiterar a demanda com o mesmo pedido.Contudo, esta questão está relacionada a identificação da demanda, e não a existência ou extensão da coisa julgada. A segunda demanda, apesar do mesmo pedido, apresenta uma nova causa de pedir, fundamentado seu pedido em novos fatos, sendo, pois, uma demanda diversa da primeira. Logo, a autoridade de coisa julgada formada pela sentença no procedimento de usucapião segue os mesmos ditames do res iudicata em outros procedimentos, seja o pedido procedente ou não. A única questão que cabe ressaltar é que na sentença improcedente transitada em julgado, pode causar confusão ao estudioso desavisado, pelos argumentos expostos aqui. Entretanto, como explicado acima, ela não difere da coisa julgada formada em outros procedimentos, uma vez que a segunda demanda difere fundamentalmente da primeira.


5. Limites subjetivos da coisa julgada na ação de usucapião

Há controvérsias na doutrina em relação aos limites subjetivos da coisa julgada no procedimento de usucapião.

Seguindo o magistério de Fabrício, Didier Júnior entende que a autoridade da coisa julgada na sentença de procedência do pedido de usucapião tem efeitos erga omnes,com o fundamento de que nesta ação figuraria como partes o usucapiente e todos, já que vislumbra-se a declaração de um direito real, principalmente porque há citação por meio de edital de todos os interessados incertos.

Para Câmara, apesar da citação edital de todos os eventuais interessados, a coisa julgada no procedimento de usucapião não possui eficácia erga omnes.

A coisa julgada na ação de usucapião segue a regra geral inscrita no art. 472 do CPC. Assim, a coisa julgada fica limitada ao autor e aos réus certos, além de outros interessados que tenham intervindo no processo. Sendo ineficaz quanto aos confinantes e a pessoa que tem o bem registrado em seu nome, quando estes não forem regularmente citados. Bem como, quanto os interessados incertos quanto não tiveram conhecimento da demanda.Nada impedindo, que posteriormente um interessado, que não foi citado ou era incerto, venha a juízo contestar o direito do autor que obteve uma sentença declaratória de seu direito.

Por último, vale ressaltar que o confinante, que não foi citado regularmente, tem como ineficaz a sentença apenas quanto à demarcação da área usucapienda, pois o seu interesse é restrito, exclusivamente, a esta questão.

Na minha humilde opinião, mais acertada se encontra a construção teórica de Câmara. Muito embora, o art. 942, do CPC, preveja a citação edital para todos os interessados, não se pode olvidar que este tipo de comunicação processual tem utilidade prática muito reduzida.

È muito difícil alguma pessoa tomar conhecimento de um processo em que tenha interesse, por meio de citação edital, ao menos que exerça alguma profissão jurídica ou seja servidor do Poder Judiciário. O problema é menos grave nas cidades onde há imprensa escrita, nos termos do art 232, III, do CPC. No entanto, o usucapião, principalmente, o rural, tem sua ocorrência muita vezes em rincões afastados dos grandes centros urbanos nacionais. Nestes lugares, geralmente, impera a pobreza, o analfabetismo e o modo de vida simplório típico do camponês, pouco afeito à burocracia da justiça.

Deste modo, a construção de Câmara, a meu ver, é a que mais se sincroniza com os ditames da justiça, afastando uma ficção jurídica pouco eficiente, para permitir que os réus necessários não citados, bem como outros interessados incertos que não tomaram conhecimento do teor do edital, tenham a oportunidade de discutirem a aquisição do direito real pelo usucapiente por meio de uma ação ordinária.

Embora cientificados, nos termos do art. 943 do CPC, os representantes da Fazenda Pública da União, Estados e Municípios, estes entes de direito público não são réus, logo não há que se falar em reexame necessário, salvo se estas pessoas se manifestem como tal no processo.


6. Coisa julgada no procedimento de usucapião especial coletivo urbano

Para Câmara, a sentença de improcedência, por insuficiência probatória, do pedido declaratório da aquisição da propriedade coletiva deve ser considerado incapaz de alcançar a coisa julgada material, no procedimento de usucapião especial coletivo urbano.

Neste raciocínio, aqueles legitimados, que derrotados por falta de provas na primeira demanda de usucapião especial coletivo urbano, podem novamente, em outra ação, pleitear o provimento judicial declaratório, com os mesmos elementos do primeiro processo, inclusive com a mesma causa de pedir.

Defende o doutrinador carioca que só deste modo estará sendo dada proteção aos integrantes das comunidades carentes, impedindo que um possuidor de má-fé, mancomunado com aquele em que está registrada a área usucapienda, ajuíze a ação e venha a sucumbir, de forma dolosa, impedindo que seja reconhecido um direito existente, de que é titular todo um grupo de pessoas.

Com a devida vênia, discordo do processualista carioca.Em primeiro lugar, a afirmação, de que a improcedência do pedido de usucapião especial coletivo urbano, não faz coisa julgada material subverte o sistema processual, tendo em vista que o escopo principal da jurisdição é compor o conflito de interesses mediante um pronunciamento judicial que vincule as partes, sendo este indiscutível em outro processo quando do seu trânsito em julgado e analisado o seu mérito. Logo a segurança jurídica da decisão judicial estaria abalada, uma vez que o provimento jamais seria definitivo nesta hipótese.

Ademais, o raciocínio do processualista conflita com o art.474, do CPC que diz: “Passada em julgado a sentença de mérito, reputar-se-ão deduzidas e repelidas todas as alegações e defesas, que a parte poderia opor assim ao acolhimento como à rejeição do pedido”. Este dispositivo trata do que próprio doutrinador carioca chama de eficácia preclusiva da coisa julgada, no primeiro volume de sua obra aqui mencionada. Ou seja, a perda de uma faculdade processual por não ter feito a parte no momento oportuno em decorrência da coisa julgada. Logo, se os legítimos usucapientes, que deverão estar devidamente acompanhados de advogado, não conseguirem provar os requisitos para a declaração judicial de seu direito no momento devido, os seus direitos processuais estarão preclusos com a sentença de mérito transitada em julgado.

Por último, Câmara fundamenta sua afirmação no resguardo do interesse de possuidores carentes, que tem direito à declaração de seu direito, mas que podem ser lesados por um processo simulado, estabelecido entre um possuidor de má-fé e a pessoa em cujo nome está registrado o imóvel. Ora, para uma questão deste tipo, temos a hipótese legal da rescisão da sentença, e conseqüentemente a revogação da situação jurídica advinda da formação da coisa julgada, através da Ação Rescisória que no art.485, III, do CPC, expressamente contempla uma situação como a descrita pelo jurista carioca:

Art. 485. A sentença de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando”:

(...)

III- resultar de dolo da parte vencedora em detrimento da parte vencida, ou de colusão entre as partes, a fim de fraudar a lei.

Finalmente, discordo, plenamente da afirmação de que na ação de usucapião especial coletivo urbano não há formação de coisa julgada, quando faltar a instrução probatória por parte dos interessados, com fundamento na eventual lesão de destes, que geralmente são pessoas de comunidades carentes. Uma vez que o próprio sistema processual estabelece as possibilidades jurídicas que possam remediar tal situação como a ação rescisória, não há razão plausível para que não haja formação de coisa julgada material neste caso. Logo, a coisa julgada na ação de usucapião especial coletivo urbano rege-se pelas mesmas disposições aplicadas aos demais tipos de prescrição aquisitiva.


7. Bibliografia:

CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. 8º ed. Rio de Janeiro: Lumem Júris, 2002.v.1. p.459-460/470-471.

_______________. Lições de Direito Processual Civil. 8º ed. Rio de Janeiro: Lumem Júris, 2002.v.3. p.433-435/ 438-439.

DIDIER JÚNIOR, Fredie. “Aspectos Processuais do Usucapião Especial rural e Urbano”. In: Procedimentos Especiais Cíveis. Cristiano Chaves de Farias (Org.). 1°ed. Salvador: Ed.Saraiva, 2003. p.842-843.

FABRÍCIO, Adroaldo Furtado. Comentários ao Código de Processo Civil. 8º ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002, v.8, tomo 3. p. 521-523.

MACHADO, Antônio Cláudio da Costa. Código de processo civil interpretado: artigo por artigo, parágrafo por parágrafo. 4º ed. Barueri, SP: Manole, 2004

MARCATO, Antônio Carlos. Procedimentos Especiais. 11º ed. São Paulo: Atlas, 2005.

MIRABETE, Júlio Fabbrini. Processo Penal. 14º ed. São Paulo: Atlas, 2003. p.471.

THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 29º ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002.v.3.

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: direitos reais.2º ed. São Paulo: Atlas, 2002. v.5.

Sobre o(a) autor(a)
George Aguiar Muniz
Acadêmico de Direito da Universidade Católica de Salvador
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