Sujeito ativo do crime de desacato

Sujeito ativo do crime de desacato

Trata da viabilidade técnico-jurídica de considerar o funcionário público superior hierárquico como sujeito ativo do crime do art. 331, CP (crime de desacato).

1 NOÇÃO DE BEM JURÍDICO

Ao tratar da noção de bem jurídico, Noronha [1] afirma que o bem tutelado pelo crime de desacato é, como já dito, a dignidade, o prestígio, o respeito devido à função pública. O Estado é diretamente interessado em proteger o respeito a essa função, pois ele é indispensável à atividade e à dinâmica da administração. Sem o devido respeito, os agentes públicos não poderiam exercer, de modo eficaz, suas funções, por via das quais é atingida a finalidade superior, de caráter eminentemente social, que a administração busca e procura.

Diz-se que é impossível estabelecer uma disciplina social e política se os órgãos públicos, através dos quais o Estado cumpre a sua função constitucional, são desrespeitados. [2]

Antonio Pagliaro e Paulo José da Costa Júnior, refletindo acerca do bem jurídico tutelado pelo crime de desacato, afirmam curiosamente o seguinte:

A honra do funcionário é tutelada, mercê do desacato, de modo muito mais rigoroso do que a honra do particular. Tal se dá porque o funcionário é portador de um interesse público, desempenhando posto de particular relevo no ordenamento do Estado. [3]

Pode-se perceber a importância que a noção de bem jurídico tem para o legislador penal. Em razão desse crime busca-se resguardar a base da atuação eficaz da administração pública (eficácia, segundo Capez [4], no sentido de fiel execução), através dos seus prepostos, os funcionários públicos, que são os instrumentos de persecução da finalidade superior estatal. Essa base de atuação eficaz nada mais é que o respeito devido à tarefa hercúlea de realizar a vontade pública.

Logo, quando alguém desacata um funcionário público, desrespeita, em primeiro lugar, o próprio Estado presentado e representado pela vítima (conforme alhures mencionado) e, em segundo lugar, a própria vítima (em sua honra), pois o crime é pluriofensivo. O bem jurídico lesado pelo crime de desacato é, portanto e em última análise, a honra funcional, que pertence à vítima, mas que também está acima dela, pois a mesma é indisponível.


2 QUALQUER PESSOA

O sujeito ativo do crime pode ser qualquer pessoa. Qualquer do povo pode desacatar um funcionário público. A esse respeito, não há divergências. Doutrina e jurisprudência são unânimes em considerar como sujeito ativo de desacato qualquer do povo.

O advogado pode cometer desacato no exercício da sua atividade profissional? Capez [5] afirma que o advogado, a partir da liminar concedida na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.127, pode cometer crime de desacato.

O Art. 133, CF da Constituição Federal de 1988 dispõe: “o advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”. Percebe-se que o legislador constituinte, ao consagrar a inviolabilidade do exercício da advocacia, mandou que a lei a limitasse.

A Lei nº 8.906/94 (Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil), cumprindo o mandamento constitucional, dispôs, no seu Art. 7º, § 2º, que:

O advogado tem imunidade profissional, não constituindo injúria, difamação ou desacato puníveis, qualquer manifestação de sua parte, no exercício de sua atividade, em juízo ou fora dele, sem prejuízo das sanções disciplinares perante a OAB, pelos excessos que cometer.

O Supremo Tribunal Federal, todavia, ao conceder a liminar alhures mencionada, suspendeu a eficácia da expressão “desacato”, contida no dispositivo da Lei nº 8.906/94. Segundo Ney Moura Teles [6], o STF, até esta data, quase dez anos após o ajuizamento, ainda não julgou o mérito da ação.

Conforme o entendimento do STF, a imunidade prevista no Art. 133, CF somente poderia abranger os crimes contra a honra, e não os crimes contra a Administração. Disso resulta, portanto, que o advogado pode cometer desacato.


3 FUNCIONÁRIO PÚBLICO DESPIDO DA CONDIÇÃO

É majoritário o entendimento de que o funcionário público também pode desacatar, ele também pode ser autor do crime de desacato. Para que isso ocorra, é preciso o funcionário público despir-se da sua qualidade ou agir fora da sua própria função. Discute-se, porém, se é possível falar-se em desacato quando o agente é funcionário público e a ofensa se refere às funções públicas.


4 FUNCIONÁRIO PÚBLICO SUBORDINADO E FUNCIONÁRIO PÚBLICO SUPERIOR HIERÁRQUICO

Certamente, aqui se encontra o ponto de maior divergência doutrinária e jurisprudencial deste trabalho. É, também, ao lado do bem jurídico, o núcleo central da abordagem do tema proposto.

Em se tratando do sujeito ativo do delito em apreço, podemos apresentar os três posicionamentos existentes acerca do fato de funcionário público poder ser ou não sujeito ativo de desacato. [7]

Segundo a primeira corrente (Nélson Hungria, Vicente Sabino Júnior, Manzini, Antolisei) o funcionário público não pode ser sujeito ativo de desacato, a não ser que se tenha despido da qualidade funcional ou o fato tenha sido cometido fora do exercício de suas funções. Como o desacato encontra-se no capítulo dos crimes praticados “por particular” contra a administração em geral, entende-se que o autor deve ser um estranho. Se o autor for um funcionário público, não haverá desacato, subsistindo a ofensa como infração autônoma (injúria, lesão, ameaça etc.). Não há orientação dominante em nossa jurisprudência. [8]

Contra essa primeira corrente, tem-se o seguinte julgado do Superior Tribunal de Justiça: “O crime de desacato, por ser crime comum, pode ter no seu pólo ativo qualquer pessoa, inclusive funcionário público”. (STJ, HC 9.322/GO, Rel. José Arnaldo da Fonseca, DJU, 23-8-1999)

E, ainda, segundo o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (RT 760/692-3), o funcionário público pode sim ser sujeito ativo do crime de desacato, a exemplo do Promotor de Justiça que foi desacatado (agredido verbalmente) por funcionário público. O TJRJ entendeu que, no caso retro citado, houve desacato, pois o bem jurídico tutelado era (e é) o prestígio da função pública.

Para a segunda corrente (Nélson Hungria, Bento de Faria, Luiz Regis Prado, Manzini), o funcionário público pode sim ser sujeito ativo, desde que seja inferior hierárquico em relação ao ofendido. Se for superior ou se exercer funções de igual categoria, não há desacato. Esta segunda corrente é criticada por Heleno Cláudio Fragoso, Magalhães Noronha, Nino Levi e Stefano Riccio. [9]

Também contra esse entendimento, são os dois julgados a seguir:

O sujeito ativo do desacato, segundo pressupõe a lei, há de ser extraneus, mas a este se equipara o funcionário que, maltrata física ou moralmente a outro in officio ou propter officium. (TACRIM-SP – AC – Rel. Albano Nogueira – JUTACRIM-SP 73/235)

Por outro lado, o “sujeito ativo do crime” (de desacato) pode ser qualquer pessoa, inclusive o funcionário público, quer exerça, ou não, a mesma função do ofendido (trecho do voto vencido do Juiz Goulart Sobrinho). (TACRIM-SP – AC – Rel. Lacerda Madureira – RT 452/386)

Já para a terceira corrente, o funcionário público pode ser sujeito ativo de desacato em qualquer hipótese, seja superior ou inferior hierárquico à vítima. Damásio [10] filia-se a esta terceira corrente. O funcionário público que pratica o fato contra outro despe-se dessa qualidade, equiparando-se ao particular, pois se o bem jurídico é o prestígio da função pública, seria incompreensível haver lesão apenas quando a conduta fosse praticada por particular. Essa terceira corrente encontra fundamento em Heleno Cláudio Fragoso, Magalhães Noronha, Paulo José da Costa Júnior, Antonio Pagliaro Riccio, Maggiore, Vannini e Nino Levi. [11] Essa corrente é a posição mais aceita na doutrina.

Diz com precisão Noronha:

Se o ofendido, no delito em apreço, é primacialmente a Administração Pública ou o Estado, o superior, que ofende o inferior, ofende, como qualquer outra pessoa, a administração não podendo ele sobrepor-se a esta. É óbvio que, tutelando-se a administração, protegem-se seus agentes, não se excluindo seus humildes e modestos. [12] (Grifos nossos)

Logo abaixo, duas jurisprudências que advogam a perfeita viabilidade jurídica de se considerar funcionário público superior como sujeito ativo do crime de desacato (a segunda, inclusive, já carreada ao presente trabalho, alhures):

O sujeito ativo do desacato, segundo pressupõe a lei, há de ser extraneus, mas a este se equipara o funcionário que, maltrata física ou moralmente a outro in officio ou propter officium. (TACRIM-SP – AC – Rel. Albano Nogueira – JUTACRIM 73/235)

Por outro lado, o “sujeito ativo do crime” (de desacato) pode ser qualquer pessoa, inclusive o funcionário público, quer exerça, ou não, a mesma função do ofendido. (trecho do voto vencido do Juiz Goulart Sobrinho) (TACRIM-SP – AC – Rel. Lacerda Madureira – RT 452/386)

Ao analisar o sujeito ativo do crime de desacato, Noronha da possibilidade jurídica de um superior hierárquico cometer desacato em relação a um subordinado.

Ao expor o entendimento daqueles que afastam a tese de desacato quando a ofensa é proferida por um superior contra um subordinado, Noronha [13] explica o fundamento desse raciocínio, que está no fato da autoridade superior prevalecer sobre a inferior, onde a agressão praticada contra um subordinado configuraria não um desacato, mas um abuso de função.

Todavia, segundo os que aceitam e sustentam poder haver desacato de um superior em relação ao seu subordinado, entre os quais Noronha pessoalmente se inclui, afirmam que:

O ultraje não ofende apenas o indivíduo, isto é, não é apenas ofensa ao indivíduo que é revestido de autoridade, é sempre também ofensa à honra e ao decoro da administração pública. Se assim é, irrelevante é a relação entre o ofensor e o objeto material pessoal da ofensa, necessário sendo sempre e unicamente determinar se há ofensa à administração pública. [14]

Expondo sua opinião acerca do assunto, Noronha elucida de vez a questão. Diz ele:

Se o ofendido, no delito em apreço, é primacialmente a administração pública ou o Estado, o superior, que ofende o inferior, ofende, como qualquer outra pessoa, a administração, não podendo ele sobrepor-se a esta. É óbvio que, tutelando-se a administração, protegem-se seus agentes, não se excluindo os humildes e modestos. Há a considerar ainda o seguinte. Se o delito em estudo pode ser cometido pelo particular, que não é nem superior nem inferior hierárquico do funcionário, não se vê por que, em se tratando de servidores públicos, há de se atentar à relação hierárquica, quando está em jogo o mesmo bem jurídico e quando o funcionário, ao cometer tal crime, despe-se dessa qualidade, agindo e sendo considerado como particular. [15]

Regis Prado [16] aparenta raciocinar contraditoriamente quando se posiciona a respeito da viabilidade de desacato entre superior e subordinado. Diz o autor que se o agente é justamente o superior hierárquico da vítima, não se configura o desacato, o mesmo ocorrendo se ambos exercem a mesma função e situam-se no mesmo nível hierárquico, podendo a conduta amoldar-se a outro tipo legal, dependendo das elementares presentes.

Na seqüência, o suposto choque de idéias.

Prosseguindo nos seus argumentos, Regis Prado [17] faz uma ressalva de que não se pode olvidar o seguinte: No delito de desacato, a ofensa não se dirige diretamente ao indivíduo (autoridade), mas primordialmente à Administração Pública. Daí ser indiferente ao reconhecimento do desacato o fato do sujeito ativo encontrar-se ou não no mesmo nível do funcionário ofendido.

Portanto, com base no exposto, depreende-se a ausência de posicionamento do autor em relação ao fato de haver ou não crime de desacato perpetrado contra subordinado, pois mostrou-se, no mínimo, confuso em relação às suas conclusões científicas. Regis Prado limitou-se, tão somente, a expor o que é mais discutido no meio doutrinário. Entretanto, a ressalva supra consignada não existe por acaso. Ela demonstra, certamente, uma forte inclinação no sentido de admitir superior hierárquico como sujeito ativo de desacato, apesar de, curiosamente, negar tal possibilidade em anterior ilação contundente.


5 CONCLUSÃO

Não há espaço, data maxima venia, para enxergar outro bem jurídico tutelado a partir do crime de desacato. Em se tratando do crime de desacato, o único valor penal protegido, que sempre existiu desde o começo (desde a exposição de motivos do Código Penal), é a dignidade da Administração Pública, a honra funcional (que pertence ao funcionário, mas que a ele sobrepõe-se).

Refutadas estão, portanto, as considerações acerca do respeito ao princípio da hierarquia funcional, entre superior e subordinado, como forma de obstar o reconhecimento da existência de desacato entre funcionários públicos hierarquicamente desiguais, pois em se tratando do prestígio da Administração Pública, esta, por si só, fagocita o princípio acima, dada a sua maior relevância.

Não se deve perder de vista o sentido do crime de desacato, assim como em relação aos demais congêneres do mesmo Capítulo II. E qual seria? Todos eles, por vontade do legislador, colimam afastar condutas lesivas ao seio da Administração Pública. Para tanto, não importa se o causador da lesão é um funcionário público superior ou inferior hierárquico à vítima funcional. O que importa é que a sua conduta, quando dirigida a um funcionário público, viola e molesta gravemente o que deveria permanecer intangível, a saber: o brio administrativo, o decoro da instituição, a dignidade da Administração Pública.


REFERÊNCIAS:

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. V. 3. São Paulo: Saraiva, 2004.

JESUS, Damásio E. de. Direito Penal. V. 4. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 1989.

NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal. São Paulo: Saraiva, v. 4, 1988.

PAGLIARO, Antonio; DA COSTA JÚNIOR, Paulo José. Dos Crimes Contra a Administração Pública. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1999.

PRADO Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. V. 4. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

TELES, Ney Moura. Direito Penal. V. 3. São Paulo: Atlas, 2004.



[1] NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 1988, v. 4, p. 303.

[2] PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, v. 4, pp. 506-507.

[3] PAGLIARO, Antonio; DA COSTA JÚNIOR, Paulo José. Dos Crimes Contra a Administração Pública. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 205.

[4] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 2004, v. 3, p. 490.

[5] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, v. 3, 2004, p. 492.

[6] TELES, Ney Moura. Direito Penal. São Paulo: Atlas, 2004, v. 3, p. 543.

[7] JESUS, Damásio E. de. Direito Penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, v. 4, 1999, p. 189.

[8] Ibidem, pp. 189-190.

[9] JESUS, Damásio E. de. Direito Penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, v. 4, p. 190.

[10] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 2004, v. 3, p. 493.

[11] JESUS, Damásio E. de. Direito Penal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, v. 4, p. 190.

[12] NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 1988, v. 4, pp. 417-418.

[13] NORONHA, E. Magalhães. Direito Penal. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 1988, v. 4, p. 302.

[14] Ibidem, p. 304.

[15] NORONHA, E. Magalhães. Loc. cit., p. 304.

[16] PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, v. 4, p. 507.

[17] PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, v. 4, p. 507.

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Claudio Leal Soares
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