Mandato e escolha do chefe de polícia

Mandato e escolha do chefe de polícia

Analisa as experiências acerca do mandato e escolha corporativa do chefe de polícia, propondo sua adoção como forma de conferir independência e evitar ingerência no trabalho de investigação policial.

U ma das formas de se conferir independência no exercício das funções afetas a um cargo importante, geralmente de chefia ou direção de órgão estratégico, é protegê-lo com o instituto do mandato. Dessa forma, o mandatário tem autonomia para dirigir os destinos da entidade com isenção e sem ingerências políticas.

Assim, a Constituição Federal alberga o instituto quanto à composição do Conselho da República para mandato de três anos aos membros eleitos, vedada a recondução. Para escolha do Procurador-Geral da República, determina o mandato de dois anos, permitindo a recondução, sendo que, quanto ao Procurador-Geral de Justiça nos Estados, segue a mesma sistemática, por herança da anterior subordinação do Ministério Público ao Poder Executivo. Nesse caso, o mandato também é de dois anos, admitida apenas uma recondução. Normas infraconstitucionais estenderam tal garantia aos integrantes de determinados colegiados que visem à regulação e fiscalização das atividades de interesse imediato do Estado.

Para outros órgãos previu a Lei Maior o método de escolha, no regime de freios e contrapesos, determinando a lista tríplice submetida ao chefe do Poder Executivo, como forma de investidura dos cargos de um terço dos Ministros do TCU, Ministros de tribunais superiores do Poder Judiciário (TST e um terço do STJ) e juízes dos TRT. Estabeleceu, também, lista sêxtupla para o chamado quinto constitucional dos TRF e tribunais estaduais, da qual é extraída lista tríplice pelo próprio tribunal. Tais magistrados, porém, tanto do Poder Judiciário, quanto do Legislativo, não possuem mandato, mas a garantia da vitaliciedade.

Quanto aos Procuradores-Gerais de Justiça dos Estados, no entanto, se aplicam os dois institutos, o mandato e a escolha por lista tríplice. Entendeu o legislador ordinário que tal lista seria elaborada pelo voto plurinominal de todos os integrantes da respectiva carreira (art. 9º, § 1º da Lei nº 8.625/93).

Não dispôs a lei a respeito da escolha corporativa no âmbito interno do Poder Executivo, excetuado o mandato referido quanto aos colegiados.

No momento em que se discute, porém, um controle externo para o Poder Judiciário que, em contrapartida acena com a extinção da escolha de magistrados e procuradores-chefes pelo chefe do Poder Executivo, avulta a importância do mandato e escolha democrática do chefe de polícia. Tal escolha seria feita pelos dirigentes da polícia civil, os delegados de polícia, integrantes da carreira jurídica de uma instituição subordinada administrativamente ao chefe do Poder Executivo, mas dotada de independência funcional em sua atividade. Não faz sentido a independência funcional de direito sem que o seja de fato, se estiver manietada pelo guante da subordinação estrita.

Recorde-se que o cargo de chefe de polícia agrega extrema responsabilidade, por envolver o trato com um dos bens de maior repercussão na dignidade e qualidade de vida das pessoas, que é a segurança pública. Sendo ocupante de cargo de nomeação e exoneração ad nutum do chefe do Poder Executivo, o chefe de polícia, mesmo agindo em respeito à mais absoluta legalidade no tocante à atividade-fim, fica sujeito à ingerência do governador e sua base de apoio do Poder Legislativo quanto à administração dos recursos de que dispõe a força policial, especialmente a gestão de recursos humanos.

É comum o acesso aos cargos mais preeminentes e às funções gratificadas em geral mediante o espúrio método da bajulação, do conchavo e do QI (‘quem indica’), que implica, muitas vezes, exigência velada do secretário, do deputado ou do prefeito, padrinho do pretendente, a que o chefe de polícia acede, a pedido do governador, que foi quem o nomeou e a quem não convém desagradar. Igualmente a dispensa de determinado servidor operante às vezes se dá em razão do desagrado de quem detém o poder político ou econômico e exerce influência no gabinete, pelo interesse em proteger alguém ou a si próprio de investigações ‘indevidas’.

Eis porque os legisladores constitucionais dos Estados do Rio de Janeiro e Espírito Santo estenderam tais institutos aos delegados de polícia de seus Estados, certamente por entenderem que as autoridades policiais estão intimamente jungidas a parcela de atividades-fim equivalentes do Poder Judiciário e do Ministério Público, qual seja, a repressão de infrações penais.

A constituição capixaba dispôs, em seu Art. 128, § 1º:

Art. 128 (omissis)

...............................................................................................................

§ 1º O delegado-chefe da Polícia Civil será nomeado pelo Governador do Estado dentre os integrantes da última classe da carreira de delegado de polícia da ativa, em lista tríplice formada pelo órgão de representação da respectiva carreira, para mandato de 02 (dois) anos, permitida recondução.”

No julgamento da ADI nº 2710-7-ES o STF suspendeu a eficácia do § 1º do artigo 128 da Constituição do Estado do Espírito Santo, com a redação acima transcrita, imprimida pela Emenda Constitucional nº 31, de 29/11/2001, verbis:

ADI 2710 / ES - ESPÍRITO SANTO AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE

Relator(a): Min. SYDNEY SANCHES

Julgamento:  // - Tribunal Pleno

EMENTA: DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE DO § 1º DO ART. 128 DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO, COM A REDAÇÃO DADA PELA E.C. Nº 31, DE 03.12.2001, NESTES TERMOS: "O DELEGADO-CHEFE DA POLÍCIA CIVIL SERÁ NOMEADO PELO GOVERNADOR DO ESTADO DENTRE OS INTEGRANTES DA ÚLTIMA CLASSE DA CARREIRA DE DELEGADO DE POLÍCIA ATIVA, EM LISTA TRÍPLICE FORMADA PELO ÓRGÃO DA REPRESENTAÇÃO DA RESPECTIVA CARREIRA, PARA MANDATO DE 02 (DOIS) ANOS, PERMITIDA RECONDUÇÃO". ALEGAÇÃO DE QUE TAL NORMA IMPLICA VIOLAÇÃO AOS ARTIGOS 2º, 61, § 1º, II, "e", 84, II e VI, e 144, § 6º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. MEDIDA CAUTELAR (ART. 170, § 1º, DO RISTF). 1. Conforme precedentes do S.T.F., é da competência do Governador do Estado o provimento de cargos de sua estrutura administrativa, inclusive da Polícia Civil. 2. No caso, a norma impugnada restringe a escolha, pelo Governador, do Delegado-Chefe da Polícia Civil, pois lhe impõe observância de uma lista tríplice formada pelo órgão da representação da respectiva carreira, para mandato de dois anos, permitida recondução. 3. Medida cautelar deferida, para se suspender a eficácia do § 1º do art. 128 da Constituição do Estado do Espírito Santo, com a redação que lhe foi dada pela E.C. nº 31, de 03.12.2001.

Partes

REQTE.: GOVERNADOR DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO

REQDA.: ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO”

Neste acórdão, além dos preceitos constitucionais que tratam da independência dos poderes (art. 2º) e da exclusividade concedida ao chefe do Poder Executivo para criar e dispor dos cargos da Administração Pública (art. 61, § 1º, inciso II, alínea e e art. 84, incisos II e VI), a razão de decidir invocada pelo STF é a agressão ao art. 144, § 6º, da Constituição Federal, que dispõe:

Art. 144 (omissis)

...............................................................................................................

§ 6º As polícias militares e corpos de bombeiros militares, forças auxiliares e reserva do Exército subordinam-se, juntamente com as polícias civis, aos Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios.”

Não obstante a obviedade do dispositivo, cuida-se que foi expressamente previsto para dirimir eventual dúvida acerca da utilização dessas forças, especialmente as militares, consideradas reservas do Exército. No bojo, incluíram-se as polícias civis.

Já a constituição fluminense continha mandamento semelhante, não em relação ao chefe de polícia, mas aos delegados-chefes das delegacias dos municípios, de sentido ainda mais liberal, porque adotava o voto censitário da população na escolha do delegado local, verbis:

Art 183 (omissis)

...............................................................................................................

§ 4º Nas jurisdições policiais com sede nos Municípios, o delegado de polícia será escolhido entre os delegados de carreira, por voto unitário residencial, por período de dois anos, podendo ser reconduzido, dentre os componentes de lista tríplice apresentada pelo Superintendente da Polícia Civil:

a) o delegado de polícia residirá na jurisdição policial da delegacia da qual for titular;

b) a autoridade policial será destituída, por força de decisão de maioria simples do Conselho Comunitário da Defesa Social do Município onde atuar;

c) o voto unitário residencial será representado pelo comprovante de pagamento de imposto predial ou territorial.”

Igualmente por meio de ação direta de inconstitucionalidade, tais dispositivos ficaram sem eficácia, após a decisão do STF na ADIN nº 244-9, de 1990, abaixo transcrita:

ADI 244 / RJ - RIO DE JANEIRO

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE

Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE

Publicação: DJ DATA-31-10-2002 PP-00019 EMENT VOL-02089-01 PP-00001

Julgamento: 11/09/2002 - Tribunal Pleno

EMENTA: Polícia Civil: subordinação ao Governador do Estado e competência deste para prover os cargos de sua estrutura administrativa: inconstitucionalidade de normas da Constituição do Estado do Rio de Janeiro (atual art. 183, § 4º, b e c), que subordinam a nomeação dos Delegados de Polícia à escolha, entre os delegados de carreira, ao "voto unitário residencial" da população do município; sua recondução, a lista tríplice apresentada pela Superintendência da Polícia Civil, e sua destituição a decisão de Conselho Comunitário de Defesa Social do município respectivo. 1. Além das modalidades explícitas, mas espasmódicas, de democracia direta - o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular (art. 14) - a Constituição da República aventa oportunidades tópicas de participação popular na administração pública (v.g., art. 5º, XXXVIII e LXXIII; art. 29, XII e XIII; art. 37 , § 3º; art. 74, § 2º; art. 187; art. 194, § único, VII; art. 204, II; art. 206, VI; art. 224). 2. A Constituição não abriu ensanchas, contudo, à interferência popular na gestão da segurança pública: ao contrário, primou o texto fundamental por sublinhar que os seus organismos - as polícias e corpos de bombeiros militares, assim como as polícias civis, subordinam-se aos Governadores. 3. Por outro lado, dado o seu caráter censitário, a questionada eleição da autoridade policial é só aparentemente democrática: a redução do corpo eleitoral aos contribuintes do IPTU – proprietários ou locatários formais de imóveis regulares – dele tenderia a subtrair precisamente os sujeitos passivos da endêmica violência policial urbana, a população das áreas periféricas das grandes cidades , nascidas, na normalidade dos casos, dos loteamentos clandestinos ainda não alcançados pelo cadastramento imobiliário municipal. Partes

REQTE.: GOVERNADOR DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

REQDO.: ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO”

Dessume-se que a alegada inconstitucionalidade das normas máximas estaduais tem o escopo de garantir a subordinação das polícias ao governador e, secundariamente, preservar a iniciativa deste no tocante à escolha do chefe de polícia.

Isso não significa, contudo, que pela subordinação ao chefe do Poder Executivo, tais autoridades não possam ser escolhidas pela própria corporação nem terem o tempo de exercício da função definido por mandato. Não haveria incompatibilidade com o § 6º do art. 144, desde que se previssem, de lege ferenda, circunstâncias em que a conduta inadequada do mandatário permitisse ao chefe do Poder Executivo destituí-lo antes do termo final do mandato (abuso de poder e falta grave, por exemplo).

Tal possibilidade já foi prevista pelo constituinte, cabendo ao Poder Legislativo discutir e decidir pela destituição da autoridade faltosa. No caso do Procurador-Geral da República a decisão é do Senado; quanto ao Procurador-Geral de Justiça, cabe ao legislativo estadual decidir e, em ambos os casos por maioria absoluta (art. 128, §§ 2º e 4º, respectivamente, da CF/88).

Se o chefe do Poder Executivo entender, entretanto, que não é inconveniente abrir mão da faculdade de nomear e exonerar livremente, pode, ele próprio, iniciar o processo legislativo para aprovação de norma que legitime a adoção dos institutos referidos. Seria absurdo admiti-lo argüindo a constitucionalidade de dispositivo dessa natureza, única autoridade com legitimidade para contestá-lo, como o fizeram os governadores do Rio de Janeiro e Espírito Santo quanto à iniciativa do constituinte estadual, vez que seria o próprio autor da norma.

Compreende-se que, no caso dos militares (policiais e bombeiros), não faria sentido uma escolha do comandante por voto dos integrantes da corporação. Uma primeira dificuldade seria definir o universo dos votantes nessa escolha. Seriam apenas os oficiais, abrangeria os graduados ou todo o efetivo? É sabido que os comandantes militares ascendem ao cargo máximo quando já estão no último posto da carreira (coronel), salvo raríssimas exceções. Nesse caso, apenas os coronéis votariam a lista para escolha do comandante?

Percebe-se que essa é uma questão já deslindada. Ocorre que os comandantes militares são escolhidos tradicionalmente segundo uma rígida hierarquia, de modo que não se admite um oficial de posto inferior comandando o de posto acima, donde se infere ser-lhes inaplicável o instituto da escolha, cabendo, entretanto, a adoção do mandato.

Por outro ângulo, estando subordinados ao chefe do Poder Executivo, os comandantes militares não teriam como recusar a utilização compulsória da tropa como reserva, por requisição da força singular terrestre, situação passível de simples acatamento pelo governador, sem maiores considerações que as de caráter legal. Tal requisição, porém, não se aplica às polícias civis.

Deduz-se, pois, que em relação ao chefe da polícia civil, os presumidos impedimentos fenecem. Ora, da categoria de delegados de polícia, dirigentes da polícia civil por disposição constitucional, é que deve surgir o chefe de polícia, sob pena de os dirigentes serem chefiados por integrante de outra categoria a que não foi deferida a mesma prerrogativa. Estranhamente, quanto à polícia federal, essa deferência não foi constitucionalizada, o que pode ter emulado a esdrúxula proposta do sindicato dos policiais federais nesse sentido, chegando a propor a extinção da carreira de delegado de polícia, cuja aprovação legitimaria a ocupação do cargo por qualquer policial.

Fica evidente, também, que a escolha do chefe de polícia teria de ser feita pelos pares, a exemplo do que ocorre com a escolha dos magistrados e dos membros do Ministério Público, por integrarem igualmente uma carreira jurídica, como é a dos procuradores autárquicos, consultores jurídicos e advogados da União, por mais que se lhes neguem o epíteto.

Outra particularidade é que o mandato ideal é o não coincidente com o do próprio governador, a fim de evitar o envolvimento dos potenciais mandatários com a campanha político-eleitoral. Assim, a escolha poderia ser feita por meio de lista sêxtupla – que ampliaria o número de candidatos e a discricionariedade do governador na escolha – para um período de dois anos, permitida uma recondução, desde que o reconduzindo integrasse a nova lista.

Destarte, em homenagem à efetividade do trabalho policial é que a ocupação de cargo de tamanha importância não deve ter caráter essencialmente político que ostenta atualmente, sujeitando a comunidade a eventuais caprichos dos governantes. A independência conferida pelo mandato ao chefe de polícia redundaria em maior autonomia à instituição. Por extensão, perenizaria as garantias individuais dos cidadãos, ao contarem com uma polícia que, além de ser eficaz, moderna, ética e comprometida com a comunidade, teria sua atividade pautada pela estrita legalidade e contaria com dirigentes altamente motivados, escolhidos livremente pelo chefe de polícia – que deteria absoluta legitimidade, pois por eles escolhido –, mas segundo critérios objetivos, como a antigüidade e o mérito de cada um. Outro aspecto relevante é que a seletividade na apuração das infrações penais obedeceria a critérios eminentemente técnicos.

Seria de bom alvitre que os governadores, num ato de coragem moral, se despissem de certas vaidades e preocupações minúsculas, concedendo à população, mediante proposta de sua iniciativa, mais essa demonstração de compromisso com a cidadania, ao adotar a escolha por meio de lista e conferir mandato aos respectivos chefes de polícia civil.

Sobre o(a) autor(a)
Claudionor Rocha
Delegado
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